sábado, 27 de dezembro de 2008

O Amor em Roma.

Ivone da Silva Rebello

Em Roma, os antigos romanos consideravam o amor como uma loucura ou um delírio passageiro. A paixão amorosa era uma doença. Isto porque a paixão alienava a vontade própria e tornava o ser apaixonado dependente de outra pessoa. Sob o domínio da paixão, o homem perde seu poder, escraviza-se e aliena-se.
Confiava-se à mulher (matrona) a responsabilidade da fecundidade, pois a mesma encarnava os ideais de segurança, estabilidade, permanência e perpetuação da raça, além de gozar na domus uma veneração tal qual à dedicada publicamente a Vênus.
As Matronalia, celebração das mulheres casadas, e a Bona Dea remetem-nos aos ritos de fecundidade da Roma antiga. Estamos diante de uma sociedade viril, em que o caráter religioso da fecundidade está baseado na união mulher e homem. O amor conjugal é visto essencialmente numa perspectiva do "amor fecundo", ou seja, o homem ao desposar uma mulher vai naturalmente torná-la mãe. Daí haver uma preocupação, por parte do homem romano, de proteger as suas esposas das paixões ou outras forças maléficas que pudessem comprometer a estabilidade amorosa.
O amor, como sentimento fundado no desejo carnal, foi uma situação social menosprezada pelos costumes romanos.
A relação conjugal estava baseada na fides do matrimonium, ou seja, na lealdade da mulher ao marido, já que este podia lançar mão das cortesãs, instrumentos do prazer, cuja feminilidade, em princípio, fora profanada.
A partir dos meados do século II a.C., com a influência do helenismo e a evolução dos costumes sociais romanos, vinculados ao enfraquecimento da patria potestas, a relação afetiva entre homem e mulher foi se libertando dos tabus e imposições tradicionais, levando a mulher a uma emancipação progressiva na vida social.
No entanto, a conquista da dignidade da mulher conduziu os romanos ao reconhecimento consciente do verdadeiro amor conjugal e ao depuramento do verdadeiro sentido do amor como fonte de vida espiritual, graças à ascese cristã.
Assim, no tempo de Adriano (117-138 d.C.), as núpcias não eram mais realizadas pelo constrangimento, ou seja, com a intenção de aproximar as gens, ou como nos finais da república, por interesses políticos ou econômicos, mas sim, com o consentimento dos noivos. Nesse contexto, o amor paternal ganha novas dimensões, pois até Cícero já apontara a família como a comunidade natural mais apropriada para proporcionar a benevolência recíproca e a caridade (cf. De Officis I, 17, 54).
A partir dos finais da República, a proliferação do divórcio antecipa a problemática do casamento e do amor conjugal.
Dentro desse contexto social, Catulo é o verdadeiro protótipo do jovem aristocrata provinciano, que chega à urbe e se enamora por uma mulher pertencente a outrem. E, o nascimento desta paixão faz com que o poeta se torne um "escravo" da amante que irá nortear e dar vida a toda sua obra.
Catulo foi um dos poetas latinos que mais cultivou a amizade, ao lado do amor, sendo estes temas de inspiração artística, desenvolvidos conforme a tradição grega: amizades vivas, porém acidentadas por rivalidades e traições.
Dos 116 poemas do Liber, 68 referem-se a amizades e inimizades de personagens do relacionamento do poeta. Um dos seus confidentes foi Cornifício, ao qual Catulo lhe expressa a dor que perpassa a sua alma devido às infidelidades de sua amada Lésbia e chega a lhe pedir uma palavra de consolo. Já Alfeno Varo é um dos seus falsos amigos, pois lhe rouba a amada.

Malest, Cornifici, tuo Catullo,
malest, me hercule, est laboriose,
et magis magis in dies et horas,
quem tu, quod minimum facillimumque est,
qua solatus est allocutione?
Irascor tibi. Sic meos amores?
Paulum quid lubet allocutionis,
maestius lacrimis Somonideis.
(c.38)
Vai mal, Cornifício, o teu Catulo,
vai mal e - por Hércules -, padece demais, muito
mais, a cada dia, a cada hora.
E tu - se era nuga, se era nada -
que consolo deste, que palavras?
Sinto ódio. Assim, és meus amores?
Só poucas palavras, certas, mais
tristes que o lamento de Simônides.
Varus me meus ad suos amores
uisum duxerat e foro otiosum.
(c.10, 1-2)
Varo, para que eu visse seus amores,
de meu ócio no fórum me levou.



As inimizades de Catulo tiveram motivações diversas: quer por ter sido vencido na competição amorosa, quer por rivalidade poética, quer pelo menosprezo com que os seus contemporâneos olharam a sua produção literária.




Retirdo de: "Lésbia: a inspiração romântica de Catulo. Catulo: sua vida, sua obra ".
http://www.filologia.org.br/viicnlf/anais/caderno12-16.html

Apologia de Sócrates - Resenha do livro de Platão.


Pois é, não é de hoje que vivemos mergulhados em dúvidas e incertezas. Bem lá atrás, antes de Cristo (exemplo de julgamento histórico), o homem já se dispunha a pensar a possibilidade do julgamento ao próximo, já havia a chama do fervor à justiça e ao suposto poder de condenar à persona non grata.
Pensando neste assunto, ao ler matéria em jornal, sobre detentos que já poderiam estar em liberdade tentando se reabilitar, mas que pela justiça morosa, apodrecem em celas como ratos, devaneios vieram povoar minha cabeça nesta manhã.
Bom, mas este é assunto contemporâneo, “todo-mundo-sabe-que-todo-mundo-sabe”. Então, numa vã expectativa de tentar entender um pouco mais a nós mesmos, seres humanos, me remeti à Sócrates e senti que falando de seu julgamento, eu poderia, ao menos, dividir com vocês minha aflição frente a tantas verdades confusas, tantos erros sociais, e tantas injustiças.
Quando Começou
Há 399 a.C., Sócrates, diante do tribunal popular, é acusado pelo poeta Meleto, pelo rico curtidor de peles, influente orador e político Ânito, e por Lícon, personagem de pouca importância.
A Acusação
A acusação era grave: não reconhecer os deuses do Estado, introduzir novas divindades e corromper a juventude. O relato do julgamento feito por Platão (428-348 a.C.), a Apologia de Sócrates , é geralmente tido como bastante fiel aos fatos. É dividido em três partes. Na primeira, Sócrates examina e refuta as acusações que pairam sobre ele, retratando sua própria vida, procurando mostrar o verdadeiro significado de sua “missão”. Dirige aos homens palavras que contestam o enriquecimento sem virtude, afirmando que a riqueza deverá vir através da virtude.
Noutro momento de sua defesa, Sócrates dialoga com um de seus acusadores, deixando-o bem embaraçado quanto ao significado da acusação “corromper a juventude”. Demonstra que está sendo acusado por Meleto de algo que este mesmo não sabe ao certo o que significa.
Em nenhum momento de sua defesa - segundo o relato platônico - Sócrates apela para a bajulação ou tenta captar a misericórdia daqueles que o julgavam - linguagem de quem fala em nome da própria consciência e não reconhece em si mesmo nenhuma culpa.
“Parece-me não ser justo rogar ao juiz e fazer-se absolver por meio de súplicas; é preciso esclarecê-lo e convencê-lo.”
Talvez justamente por essas manifestações de altaneira independência de espírito, Sócrates foi condenado.
Como era de praxe, após o veredicto da condenação, Sócrates foi convidado a fixar sua pena.
Mas Sócrates, ignorando qualquer sugestão de pena mínima ou mesmo multas, se deixa condenar a morte.
Segunda parte da Apologia
“Ora, o homem (Meleto) propõe a sentença de morte… Que sentença corporal ou pecuniária mereço, eu que entendi de não levar uma vida quieta? Eu que negligenciei riquezas, negócios, postos militares, tribunas e funções públicas, conchavos e lutas que ocorrem na política…”
Então Sócrates não deixa saída para os juízes. Ou a pena de morte, pedida por Meleto, ou ser alimentado no Pritaneu, enquanto fosse vivo, como herói ou benemérito da cidade.
O Que Significa Morrer?
Essa é a terceira parte da Apologia que pretende ser a transcrição das últimas palavas de Sócrates dirigidas aos que o condenaram. Diz, gemendo e lamentando-se:
Não foi por falta de discursos que fui condenado, mas por falta de audácia e porque não quis que ouvísseis o que para vós teria sido mais agradável, coisas que considero indignas de mim, coisas que estás habituados a escutar de outros acusados.
Nesta altura, Sócrates começa a fazer comparações com a morte:
[...] Mais difícil que evitar a morte, é evitar o mal [...]
[...] A morte pode ser uma dessas duas coisas: “Ou aquele que morre é reduzido ao nada, e não tem mais qualquer consciência, ou então, conforme ao que diz, a morte é uma mudança, uma transmigração da alma do lugar onde nos encontramos para outro. Se a morte é a extinção de todo sentimento, assemelha-se a um desses sonos nos quais nada se vê, mesmo em sonho, então morrer é um ganho maravilhoso [...]”
[...] “Mas eis a hora de partimos, eu para a morte, vós para a vida. Quem de nós segue o melhor rumo, ninguém o sabe, exceto o deus.”
Mas o querido Sócrates teve de esperar trinta dias para sua execução, pois a cidade estaria em festa pela chegada de Teseu que vencera o Minotauro.
No livro Fédon, Platão descreve as conversações que, durante os dias de espera na prisão, Sócrates mantivera com seus discípulos e amigos.
Amigos lhe imploram que fuja em vésperas de sua execução, no que Sócrates responde:
“A única coisa que importa é viver honestamente, sem cometer injustiças, nem mesmo em retribuição a uma injustiça recebida.”
Que tal se nosso legislativo (todo político), tivesse como obrigação, ler e discutir “A Apologia de Sócrates”? Possivelmente eu não teria acordado hoje com pena dos encarcerados e injustiçados.

domingo, 14 de dezembro de 2008

Fotografia: Amor.

Duvida da luz dos astros,
De que o sol tenha calor,
Duvida até da verdade,
Mas confia em meu amor.
(W.Shakespeare)

Técnica para resumos de textos.

Tenho notado nos alunos universitários uma dificuldade incrível em sintetizar idéias, isto é, em fazer resumos. O fato é que esse tipo de atividade raramente é explicada na escola, quando muito solicitada, por isso os alunos chegam à faculdade sem a menor idéia sobre como extrair as idéias principais de um texto.
Antes de mais nada, vale dizer que um resumo nada mais é do que um texto reduzido às suas idéias principais, sem a presença de comentários ou julgamentos. Um resumo não é uma crítica, assim como a resenha o é; o objetivo do resumo é informar sobre o que é mais importante em determinado texto.
Para Platão e Fiorin (1995), resumir um texto significa condensá-lo à sua estrutura essencial sem perder de vista três elementos:
1. as partes essenciais do texto;
2.a progressão em que elas aparecem no texto;
3.a correlação entre cada uma das partes.
Se o texto que estamos resumindo for do tipo narrativo, devemos prestar atenção aos elementos de causa e sequências de tempo; se for descritivo, nos aspectos visuais e espaciais; caso o texto for dissertativo, é bom cuidar da organização e construção das idéias.
Existem, segundo van Dijk & Kintsch (apud FONTANA, 1995, p.89), basicamente 3 técnicas que podem ser úteis ao escrevermos uma síntese. São elas o apagamento, a generalização e a construção.
Apagamento
Como no nome já diz, o apagamento consiste em apagar, em cortar as partes que são desnecessárias. Geralmente essas partes são os adjetivos e os advérbios, ou frases equivalentes a eles. Vamos ver um exemplo.
O velho jardineiro trabalhava muito bem. Ele arrumava muitos jardins diariamente.
Sendo essa a frase a ser resumida através do apagamento, poderia ficar assim:
O jardineiro trabalhava bem.
Cortamos os adjetivo “velho” e o advérbio “muito” na primeira frase e eliminamos a segunda. Ora, se o jardineiro trabalhava bem, é porque arrumava jardins; a segunda informação é redundante.
Generalização
A generalização é uma estratégia que consiste em reduzir os elementos da frase através do critério semântico, ou seja, do significado. Exemplo:
Pedro comeu picanha, costela, alcatra e coração no almoço.
As palavras em destaque são carnes. Então, o resumo da frase fica:
Pedro comeu carne no almoço.
Construção
A técnica da construção consiste em substituir uma sequência de fatos ou proposições por uma única, que possa ser presumida a partir delas, também baseando-se no significado. Exemplo:
Maria comprou farinha, ovos e leite. Foi para casa, ligou a batedeira, misturou os ingredientes e colocou-os no forno.
Todas essas ações praticadas por Maria nos remetem a uma síntese:
Maria fez um bolo.
Além dessas três, ainda existe uma quarta dica que pode ajudar muito a resumir um texto. É a técnica de sublinhar.
Enquanto você estiver lendo o texto, sublinhe as palavras ou frases que fazem mais sentido, que expressam idéias que tenham mais importância. Depois, junte seus sublinhados, formando um texto a partir deles e aplique as três primeiras técnicas.

Fontes:Prática Textual: atividades de leitura e escrita / Vanilda Salton Köche, Odete Benetti Boff, Cinara Ferreira Pavani. — Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.
Estratégias Eficazes para resumir. Chronos - Produção de textos científicos no ensino da língua portuguesa / Niura Maria Fontana. — Caxias do Sul: UCS, n.1, p.84-98, 1995.
Texto retirado de: http://www.lendo.org/como-fazer-um-resumo/

Povo Brasileiro.

Suely Monteiro
O povo brasileiro com sua graça e muita simpatia, se espalha por todos os lugares, deixando por onde passa a marca registrada de sua regionalidade, confundindo os turistas, marcando espaço nas praças internacionais, e acionando mulheres e homens do mundo para que venham, todos, curtir os brasis do Brasil.
É fácil ser seduzido pelo brasileiro carregado de espontaneidade e leveza , principalmente, quando ele deixa "rolar um sentimento" que enrola, as belas e os belos desprevenidos da força de seu poder...
Suas façanhas foram contadas em prosa e verso e, desde as velhas eras, marcam com humor, presença na relação pitoresca de quebra de protocolos, na lista dos que sabem enganar a dor e continuar sorrindo, nas grandes procissões em busca de prazer e, na seriedade dos cultos aos domingos.
O brasileiro sabe levar a vida deixando a vida levá-lo para os cantos onde o sonho, em imagens
marcantes o espera para embriagá-lo em suas proezas difusas...
Ah brasileiro, quando você tomará juizo se é necessário mesmo ter juizo!
Você, meu povo amável, gentil, que faz do seu dia-a-dia um poema de beleza tão rara que comove mesmo àqueles que não estão nem aí pra poesia, me prende o coração e a mente e me enternece com a capacidade de transformar tudo em arte.
Brasileiro, você é o maior tesouro que o solo americano desvelou!!!
Fotografia: Flor de Pequi.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Filosofia da Mente.

Robô criado por Rodney Brooks sobe e desvia de objetos .

Saudação!

Eu te saudo Bahia, na figura de teus Orixás!
E eu te agradeço, maninha, por fazeres parte da minha vida!

Reflexão Cotidiana.

Por que estamos vivendo em Bolhas?
Hoje, ouvindo o jornal matinal pela TV, me dei conta que estou vivendo no futuro... Sim, futuro mesmo. Aquilo tudo que eu imaginava só fosse acontecer em um futuro não tão próximo, já está acontecendo, nesse instante... já. Confesso que me emocionei... ao descobrir que de certa forma faço parte deste tempo, dessa época... me senti orgulhosa, vejam vocês... tantas descobertas, inovações tecnológicas... Primeiro transplante em ser humano de órgão criado em laboratório a partir de células tronco do próprio paciente, não é o máximo? Daqui pouquíssimo tempo, os antiquíssimos notebooks serão substituídos por folhas de "papel" onde poderemos acessar as mais recentes notícias, assim como ler a enciclopédia britânica com um só toque. E o celular será nossa própria vestimenta, que não sei se poderemos chamar de roupa...Não é bárbaro?

É uma pena que sendo o universo bipolar, tudo tem dois lados, dois pólos, e o lado perverso também cresce... Ao tomar um ônibus, tive o desprazer de me sentar atrás do banco de um jovem casal e mesmo sem querer, presenciar a forma de tratamento que está se alastrando em nossa sociedade. Vou descrever ligeiramente a cena, para que possam ter uma noção do que estou falando. Ele ao chegar disse:_Eu quero a janela! Da onde ela prontamente saiu e cedeu o lugar próximo à janela a ele, que sentou-se e, imediatamente deitou sua poltrona sobre mim, que quase fiquei sufocada embaixo daquele mal educado ser. A conversa de ambos, que mesmo nauseante não podia deixar de ser ouvida, era muitas vezes cortada por ele dizendo a ela:_ Cala a boca! O que ela sempre dócilmente obedecia, de uma maneira natural, sem revolta alguma. Isso tudo mesclado por troca de carícias de ambas as partes, e cuidados que ela dispensava a ele, lhe servindo sanduiches e refrigerante, os quais ele ingeria como se fosse Nero com um traseiro de leitoa nas mãos, em um de seus banquetes em Roma. O que mais me chamou a atenção foi quando o celular dela, aquela doce e carinhosa criatura, tocou, provavelmente uma pessoa de sua família, que ela atendeu da mesma forma grosseira e mal educada que era tratada pelo seu parceiro.

Isso tudo me faz entender o porque das pessoas viverem em bolhas... Sim, as pessoas se fecharam em seus mundos, da onde por pequeninas aberturas respiram de vez em quando... e não importa onde estejam e nem com quem estejam, continuam em suas bolhas, fechados hermeticamente "protegidos" em seus mundos, de indesejáveis invasões... Como diz minha irmãzinha, é uma pena... Estamos vivendo uma vida artificial, sem nos darmos conta. Isso não é natural... E tudo que não é natural, tem seu preço... E o preço disso tudo é a insatisfação, é a ansiedade, ansiar... esperar que alguma coisa nova surja para nos tirar dessa situação em que nos colocamos...

E possamos, respirar livres e falar com as pessoas sem ter medo, confiando que elas não nos invadam e nos respeitem, para que enfim, possamos amar e ser amados de maneira fraterno-natural de ser...
Pena também é saber, que tudo isso que falei pensando ser a descoberta do ano é tudo obsoleto, já foi, já era... já foi pensado e escrito por trocentas mil pessoas... por isso, tiro o chapéu (rs, que expressão mais antiga!), para os senhores Físicos, Cientistas, Pesquisadores, que conseguem inovar, descobrir, intuir tanto em tão pouco tempo...

Fonte: Rachel Psico - http://pscoblog.blogspot.com/

Reflexão Cotidiana.

O diálogo é o principal alimento da democracia e sua utilização possibilita o crescimento sadio das sociedades em geral.
Precisamos lembrar, que à despeito do alto valor que cada um de nós se dá, respeitar as diferenças significa fazer uso do bom senso que, segundo Descartes, foi distribuido igualmente.

Incomensurabilidade


“A incomensurabilidade é um termo da matemática que significa “falta de medida comum”.

Foi adoptado por Kuhn e por outro filósofo, chamado Paul Feyerabend (1924-94), defendendo ambos que as teorias científicas bem sucedidas são frequentemente incomensuráveis entre si no sentido em que não há uma forma neutra de comparar os seus méritos. Uma das ideias mais radicais que emergiu do trabalho de Kuhn é a de que o que conta como evidência num dado domínio pode depender do paradigma que lhe está subjacente. Se isto for correcto, como será possível comparar racionalmente paradigmas concorrentes?

Kuhn defende que não há padrão mais elevado para comparar teorias do que o consentimento da comunidade relevante, e que “[a escolha] entre paradigmas concorrentes acaba por ser uma escolha entre modos de vida comunitários incompatíveis” (Kuhn, 1962: 94).Assim, pode entender-se que Kuhn está a sugerir que o chamado progresso científico, em vez de se basear na evidência, não é mais do que o resultado da psicologia de massas, e que a confirmação empírica de uma hipótese é uma falsidade retórica. (Isto inspirou o que ficou conhecido como “o programa forte da sociologia do conhecimento”, que pretende explicar as mudanças das teorias científicas em termos de forças psicológicas e sociológicas.) Inúmeras pessoas usaram os argumentos de Kuhn para defender aquilo que os filósofos denominam de relativismo do conhecimento científico, que é a perspectiva de que “as verdades” das teorias científicas são total ou parcialmente determinadas por forças sociais. Uma forma simples de relativismo epistémico diria que, por exemplo, uma teoria particular da física ou da biologia só poderia ser considerada conhecimento porque aqueles que possuíam estatuto e influência no interior da comunidade dos físicos ou dos biólogos acreditavam nela.A tese de que paradigmas concorrentes são incomensuráveis é defendida pela teoria da não-subordinação à observação; se é verdade que todas as observações estão contaminadas por teorias anteriores, então os méritos de cada paradigma não podem ser comparados através do recurso a testes experimentais porque os defensores dos paradigmas concorrentes estarão necessariamente em desacordo sobre o que é observado. Vimos que é este o caso dos argumentos entre Galileu e a Igreja sobre o facto da Terra mover-se ou não. A Revolução Copernicana é um exemplo de que, quando há mudança de paradigma, há igualmente mudança dos métodos que são apropriados para testar certos princípios teóricos, e o mesmo sucede com os problemas que a ciência deve resolver. Para o cientista moderno, um corpo permanecerá em repouso ou em movimento uniforme a menos que uma força intervenha para alterar esse estado, pelo que não há necessidade de explicar o que mantém, digamos, uma flecha no ar depois de ter saído do arco, mas há necessidade de explicar como a gravidade e a resistência do ar se combinam para impedir que continue a mover-se eternamente numa linha recta. Para um aristotélico, pelo contrário, há uma necessidade premente de explicar o que mantém a seta num estado não-natural de movimento depois de sair do arco.É claro que, por vezes, diferentes pessoas classificam as coisas do mundo de formas radicalmente diferentes. Ocasionalmente parece que para avaliar as crenças das pessoas devemos compreender as asserções particulares que fazem relativamente à totalidade da sua prática linguística. Por vezes, alguns trabalhos anteriores na ciência só podem ser compreendidos à luz de teorias posteriores; por exemplo, a teoria do calor específico dos corpos desenvolvida por Pierre Laplace (1749-1827), de acordo com a qual o fogo é uma substância material, permitiu a Laplace calcular a velocidade de propagação das ondas sonoras de forma bastante precisa. Um físico contemporâneo pode imediatamente perceber o seu método apesar do facto do calor ser agora entendido como uma forma de energia associada à vibração das moléculas. Por outro lado, o raciocínio de um Renascentista como Paracelso (1493-1541) é praticamente incompreensível para um cientista moderno, uma vez que toda a sua forma de olhar para o mundo e o tipo de respostas que procura ser completamente estranho a uma observação moderna. Por exemplo, ele defende que uma planta cujas folhas possuam um padrão que se assemelhe a uma cobra fornecerá protecção contra venenos, e que bons médicos não devem ter barba vermelha. Com efeito, algumas destas afirmações não só parecem falsas como não são candidatos elegíveis à verdade ou à falsidade, porque devem a sua inteligibilidade a estilos de raciocínio esquecidos. Por isso, já não é possível responder a questões de antigos paradigmas porque, por vezes, acabamos a pensar que elas nem sequer fazem sentido.Kuhn associa a mudança de paradigma a um “interruptor gestalt” do tipo que experienciamos quando vemos alternadamente uma dada figura ora como um coelho ora como um pato. A questão central dos interruptores gestalt é que são holísticos. De igual modo, as diferenças entre paradigmas ao nível dos conceitos, ontologia e assim por diante, são globais e sistemáticas. Teorias que pertencem a diferentes paradigmas são incomensuráveis, no sentido em que os termos e os conceitos das teorias científicas de diferentes paradigmas não são traduzíveis entre si; isto designa-se de incomensurabilidade de sentido. Kuhn defende que os temos científicos ganham o seu significado a partir da sua posição na estrutura da totalidade da teoria. Por exemplo, “massa” na teoria de Newton significa algo diferente de “massa” na teoria da relatividade de Einstein. Parece então que quando comparamos o estatuto de uma frase que inclui o termo massa nestas duas teorias, estamos realmente a comparar duas frases com diferentes sentidos. Na Revolução Copernicana, a ideia de movimento sofreu uma mudança radical. Será que podemos realmente dizer que os aristotélicos e Galileu possuem diferentes teorias sobre a natureza do movimento ou devemos dizer que apenas atribuem significados diferentes à palavra “movimento”? Segundo Kuhn, não há uma resposta definitiva para esta questão porque os termos científicos nem sempre possuem um significado fixo e preciso (…).Antes do trabalho de Kuhn era amplamente aceite pelos filósofos que o significado de um termo, “átomo”, por exemplo, era determinado pelo que a teoria dizia sobre os átomos. Se isto é verdade, então diferentes teorias sobre os “átomos”, que dizem coisas diferentes sobre eles, referem-se efectivamente a coisas diferentes. Isto designa-se incomensurabilidade de referência, e são más notícias para o realismo, pois sugere que diferentes teorias sobre os “electrões” são de facto teorias sobre coisas diferentes, pelo que não há razão para acreditar que a ciência progrediu na compreensão da natureza essencial das coisas. Isto parece implicar que não há um modo único de ser do mundo, mas que o mundo em que viemos é um artefacto das nossas teorias sobre ele. De facto, Kuhn afirma que “quando os paradigmas mudam, o mundo muda com eles” (Kuhn, 1962: 111). Segundo esta perspectiva, as diferentes linguagens de diferentes teorias correspondem a diferentes mundos de diferentes teorias, e os defensores de paradigmas concorrentes habitam diferentes mundos; por exemplo, o mundo de Einstein é literalmente diferente do mundo de Newton. Consequentemente, não podemos dizer que Copérnico descobriu que Ptolomeu e outros filósofos anteriores estavam errados ao pensar que o sol andava à volta da Terra, porque a Terra de Copérnico era literalmente um objecto diferente do ponto de vista de Ptolomeu. Desta forma, Kuhn tem sido visto como um opositor da noção de verdade científica e até de realidade objectiva. Por isso, há algumas pessoas que defendem não só que o conhecimento científico é relativo, mas que a própria realidade é socialmente construída. Assim, por exemplo, diz-se por vezes que os físicos constroem literalmente os electrões nos seus laboratórios. Segundo esta perspectiva, designada de construtivismo social, um electrão possui o mesmo estatuto ontológico de, digamos, um partido político ou um estado-nação, no sentido em que ambos existem apenas porque o povo acredita que eles existem.»Ladyman, James (2002). Understanding Philosophy of Science. London: Routledge, pp. 115-8 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)
Fonte: http://qualia-esob.blogspot.com/search/label/Incomensurabilidade

Argila

Raul de Leoni (1895 - 1926)

Nascemos um para o outro, dessa argila
De que são feitas as criaturas raras;
Tens legendas pagãs nas carnes claras
E eu tenho a alma dos faunos na pupila...

Às belezas heróicas te comparas
E em mim a luz olímpica cintila,
Gritam em nós todas as nobres taras
Daquela Grécia esplêndida e tranquila...

É tanta a glória que nos encaminha
Em nosso amor de seleção, profundo,
Que (ouço de longe o oráculo de Elêusis)

Se um dia eu fosse teu e fosses minha,
O nosso amor conceberia um mundo
E do teu ventre nasceriam deuses...

Sermão X - Maria Rosa Mística, de Padre António Vieira.

Edição de base:
Sermões Escolhidos, vol. III,
Edameris, São Paulo, 1965.

Beatus venter qui te portavit et ubera quae suxisti
(I).
As coisas que se guardavam na Arca do Testamento. Se as Tábuas da Lei sempre se guardaram na Arca, o Maná, por que se não guardou sempre nela. A lei escrita, representação e figura do que depois havia de ser. A aparente sem-razão do Testamento Velho. O mistério da Arca declarado por uma mulherzinha do povo. Assunto: o Rosário, para ser bem rezado, não se há de rezar só com a boca, senão com o coração e com as mãos.



Sobre as coisas que se guardavam na Arca do Testamento, quais e quando, há grande questão entre os expositores sagrados. Três, porém, são certas, e de tão oculto mistério como de particular reparo. A primeira é que houve tempo em que na Arca do Testamento só estiveram as Tábuas da Lei, porque assim o diz expressamente o texto, no Terceiro Livro dos Reis. In arca autem non erat aliud nisi duae tabulae lapideae, quas posuerat Moyses
(2). - A segunda, que também houve tempo em que esteve na mesma Arca a urna do Maná, porque assim o afirma S. Paulo, na Epístola aos Hebreus: Arcam testamenti, in qua urna aurea habens manna (3). - A terceira, que depois deste tempo a mesma urna do Maná, que estava dentro da Arca, foi colocada fora, mas junto a ela, no Sancta Sanctorum, porque assim o tinha mandado Deus, como consta no Livro do Êxodo e que sempre estivesse em sua presença: Repone coram Domino (4).
Suposta esta verdade da História Sagrada, se passarmos a inquirir a razão e mistério dela, quem haverá que no-lo diga literalmente? Se as Tábuas da Lei sempre se guardaram na Arca, o maná por que não se guardou sempre nela? E se o maná esteve algum tempo dentro na mesma Arca, porque depois se tirou fora? E se esteve fora, por que não em outro lugar, nem longe, senão junto à mesma Arca? A razão e mistério literal desta tão notável variedade em matéria tão grande sempre esteve oculto até hoje. Hoje, porém, o descobriu e declarou, quem? Na parte que pertence ao mana, uma mulherzinha do povo, que não tinha mais ciência que a sua devoção, dizendo: Beatus venter qui te portavit et ubera quae suxisti - e na parte que pertence às Tábuas da Lei, o mesmo Autor da Lei e a mesma Sabedoria eterna, respondendo: Quinimmo beati, qui audiunt verbum Dei et custodiunt illud
(5).
Para inteligência do que digo, havemos de supor, com S. Paulo, que tudo o que sucedia, pela maior parte, ou se fazia no tempo dos patriarcas e da lei escrita, era representação e figura do que depois havia de ser no tempo da lei da graça: Haec autem omnia in figura contingebant illis
(6). Este é o princípio fundamental por que a muitas coisas daquele tempo não achamos a razão de a fazerem, antes parecem feitas contra toda a razão, ainda entre homens santos. E a razão de se lhes não achar razão é porque a razão da figura não está na figura, senão no figurado. Se víssemos que um pintor pintava um rei pastando entre os animais e comendo feno, e outro com o braço esquerdo muito curto, e o direito muito comprido, parecer-nos-ia isto uma grande impropriedade. Mas se o pintor nos respondesse que no primeiro retratava a Nabucodonosor, e no segundo a Artaxerxes, que pela desigualdade dos braços se chamou Longimano, acharíamos a razão da pintura, não nos retratos, senão nos retratados. Da mesma maneira em outros casos do Testamento Velho. Que coisa mais fora de razão que levar Jacó o morgado a Esaú, sendo Esaú o primogênito, e Jacó o filho segundo? E que maior sem-razão outra vez, que servir Jacó sete anos por Raquel, e darem-lhe em lugar de Raquel a Lia? Mas, se olharmos para os originais destas mesmas figuras, acharemos neles as razões que nelas de nenhum modo apareciam. Jacó e Lia representavam o povo gentílico. Esaú e Raquel o judaico. E levou Jacó o morgado a Esaú, porque ó morgado da fé e da graça, que era do povo judaico que foi o primeiro, se havia de passar ao povo gentílico, que é o segundo. E sendo Jacó figura de Cristo, que serviu pela sua Raquel, que era o povo judaico, como ele mesmo disse: Non sum missus nisi ad oves, quae perierunt domus Israel (7) - desposou-se primeiro com Lia, que é o povo gentílico, e depois se há de desposar também com Raquel, que é o povo judaico, porque como diz S. Paulo: Donec plenitudo gentium intraret, et sic omnis Israel salvus fieret (8).
Ao nosso ponto agora. Estar primeiro o maná dentro da Arca, e depois fora e junto a ela, ninguém houve jamais que desse ou pudesse dar a razão de uma mudança tão notável. Mas, se pusermos os olhos nos originais que estas duas figuras representavam, acharemos a razão tão clara, que uma mulher sem letras a entendeu e publicou ao mundo. A Arca do Testamento era figura da Virgem Maria; o maná, de seu Filho, Cristo: e primeiro esteve o maná dentro na Arca, porque primeiro o concebeu a Virgem, e o trouxe em suas entranhas: Beatus venter qui te portavit. - E depois esteve fora, mas não apartado, senão junto à mesma Arca, porque a Senhora o teve depois em seus braços, e o criou a seus peitos: Et ubera quae suxisti. - E por que razão as Tábuas da Lei sempre estiveram na Arca, assim quando o mana esteve dentro nela, como quando esteve fora? A razão e o mistério é porque a mesma Virgem Maria, significada na Arca, em todo o tempo de sua vida, ou tendo dentro em si, ou não tendo dentro em si ao Filho de Deus, sempre teve a lei do mesmo Deus dentro em si, e a guardou com a mais pura, com a mais perfeita e com a mais alta observância a que puderam aspirar homens nem anjos. E porque esta foi a maior e mais soberana prerrogativa da Virgem, Senhora nossa, por isso acudiu logo seu bendito Filho, declarando que, por ser a mais observante da Lei de Deus, era mais bem-aventurada ainda que por ser Mãe de Deus: Quinimmo beati, qui audiunt verbum Dei et custodiunt illud.
Explicado assim o Evangelho, que direis sobre ele quanto à festa? O que determino dizer é que o Rosário, para ser bem rezado, não se há de rezar só com a boca, senão com o coração e com as mãos. O fundamento que para esta doutrina - mui necessária - nos dão as palavras do tema, dirá o discurso: Ave Maria.

§ II

A amorosa instrução de Deus a sua Mãe e a nossas almas: haveis-me de trazer estampado no coração e estampado no braço. Os dois modos com que a Virgem, Senhora nossa, trouxe a Deus interiormente no coração e nos afetos, e exteriormente nas mãos e nas obras.
Pone me ut signaculum super cor tuum, ut signaculum super brachium tuum
(9): Para me agradares inteiramente, Esposa minha - diz Deus - haveis-me de trazer estampado no coração, e estampado no braço. - Os lugares hão de ser dois, um dentro, outro fora, mas a estampa dentro e fora há de ser uma só, e essa minha. Eu estampado no coração, porque eu hei de ser o sigilo de vossos pensamentos, e eu estampado no braço, porque eu hei de ser o caráter de vossas obras: In corde sunt cogitationes, in brachio operationes: super cor ergo, et super brachium sponsae dilectus ut signaculum ponitur (10) - diz S. Gregório Papa. - Mas com quem fala Deus nestas palavras, e a quem dá o seu cuidado esta amorosa instrução? Em primeiro lugar a sua Mãe, em segundo a nossas almas. Antes de ser Mãe de Deus, e depois de ser Mãe de Deus, sernpre a Senhora trouxe ao mesmo Deus dentro e fora, no interior e no exterior, no coração e nos braços, mas por diferente modo. Antes de ser Mãe de Deus, porque quanto cuidava e obrava tudo era de Deus, em Deus e por Deus. Os pensamentos e obras do Filho antes de ser Filho, ainda não eram humanas; mas as da Mãe antes de ser Mãe, por imitação do mesmo Filho, já eram divinas: Super cor Virginis et super brachium dilectus ponitur ut signaculum - diz Alano - quia in cogitationibus, quae notantur per cor, et in actionibus, quae per brachium, Virgo Filium imitatur (11). - E se isto foi antes de ser Mãe de Deus, depois de o ser que seria? Foi o mesmo, mas por modo singularíssimo, nem imaginado antes, nem inimitável depois a nenhuma criatura. Teve a Deus dentro e no coração: Ut signaculum super cor tuum - porque o teve em suas entranhas: Beatus venter qui te portavit - e teve-o fora e no braço: Ut signaculum super brachium tuum - porque o teve em seus braços e a seus peitos: Et ubera quae suxisti. - Assim comenta o texto dos Cânticos, com devota e douta novidade, Cornélio, e o concorda excelentemente com o do nosso Evangelho: Beata Virgo Christum posuit super cor suum, cum eum novem mensibus in utero portavit; super brachium vero, cum eum jam natum in ulnis et brachiis gestavit (12).
Estes foram os dois modos com que a Virgem, Senhora nossa, como exemplar de toda a perfeição imitável, e como exceção de toda a possível, observou aquele oráculo do Espírito Santo, de quem foi a primeira e principal Esposa, trazendo a Deus no coração e no braço, e a Cristo dentro em si e fora, bem assim como a Arca do Testamento a urna do maná. Um modo foi espiritual, outro corporal, e o corporal, com assombro da natureza e da graça, mais divino que o espiritual. Trouxe a Deus corporalmente no coração e no braço: Super cor et super brachium - porque corporalmente o concebeu e teve em suas entranhas, e corporalmente o criou a seus peitos e o trouxe em seus braços; e esta é a primeira bem-aventurança da Virgem Maria, singular e unicamente sua, e a nenhuma outra criatura comunicável: Beatus venter qui te portavit et ubera quae suxisti. - E trouxe a Deus espiritualmente no coração e no braço, porque espiritualmente, em todos seus pensamentos e afetos, e espiritualmente, em todas suas obras e ações, interior e exteriormente trouxe sempre a Deus em si e consigo, e esta é a segunda bem-aventurança na qual, posto que a Senhora foi eminentíssimamente superior a todas as almas, é contudo imitável e comunicável a todas, e a que o Senhor preferiu à primeira: Quinimmo beati qui audiunt verbum Dei et custodiunt illud. - E como este segundo modo de trazer a Deus interiormente, no coração e nos afetos, e exteriormente, nas mãos e nas obras, é o que todos podemos e devemos imitar, este é o que a Senhora do Rosário propõe hoje, e ensina a todos os seus devotos, exortando-os, com seu exemplo, a que não só tragam o Rosário na boca, senão também no coração e nas mãos: no coração, imitando, do modo que pode ser, o ato de ter Cristo em suas entranhas: Beatus venter qui te portavit - e nas mãos, imitando do mesmo modo o ato de o ter nas suas, quando o criou a seus peitos: Et ubera quae suxisti.

§ III

Por que naquela instrução geral às almas devotas não faz Deus menção da boca? Profecia de Davi sobre as línguas enganosas. A visão dos vinte e quatro anciãos do Apocalipse. A oração das mãos no Salmo XLIV de Davi. Razão do nome Pro Rosis, dado pelo profeta a esse salmo. O Rosário, arco com que atiramos às nuvens as setas de nossas orações.
Para prova e entendimento deste ponto, tão importante e essencial à devoção do Rosário, o que noto, e é digno de grande reparo naquela instrução geral do Espírito Santo, é que só pede Deus às almas devotas que o tragam no coração e nas mãos, e não faz menção da boca: Pone me ut signaculum super cor tuum, ut signaculum super brachium tuum. - E não diz mais Davi, grande mestre da oração e da devoção? Diz que sempre trazia os louvores de Deus na boca: Semper laus ejus in ore meo
(13). - Pois, se Deus deseja, aconselha e pede às almas devotas que o tragam no coração e nas mãos, por e que lhes não diz também que o tragam na boca? Porque Deus naquelas palavras - como também a Senhora do Rosário hoje - não exorta a orar, mas ensina como se há de orar. Supõe que se ora e reza com a boca, e acrescenta que há de ser juntamente com o coração e mais com as mãos, porque, se o coração não forma as orações, e as mãos as não informam, se o coração as não forma com os afetos, e as mãos as não informam com as obras, por mais que a boca dê vozes, todas nos ouvidos de Deus são mudas. Assim o profetizou Davi de todas as línguas enganosas: Muta fiant labia dolosa (14) - mas, se as línguas enganosas tanto enganam e tanto falam, e são as que mais falam e as melhor ouvidas, quando, ou onde, ou diante de quem se cumpre esta profecia de que serão mudas? As línguas enganosas de que fala o profeta, como depois veremos, são as daqueles cujo coração e cujas mãos não dizem com o que a língua diz; e estas línguas, por mais que falem, e por mais bem faladas que sejam, para com Deus, a quem ninguém engana, são mudas. Só o coração e as mãos são as que dão voz à língua, e língua à oração diante de Deus.
Viu S. João no Apocalipse aqueles vinte e quatro anciãos que assistem ao trono de Deus, e diz que todos tinham nas mãos cítaras e redomas cheias de suavíssimos cheiros, e que deste modo se prestaram diante do Cordeiro, que é Cristo: Et viginti quatuor seniores ceciderunt coram Agno, habentes singuli citharas et phialas aureas plenas odoramentorum
(15). - Não sei se reparais nas mãos e nos instrumentos destes músicos do céu, e digo músicos, porque logo acrescenta o evangelista que cantavam uma letra nova: Et cantabant canticum novum (16). - Pois, se eles tinham as cítaras em uma mão, e as redomas na outra: Habentes citharas et phialas - como podiam tocar as cítaras? Saibamos primeiro quais eram as redomas, e elas nos soltarão a dificuldade, que não está mal argüida. Ruperto, Beda, Ansberto, Ricardo, Vitorino, Hugo Cardeal, Dionísio Cartusiano, a Glosa, e todos concordemente dizem que as redomas são os corações. E ainda que os corações estejam nas mãos, nem por isso as mãos deixam de tocar as cítaras; antes, quando as mãos e os corações juntamente as tocam, só então são as suas vozes agradáveis a Deus, porque desacompanhadas dos corações e das mãos, nem são agradáveis, nem têm consonância, nem são vozes. Serão vozes para os ouvidos humanos, mas para os divinos não são orações. O mesmo texto o declara admiravelmente: Habentes citharas et phialas plenas odoramentorum, quae sunt orationes sanctorum (Apc 5, 8 ): Tinham - diz - em umas mãos as cítaras e nas outras as redomas cheias dos suaves cheiros, que são as orações dos santos. - De sorte que as orações não estavam nas cítaras, senão nas redomas, porque a oração não consiste no som e nas vozes, senão nos corações e nas mãos em que as redomas estavam.
E, suposto que a réplica do oráculo de Salomão, Super cor et super brachium - foi o texto de seu pai, Davi, Semper laus ejus in ore meo - diga-nos o mesmo Davi se a sua oração, quando orava, era só de boca, ou de boca, de coração e de mãos. É texto que tem que entender, mas, bem entendido, admirável: Eructavit cor meum verbum bonum, dico ego opera mea regi. Lingua mea calamus scribae (Sl 44, 2): Saiu do meu coração com grande ímpeto uma palavra boa: eu digo a Deus as minhas obras; a minha língua é pena de quem escreve. - E que quer tudo isto dizer? Nem mais nem menos o que eu vou dizendo. Primeiramente, a matéria de que fala, e a que chama palavra boa, é o Salmo quarenta e quatro, cujo prólogo ou dedicatória a Deus é este primeiro verso. Diz, pois, Davi que tudo o que representa a Deus naquela sua oração são palavras boas: Verbum bonum - e acrescenta que todas lhe saíram do coração: Eructavit cor meum - e do coração, não de qualquer modo, fria ou negligentemente, senão com grande ímpeto e afeto, que isso quer dizer eructavit. - E já temos que as palavras com que Davi orava a Deus, não só eram de boca, senão de boca e de coração. Mas estas mesmas palavras boas, e saídas do coração quando Davi fala com Deus, não diz que são palavras, senão obras: Dico ego opera mea regi. - Pois, se já lhe tinha chamado palavras, como agora lhe chama obras? - Porque a minha língua, diz ele, é pena de quem escreve: Lingua mea calamus scribae. - Não se pudera declarar melhor nem mais discretamente. A pena é a língua das mãos, e assim como a língua da boca fala palavras, a língua das mãos fala obras: Dico ego opera mea. - De maneira que, ajuntando toda esta sentença, que parecia tão desatada, o que nos ensina Davi, com o exemplo da sua oração, é que quando oramos a Deus não basta que as palavras sejam boas e santas: Verbum bonum - nem basta que quando as pronunciamos falemos com Deus: Dico ego opera mea regi - mas é necessário que não só saiam da boca, senão do coração: Eructavit cor meum - nem só do coração, senão também das mãos. Lingua mea calamus scribae - e que o saírem do coração se prove com os afetos: Eructavi - e o saírem das mãos se prove com as obras: Opera mea.
Este é o modo com que digo, ou nos diz e ensina a Virgem, Senhora nossa, que havemos de rezar o seu Rosário: não com a boca somente, senão com o coração e com as mãos. E para que vejamos que o salmo de Davi, que acabo de explicar, fala com os professores do Rosário própria nomeadamente, leiamos-lhe o título ou sobrescrito, que é milagroso. O título deste salmo quarenta e quatro, na língua hebraica, em que foi escrito, é Susanim, que quer dizer: Pro rosis, para as rosas. E que tem este salmo com as rosas, ou as rosas com este salmo? Agora o veremos. Davi, quando compunha os seus salmos, conforme a composição e matéria deles, ordenava juntamente quais eram os instrumentos a que se haviam de cantar. Assim consta do título de muitos outros. E segundo este uso dizem graves expositores, e de grande erudição, como Mariana e Tirino, que a razão de dar Davi tal título a este salmo foi porque o nome do instrumento a que se havia de cantar era derivado de rosas, assim como as contas por onde rezamos se chamam Rosário. Pode haver maior propriedade? Pois ainda tem outra maior, porque a matéria e assunto de todo o salmo, não alegórica, senão literalmente, como dizem todos os doutores católicos e o confessam os mesmos rabinos é um epitalâmio ou poema nupcial do futuro rei Messias, que é Cristo, e da Rainha, sua esposa, que é a Virgem Maria. A primeira parte, que começa: Speciosus forma prae filiis hominum
(17) - contém os mistérios do Filho Deus feito homem; a segunda, que começa: Astitit regina a dextris tuis (18) - contém os mesmos mistérios, em que a Mãe Santíssima lhe foi sempre inseparável companheira, e por isso comuns a ambos. E porque estes mistérios são os mesmos de que se compõe o Rosário, esta foi a razão por que o salmo em que se profetizavam se mandou também cantar profeticamente, não a outro instrumento, senão aquele que se chamava das rosas: Pro rosis.
O que agora resta é que todos os devotos do Rosário se conformem com esta profecia em o trazer, não só na boca, senão no coração e nas mãos. A íris, ou arco celeste, com as três cores misteriosas que nele pintam e distinguem os reflexos do sol, já dissemos noutra ocasião que era figura do Rosário; agora nos ensina a Senhora como havemos de usar deste arco, para que as setas de nossas orações rompam as nuvens, penetrem os céus, e firam o coração de Deus. Notou engenhosamente Santo Ambrósio que o arco celeste não foi feito para Deus atirar setas aos homens, porque no tal caso havia de ter as pontas voltadas para o céu; mas tem as pontas voltadas para a terra, porque foi feito para os homens atirarem setas a Deus. Porém, isto não o podiam os homens fazer, nem no primeiro, nem no segundo estado do mundo, porque o arco não tinha corda. E quando a teve? Quando se deu princípio aos mistérios do Rosário no primeiro de todos, que foi a Encarnação do Verbo. As duas pontas do arco eram a divindade e a humanidade, e a união hipostática foi a corda que atou uma ponta com a outra. Armado assim este fortíssimo arco, formado dos mistérios de Cristo, divinos juntamente e humanos, que são os mesmos do Rosário, as setas, que são as orações vocais, como se hão de atirar? Hão-se de atirar como se atiram as setas. As antigas amazonas, cujas armas eram arco e aljava, para poderem atirar mais forte, e mais expeditamente as suas setas, cortavam os peitos direitos. Tanto importa para a força e impulso do tiro que entre o peito e a mão não haja impedimento, mas se ajuntem e unam. Pois, assim como a seta para adquirir violência há de sair da mão e do peito, assim o coração e as mãos são as que dão o impulso às nossas orações, que doutro modo não teriam força. Mas, para que buscamos semelhanças ou exemplos estranhos? O mesmo uso cristão, muito diverso do modo com que oravam os antigos, nos ensina praticamente estes dois preceitos ou segredos da arte de orar. Que fazemos quando oramos, se queremos orar devota e eficazmente? Não levantamos as mãos ao céu? Não as aplicamos ao peito? Não as pomos sobre o coração? E se a dor, ou a necessidade, ou a devoção é muita, não apertamos o mesmo coração com elas? Pois, isto que fazemos no exterior, é o que havemos de obrar interiormente quando oramos, não orando só com a boca, mas ajudando e acompanhando as nossas orações com o coração e com as mãos, e não só com o coração, ou só com as mãos, senão com o coração e com as mãos juntamente. Com o coração, isto é super cor, e nos afetos, imitando a Virgem Maria quando trouxe a Cristo em suas entranhas: Beatus venter qui te portavit - e com as mãos, isto é, super brachium, e nas obras, imitando a mesma Senhora quando o teve em seus braços e a seus peitos: Et ubera quae suxisti.

§ IV

O que pregou o profeta Jeremias à triste cidade de Jerusalém, quando chorava suas calamidades. Os dois impedimentos certos por que os rezadores não são ouvidos: ou porque estão longe de Deus, ou porque, como mudos, só movem os beiços. Quais são os Monges de Deus? Os dois instrumentos de falar do homem: a língua e o coração. Os homens de dois corações.
Isto é, devotos do Rosário, o que deverão fazer todos os professores deste santíssimo instituto; mas a causa de muitos o exercitarem com pouco fruto, muito temo que seja porque oram só com a boca, sem coração e sem mãos. Isto mesmo que eu tenho pregado, e pelos mesmos termos, pregou o profeta Jeremias à triste cidade de Jerusalém, quando chorava suas calamidades: Consurge, lauda, surge, ora et obsecra - lê o hebreu - effunde sicut aquam cor tuum ante conspectum Domini; leva ad eum manus tuas pro anima parvulorum tuorum
(19): Ora, Jerusalém, a Deus - diz o profeta - e ora com o coração e com as mãos: com o coração prostrado por terra e com as mãos levantadas ao céu. Effunde cor tuum et leva manus tuas - e deste modo, e nesta postura, que é a mais própria para mover as entranhas de Deus, roga à sua - divina misericórdia se compadeça da miséria de teus filho. Assim o pregou o profeta, e o persuadiu em parte, mas com pouco ou nenhum fruto, e sem remédio. Por quê? Porque, ainda que faziam sacrifícios e orações a Deus, os corações e as mãos não estavam com ele. Ouçamos primeiro as queixas dos corações, e logo ouviremos as das mãos.
Populus hic labiis me honorat: cor autem eorum longe est a me
(20). - Estas palavras disse antigamente Deus ao povo de Israel, por boca do profeta Isaías (21), e depois as repetiu Cristo por sua sagrada boca ao mesmo povo, e hoje, entre os cristãos, faz de nós a mesma queixa, e com maior razão. - Este povo - diz - louva-me com a boca, mas o seu coração está muito longe de mim. - Quem cuidara que da boca ao coração havia tão grandes distâncias! Deus está em toda a parte, e, se os corações destes que louvavam a Deus só com a boca, estavam longe de Deus, onde estariam? Ubi eras cum me laudarent astra matutina, et jubilarent omnes Filii Dei (22)? - Quando os outros que louvam a Deus com a boca e com o coração estão entre os coros dos anjos: Cum quibus et nestras voces (23) - tu, que verdadeiramente o não louvas, e só falas com a boca, onde tens o coração? - Boa pergunta era esta para a fazerem a si mesmos, não os devotos, mas os rezadores do Rosário. Homem, que com o Padre-nosso e a Ave-Maria na boca, tão divertidos trazes os pensamentos, e mais divertidos os afetos, por onde anda o teu coração no mesmo tempo? É certo que anda lá por onde andava o Filho Pródigo, pastoreando pode ser o mesmo gado, e sem dúvida outro ou outros tão poucos limpos como ele. Quando o Pródigo saiu da casa do pai, diz a sua história que foi para uma região muito longe: In regionem longinquam (Lc 15, 13) - E que região e que longe é este? O pai é Deus, o Pródigo são os que têm perdido ou esperdiçado a sua graça, a região muito longe são as cidades, ou os desertos, ou os jardins, ou os bosques, ou os montes, ou os mares, ou os horizontes remotíssimos por onde, segundo as diversas inclinações e afetos, trazem divertido o coração do homem os vícios e os pecados, que só são os longes de Deus, e infinitamente longes. E como os corações estão tão longe, esta é a primeira causa por que as vozes da boca não são ouvidas, e vemos tão pouco aproveitados os que assim rezam.
A segunda causa é porque, ainda que a boca fala, e parece que fala com Deus, se o coração está longe dele, também está mudo. Mudo e longe, vede como será ouvido? Quam multi sonant voce, et corde muti sunt: Quantos há que soam com a voz, mas com o coração estão mudos - diz Santo Agostinho. - E notai que não diz o maior doutor da Igreja que estes tais falam com a voz, senão que soam: Voce sonant. - Entre o falar e o soar há grande diferença. O falar é próprio e natural do homem, o soar - como balar e mugir - dos brutos. E é lástima grande, que o rezar e orar de muitos, por ser só de boca, sem coração, seja tão alheio de todo o racional humano, que mais se pareça com o soar dos brutos que com o falar dos homens. Os homens, não só têm obrigação, por lei da natureza, de falar como homens, mas podem falar como anjos e como Deus. Como anjos, diz S. Paulo: Si linguis hominum loquar, et angelorum
(24) - como Deus, diz S. Pedro: Si quis loquitur, quasi sermones Dei (25). - E há alguns homens que sejam também obrigados a falar como anjos, e como Deus? Se alguns há, são os que professam rezar o Rosário, porque a Ave Maria, pronunciada por S. Gabriel, são palavras de anjos, e o Padre-nosso, composto e ensinado por Cristo, são palavras de Deus. E homens que deveram falar como anjos e como Deus, que não cheguem a falar sequer como homens, porque as suas vozes são só de boca, e não de coração! Lástima é outra vez, não só grande, mas indigna da fé e da mesma natureza. Por isso Deus os não ouve, conclui o mesmo Santo Agostinho, e dá a razão: Quia ad cor hominis aures Dei, sicut aures corporales ad os hominis: Porque, assim como para os ouvidos dos homens se fizeram as vozes da boca, assim para os ouvidos de Deus as do coração. - Como o homem é corporal e espiritual juntamente, assim como Deus lhe deu dois instrumentos de ver, que são os olhos e o entendimento, assim o proveu também de dois instrumentos de falar, que são a língua e o coração: a língua para falar com os homens, e o coração narra falar com Deus. Essa é a discreta energia com que Davi repetia a Deus o que lhe tinha dito: Tibi dixit cor meum (26). - Não diz: Eu, Senhor, vos disse - senão: O meu coração vos disse: Tibi dixit cor meum - porque a Deus só o coração diz, e com Deus só coração fala. E como o coração é o instrumento e a língua de falar com Deus, assim como os homens só ouvem o que diz a língua, e não entendem o que diz o coração, assim Deus só ouve o que diz o coração, e não atende ao que diz a língua. Daqui vem que, se o coração não fala, ainda que o homem diga cento e cinqüenta vezes a mesma coisa, como diz quando reza o Rosário para com Deus não diz palavra, e verdadeiramente está mudo: Voce sonant, corde muti sunt (27). - E estes são os dois impedimentos certos por que os que chamei rezadores não são ouvidos. Uma vez, porque estão mudos, e como mudos só movem os beiços: Populus hic labiis me honorat (28) - e outra vez porque estão longe e muito longe de Deus: Cor autem eorum longe est a me (29).
Alegam, porém, ou podem alegar os que assim rezam que, ainda que os seus corações estejam longe de Deus, porque são pecadores, e o não amam de todo coração como deveram, contudo não rezam sem coração - porque nós - dizem - temos muito no coração a devoção da Virgem Santíssima e seu bendito Filho, e, senão com todo, ao menos com muito bom coração nos recomendamos em sua graça, e esperamos seus divinos favores. Assim o entendem e dizem, e deste seu dizer se segue que estes devotos do Rosário têm dois corações, como aqueles de quem disse o profeta: In corde et corde locuti sunt
(30) um coração que está longe, outro que está perto; um coração mudo, outro que fala; um coração que ofende a Deus, outro que se encomenda a ele. E que direi eu a esta réplica? Refere Plínio que as pombas de Paflagônia têm dois corações, e o profeta Oséias, falando da sua terra, faz menção de pombas sem coração: Quasi columba seducta non habens cor (31). - E na dúvida de dois corações, eu antes quisera homens sem coração que com dois, porque quem não tem coração não tem afeto, e quem tem dois corações pode ter afetos encontrados. Quem não tem afeto, nem obriga, nem ofende; quem tem os afeto encontrados, ofende e desfaz com um o que obriga com o outro. E tais são os afetos daqueles que, confessando têm o coração longe de Deus, dizem, contudo, que quando rezam ou oram o fazem com muito bom coração. Mas diga-nos o mesmo Deus, e ouçamos de sua boca a resposta desta mesma instância.
Primeiramente, Deus, que formou o homem, e lhe sabe melhor a anatomia, não admite nele mais que um só coração, e por isso diz: Cor autem eorum longe est a me
(32). - Admitindo, porém, a suposição dos dois corações, que os homens inventaram distinguem um do outro, não no mesmo, senão em diferentes sujeitos desta maneira : In ore fatuorum cor illorum, et in corde sapientium os illorum (Eclo 21, 29): Os néscios - diz Deus - tem o coração na boca, e os sábios têm a boca no coração. - Não se pudera distinguir nem declarar melhor a diferença dos que oram de um e outro modo. Os que oram com o coração na boca são os néscios, os que oram com a boca no coração os sábios. Os primeiros, néscios, porque toda a força das suas orações está na boca e nas palavras; os segundos, sábios, porque toda lhe sai do coração, e toda a põem nos afetos. Por isso estas orações são as ouvidas, e aquelas não: Delectare in Domino, et dabit tibi petitiones cordis tui (Sl 36, 4): Ponde os vossos afetos em Deus, e dar-vos-á as petições do vosso coração. - Do vosso coração - diz Davi - e não da vossa boca. Aos que oram e pedem com o coração ouve e despacha Deus suas petições, porque os seus afetos estão nele. E os que oram e pedem só com a boca saem escusados e sem despacho, porque os que haviam de ser afetos são somente palavras: Populus hic labiis me honorati - e porque saem só da boca, e não do coração: Cor autem eorum longe est a me (33).

§ V
A oração desacompanhada e desassistida das mãos. O prodígio admirável da oração de Moisés em nascer dos exércitos de Josué. A vara de Deus levada por Moisés ao monte, figura do Rosário. A pureza das mãos na carta de S. Paulo a Timóteo. Qual era o incenso de que falam Davi e Isaías. As timiamas oferecidas com mãos infeccionadas e impuras. O sangue que contamina as mãos.
Tão justamente se queixa Deus de faltar às nossas orações a doce assistência do coração. Agora veremos se é igualmente justificada a sua queixa por lhe faltar a forte companhia das mãos. Quando Josué, na jornada do deserto, se pôs em campo contra o poder de Amalec, que impedia aos filhos de Israel o caminho da Terra de Promissão, subiu-se também Moisés a um monte, para dali encomendar o sucesso da batalha ao Senhor dos exércitos, sem cujo favor não há vitória. Orava o grande profeta com as mãos levantadas ao céu, as quais, porém, pesadas com a carga dos anos, desfaleciam pouco a pouco, até que outra vez as tornava a levantar; e aqui sucedeu um prodígio admirável, porque neste subir e descer das mãos de Moisés - como se elas foram o compasso das armas entre um e outro exército - quando se levantavam prevalecia Josué contra Amalec, e quando se abaixavam, ou descaíam, prevalecia Amalec contra Josué: Cumque levaret Moyses manus vincebat Israel: sin autem paululum remisisset, superabat Amalec
(34). - Agora pergunto: e quando as mãos de Moisés caíam, afrouxava ele também o arco da oração, e cessava totalmente de orar, ou orava menos intensamente? De nenhum modo. Sempre continuava e perseverava na oração com a mesma eficácia e com a mesma instância; antes, naturalmente, quando via do monte prevalecer o inimigo, então orava e implorava o socorro de Deus com maior aperto. Pois, se na oração não havia mudança antes crescia e se afervorava mais ardentemente, por que não seguiam os efeitos as instâncias da oração, senão os movimentos das mãos? Porque tanto importa que as mãos acompanhem a oração. A oração desacompanhada e desassistida das mãos, ainda que seja a de Moisés, não consegue o que pretende, antes tem os efeitos contrários. Vede agora que fruto se pode esperar do Rosário rezado sem mãos. Mas ainda não esta ponderada a maior circunstância do caso.
Quando Moisés disse a Josué que saísse a pelejar contra Amalec, o que acrescentou foi que ele subiria a orar ao monte, levando consigo a vara de Deus: Egressus, pugna contra Amalec: cras ego stabo in vertice collis, habens virgam Dei in manu mea
(35). - Isto disse Moisés a Josué e a todo o exército, para os animar à batalha, e certamente não podia haver motivo de confiança que maiores espíritos lhes infundisse e maior valor lhes metesse nos corações, pois aquela vara era a mesma que no princípio da mesma jornada tinha desbaratado e vencido, com tantos prodígios, os exércitos de Faraó, e seus carros, e todo o poder do Egito, muito superior ao de Amalec. Mas quem era estava nomeadamente chamada no caso presente, não vara de Moisés ou Arão, senão vara de Deus: Habens virgam Dei in manu mea? Esta vara de Deus era a Mãe do mesmo Deus, a Virgem, Senhora nossa, como o mesmo Deus depois declarou por boca de Salomão, dizendo: Equitatui meo in curribus Pharaonis assimilavi te, amica mea (36). - Assim entendem literalmente este texto Ruperto, S. Boaventura, S. Pedro Damião, S. Efrém, e outros padres. Pois, se aquela oração, não só era de Moisés, senão assistida e patrocinada da poderosíssima proteção e amparo da Virgem Maria, como não bastou tudo isto para que suprisse a falta das mãos de Moisés quando afrouxavam ou descaiam? Oh! grande desengano e exemplo para os que rezam o Rosário sem mãos! Rezam sem mãos, e toda a sua confiança põem em que o mesmo Rosário é da Mãe de Deus, que tudo pode, e enganam-se muito enganados. Se as mãos de Moisés não acompanhar a sua oração levantadas, mas a desamparam caídas, por mais que tenha consigo a vara de Deus, nem Deus ouvirá a oração de Moisés, nem a vara dará vitória a Josué, mas vencerá e prevalecerá Amalec: Cum paululum remisisset manus superabat Amalec (37).
E que mãos levantadas são estas, de que tanto depende a oração? Santo Agostinho o disse e em três lugares: basta que refiramos um: Per manus debemus opera accipere. Et quis bene manus levat? Ille utique qui implet illud Apostoli: levantes manus puras: Assim como no coração dissemos que se entendem os afetos, assim nas mãos - diz o santo - se entendem as obras. E que obras? Aquelas das quais diz o apóstolo S. Paulo, que, quando oramos a Deus, levantemos as mãos puras. - Suposto que Santo Agostinho se refere, e nos remete a S. Paulo, fui buscar o texto, que é da primeira Epístola a Timóteo, e confesso que, quando o li, fiquei tremendo. Oh! quantos são os que rezam o Rosário, e quão poucos os que oram a Deus como devem! Exorta ali S. Paulo a todos, assim homens como mulheres - uns e outros nomeadamente - que façam instante oração a Deus com as mãos levantadas, advertindo, porém, e recomendando muito que sejam puras: Levantes puras manus
(38). - E para serem puras as mãos dos que oram, que será necessário? Não declara o Apóstolo o que é necessário para serem puras, mas declara muito expressamente o que basta para o não serem. Isto é o que me fez tremer, e deve confundir a todos os que porventura têm em mui diferente conta as suas contas. Vai o texto: Volo ergo viros orare in omni loco, levantes puras manus sine ira et disceptatione. Similiter et mulieres in habitu ornato, cum verecundia et sobrietate ornantes se, et non in tortis crinibus, aut auro, aut margaritis, vel veste pretiosa, sed quod decet mulieres promittentes pietatem per opera bona (1 Tim 8, ss): Quero - diz S. Paulo e eu vou construíndo as suas palavras uma por uma ao pé da letra - quero que os homens orem em todo o lugar sem ira, nem contenda; e que do mesmo modo orem as mulheres, vestidas honestamente, e com sobriedade - o cum verecundia entendam-no em latim - e que não usem de cabelos torcidos com artifício, nem de ouro, nem de jóias, nem de vestiduras preciosas, como é decente a mulheres que prometem piedade e boas obras. - Pois isto é, Apóstolo sagrado, cuja pena quando escrevia era movida e governada pelo Espírito Santo, isto é o que basta para as mãos que acompanham a oração não serem puras? Isto, e não diz mais. Eu cuidava que, falando S. Paulo dos homens, trouxesse aqui os homicídios, os roubos, os adultérios, e os outros pecados da primeira plana, e só fala na ira, nas contendas e emulações que pode haver sobre os lugares. E estes os defeitos, posto que tão ordinários, e que no conceito comum do mundo ofendem levemente a humildade e caridade, estes diz que bastam para impedir os efeitos da oração, e para que sejam impuras, nos olhos de Deus, as mãos que levantamos ao céu quando assim oramos. Também cuidava que, falando nas mulheres, trouxesse outros desmanchos de maior escândalo, e mais alheios da sujeição e recolhimento daquele estado, e só fala nas galas, no ouro, nas jóias e nos enfeites da cabeça. E, posto que estes cuidados, como o mesmo apóstolo diz, não prometam muito siso nem muita piedade, e o uso lhes tem concedido tais privilégios, que mais escrúpulos causam à inveja que à consciência, contudo torna a insistir S. Paulo, com a mesma asseveração, que as mãos que nestas vaidades se ocupam verdadeiramente são impuras, e que as orações que pretendem subir ao céu oferecidas por tais mãos, de nenhum modo chegam lá, nem as admite Deus. Vejam agora cada um e cada uma das que rezam o Rosário se são mais puras e inocentes as mãos por onde o passam todos os dias.
E se estas impurezas de mãos, que parecem veniais, tanto ofendem a Deus e o desagradam, que serão as de outro peso tão diferente, que S. Paulo não nomeou, nem elas têm nome! Ouçamos aos dois profetas maiores, Davi e Isaías, que, com vozes ao parecer encontradas, maravilhosamente apertam este ponto e apuram esta impureza. Davi o que desejava e pedia para sua oração é que ela subisse ao conspecto divino como incenso: Dirigatur, Domine, oratio mea sicut incensum in conspectu tuo
(39). - Pelo contrário, Isaías, em nome do mesmo Deus, protestava que o incenso para ele era abominação: Incensum abominatio est mihi (40). - Pois, se Davi, para que a sua oração fosse agradável a Deus, desejava que subisse como incenso, como diz Isaías que o incenso que se oferecia a Deus lhe era abominável? Ainda creio que não percebeis perfeitamente a energia e força de um e outro dito, porque poucos estareis bem informados de qual era o incenso de que ambos falam. Aquele incenso não era o que entre nós tem o mesmo nome, e na língua latina se chama thus, mas era uma confecção preciosíssima de todas as espécies aromáticas mas esquisitas, a qual ardia e se exalava em suavíssimos vapores diante de Deus, e no altar chamado das timiamas se queimava e oferecia por mãos dos sacerdotes. Pois, se esta timiama - a qual também tinha sido instituída por Deus, com cláusula de que no seu templo fosse rito sempiterno - se era, digo, de tanto preço, de tanta suavidade e fragrância, e tão aceita e agradável à divina Majestade que não desejava Davi outra maior aceitação para suas orações, porque o detestava Deus, e abominava com tal extremo, que não só lhe chama abominável, senão a mesma abominação: Incensum abominatio est mihi (Is 1, 13)? - Não dissemos já que este incenso ou timiama era oferecido por mãos dos ministros do Templo? Pois esta era a causa de Deus o abominar tanto. Estes ministros, no tempo de Isaías, eram homens de muito má vida, avarentos, ambiciosos, soberbos, hipócritas, sacrílegos. E, posto que as espécies aromáticas de que era composto o incenso, fossem muito cheirosas em si, e de grande suavidade, contudo eram aborrecidas e abominadas de Deus, porque lhe cheiravam às mãos dos que as ofereciam. Não basta que as timiamas, os incensos e as orações sejam por si mesmas muito gratas a Deus, se as mãos que as oferecem forem viciosas, infeccionadas e impuras: Sicut in coronis non satis est flores esse puros, nisi pura sit et manus eos contexens (41) - diz S. João Crisóstomo. E isto é que acontece às orações do Rosário, posto que as suas rosas sejam do cheiro mais celestial e divino. As espécies de que se compõe a confecção do Rosário são aquelas que nomeia, e de que se nomeia a mesma Senhora: Sicut cinnamomum et balsamum aromatizans odorem dedi, quasi myrrha electa dedi suavitatem odoris (42). - O cinamomo são os mistérios gozosos; a mirra os dolorosos, o bálssamo os gloriosos, e, sendo esta timiama a mais preciosa e odorífera que pode inventar a sabedoria divina, se, contudo, for oferecida a Deus por mãos infeccionadas com vícios e pecados, de nenhum modo lhe será aceita e agradável, senão aborrecida e abominada, porque cheirará às mãos que a ofereceram.
E porque a metáfora do incenso ou timiama não faça dúvida, o mesmo Deus no mesmo lugar se declarou, como se falara conosco, pelo próprio expresso nome de orações, e pelo próprio e expresso de mãos infeccionadas: Cum extenderitis manus vestras, avertam oculos meos a vobis; et cum multiplicaveritis orationem, non exaudiam (Is 1, 15): Quando levantardes as mãos a mim - diz Deus - eu voltarei o rosto, e apartarei os olhos de vós; e quando não fizerdes as vossas orações, por mais que as multipliqueis, não vos hei de ouvir. - E por que causa, Senhor, ou por que causas - que não podem deixar de ser muitas e grandes - um rigor tão extraordinário e tão alheio de vossa piedade infinita? Manus enim vestrae sanguine plenae sunt (Is 1, 15): Porque as vossas mãos estão cheias de sangue. - Acaba de dizer que não há de ouvir suas orações, e não põe o defeito nas orações, senão nas mãos. Não por que as vossas orações não sejam boas, pias e santas, mas porque as vossas mãos estão contaminadas de suas próprias obras, e cheias de sangue. Vejam agora lá muitos dos que trazem o Rosário nas mãos e os mais poderosos - se é que o rezam - e, olhando para as suas mãos, examinem bem se pode Deus formar contra elas um semelhante libelo: Manus enim vestrae sanguine plenae sunt: Porque as vossas mãos estão cheias de sangue. - E de que sangue? Do sangue da vingança pública ou secreta; do sangue que derramou a espada ou a pena; do sangue que ainda vive dentro das veias, e já está destinado a correr delas; do sangue dos pobres, do sangue dos inocentes, do sangue dos que não têm quem os defenda; do sangue de tantos mártires quantos a vossa potência, quantos a vossa soberba, quantos a vossa cobiça, quantos a vossa crueldade, quantos a vossa pouca fé, em comum e em particular, tem tiranizado e tiraniza. E cuidais que o Rosário, ou rezado ou trazido em tais mãos vos pode salvar? Enganais-vos que por isso fala Deus de tais orações, quais são no uso e modo de se rezarem as do Rosário somente, e nenhumas outras. Notai as palavras: Cum multiplicaveritis orationem: quando multiplicardes a oração. Nem a Igreja antiga multiplicava, nem na Igreja presente se multiplica a mesma oração, porque se não repete muitas vezes a mesma, mas sempre se varia. Os salmos antigamente todos eram diversos, e as orações hoje também são diversas, e só no Rosário se multiplica a mesma oração cento e cinqüenta vezes: Cum multiplicaveritis orationem. - Assim que, resumindo e atando os dois discursos que dividi, ambos se unem com maior força com o primeiro, e todos três nos têm provado que a Mãe de Deus nos ensina, com seu exemplo, que o seu Rosário não se há de rezar só com a boca, senão com o coração e com as mãos. Com o coração, assim como a mesma Senhora trouxe a Cristo nas suas entranhas: Beatus venter qui te portavit - e com as mãos, assim como o trouxe nas suas, e a seus peitos: Et ubera quae suxisti.
§ VI

A pureza de coração e a inocência das mãos tanto se requer para rezar bem o Rosário como para ir ao céu. As orações cheias de dolos e de enganos. Os que rezam o Rosário só com a boca. Supra a contrição o que até agora tenha faltado à vida.
Só me podem dizer - e acabo com satisfazer a esta dúvida - só me podem dizer os interessados ou empenhados na devoção do Rosário, que parece rigorosa e dura condição esta para os que houverem de rezar como devem. Para ir ao céu não nos pede Deus mais que a pureza do coração e das mãos. Assim o mandou apregoar o mesmo Deus, e fixar este seu decreto universal em todas as quatro partes do mundo: Domini est terra, et plenitudo ejus: orbis terrarum, et universi qui habitant in eo
(43). - Este é o princípio e a prefação do decreto. Logo pergunta quem são aqueles que da terra hão de subir ao céu, e permanecer lá eternamente: Quis ascendet in montem Domini, aut quis stabit in loco sancto ejus (44)? - E responde o mesmo Deus, sem exceção de pessoa nem estado, que só hão de subir ao céu aqueles que tiverem o coração limpo e as mãos inocentes: Innocens manibus et mundo corde (Sl 23, 4). - Logo, segundo o que temos dito, tanto se requer para rezar bem o Rosário como para ir ao céu? Primeiramente, não é muito que se requeira tanto para subir pela escada como para entrar pela porta, antes entrar é o fácil e o subir o dificultoso; e por isso diz o decreto: Quis ascendet? - Mas disto mesmo se colhe qual é a dignidade do Rosário. Para receber o Santíssimo Sacramento, que se requer? Estar em graça. E para ir ao céu, requer-se mais alguma coisa? Nenhuma. Grande é logo a dignidade daquele altíssimo Sacramento, que tanto se requer para o receber como para ir ao céu. E isto mesmo é o que devem inferir os devotos do Rosário, quando lhes pregamos que, para o rezarem como convém, é necessária a pureza do coração e a inocência das mãos. Não é condição dura, senão sublime; não é dura, senão admirável; não é dura, senão celestial e divina. E tanto mais divina quanto comparada. Pureza de coração e inocência de mãos para subir ao céu; pureza de coração e inocência de mãos para receber o Santíssimo Sacramento; pureza de coração e inocência de mãos para rezar como convém o Rosário: Innocens manibus et mundo corde.
Seja esta a primeira resposta em louvor grande do Rosário, mas a segunda, em igual confusão dos que sem esta disposição o rezam, é que o seu rezar não é rezar, nem o seu Rosário, Rosário, senão um dolo, um engano, e uma mera e expressa contradição de tudo quanto dizem a Deus, ou imaginam que dizem. Exaudi, Domine, justitiam meam; intende deprecationem meam. Auribus percipe orationem meam, non in labiis dolosis (Sl 16, 1): Ouvi, Senhor a minha justiça, atendei às petições que vos faço percebei a minha oração, porque a minha boca não vos fala com engano. - Estas palavras são de Davi, nas quais supõe que há orações justas e orações injustas; orações que ouve Deus, e orações que não ouve; orações a que atende, e orações a que não atende; orações que percebe e orações que não percebe. E para que Deus ouça e atenda e perceba a sua oração como justa, o que alega e representa é que, ainda que ora com a boca, não fala com dolo nem com engano: Non in labiis dolosis. - Pois, a Deus, que tudo vê, que tudo sabe, que nada se lhe pode encobrir nem dissimular, alega Davi que a oração da sua boca não tem dolo nem engano? Sim, porque muitas orações que saem da boca, se são só da boca, vão cheias de dolos e de enganos, com que queremos ou cuidamos que enganamos a Deus, e tão encontradas com o que oramos e pedimos que o mesmo Deus as não percebe. Tal é o Rosário rezado só com a boca, sem coração e sem mãos, sem afetos e sem obras. E se não, vede-o.
No Padre-nosso nomeamos a Deus como Pai: Pater noster qui es in caelis; na Ave-Maria, nomeamo-lo como Senhor: Ave gratia plena, Dominus tecum - e se a estes nomes de Pai e Senhor não responde o coração e as mãos, o coração amando-o como Pai, e as mãos servindo-o como Senhor, tudo é dolo e engano. Ouvi a Deus pelo profeta Malaquias: Filius honorat patrem, et servus dominum suum. Si ergo pater ego sum, ubi est honor meus? Et si dominus ego sum, ubi est timor meus (Mal 1, 6)? 0 filho honra ao pai, e o servo ao senhor: e se eu sou pai, diz Deus, onde está o meu amor? Se eu sou senhor, onde está, o meu temor? - Logo, se eu sou Pai e não me amais, e eu sou Senhor, e não me servis, dolo e engano é o chamar-me Pai, dolo e engano é o chamar-me Senhor: In labiis dolosis. - E se no Rosário rezado só da boca se acham estes dolos, não considerando os nomes com que nele invocamos a Deus, que será discorrendo pelas palavras verdadeiramente dolosas com que afetamos desejar sua glória, e muito mais naquelas com que lhe pedimos que nos dê o que não aceitamos nem queremos? Não é dolo dizer sanctificetur nomen tuum
(45) - quando tantos tomam seu santo nome na boca temerária e perjura, e muitos o blasfemam impiamente? Não é dolo dizer: Adveniat regnum tuum (46) - quando tantos se alistam e servem debaixo das bandeiras do demônio, e acrescentam vassalos e escravos ao reino das trevas? Não é dolo dizer: Fiat voluntas tua, sicut in caelo, et in terra (47) - quando tantos, e quase todos, não tratam mais que de fazer a própria vontade na terra, e, por um momento de gosto falso e torpe, se condenam a perder o céu por toda a eternidade? Desta maneira, como se pudéramos enganar a Deus, fingimos com a boca desejar sua glória e honra, quando não só a não desejamos nem procuramos, mas, como se não fora do Deus que nos criou e remiu, a desprezamos, e por tantos e tão insolentes modos lhe antepomos a nossa. E que direi do que pedimos para nós, em que os dolos e enganos são ainda mais palpáveis e manifestos? Pede a necessidade o pão nosso de cada dia e que fé há tão comedida que se fie da Providência quotidiana de Deus, e não deseje e ajunte pão para mais dias e anos do que há de viver; ou que cobiça tão moderada, que o pão que chama nosso o não misture e amasse com o alheio? Pede o vingativo a Deus que lhe perdoe, assim como ele perdoa, e, se Deus o fizer assim, lhe tirará logo a vida e o meterá no inferno, onde ele meteria, se pudesse, os que tem por inimigos, e os persegue e abate, e mete debaixo dos pés em tudo quanto pode. Pede o desonesto que Deus o não deixe cair em tentação, e ele é o tentador que busca, solicita e compra as tentações, não duvidando perder por elas a saúde, arriscar a vida, e dar de contado a graça, que vale mais que a mesma glória. Finalmente, pede a Deus que o livre daquele mal que só é mal, e todo o mal, porque nos priva do sumo bem, e ele está tão fora de se querer livrar, que estima mais o cativeiro que a liberdade, e, por se deixar estar cativo e escravo do pecado, renuncia o resgate que o mesmo Deus ofendido lhe oferece, sendo o preço infinito de seu sangue. Este é o modo com que rezam o Rosário os que rezam sem pureza de coração nem inocência de mãos, e somente com a boca cheia de dolos e enganos: In labiis dolosis - e por isso mais dignos de ser aborrecidos, abominados e castigados por Deus, que de ser ouvidos.
Seja, logo, a conclusão de tudo, para os que se acham neste estado, o conselho e inspiração do Espírito Santo por boca de Jeremias: Scrutemur vias nostras, et quaeramus, et revertamur ad Dominum
(48). - Examinemos nossas consciências, busquemos a Deus e convertamo-nos a ele; supra a contrição o que até agora tem faltado a vida; e com esta resolução digna de toda a alma cristã e que tem fé, que se conseguirá neste mesmo instante? Conseguir-se-á, acrescenta o profeta, que por este modo não só serão as nossas orações de boca, senão de coração e de mãos: Levemus corda nostra cum manibus ad Dominum (49). - E os que por mercê de Deus se acharem com esta mesma disposição, continuem e perseverem nela, porque, como bem diz S. Gregório Nazianzeno, em nenhuma ocupação se podem empregar nossos corações e nossas mãos, nem melhor, nem mais útil, nem mais necessária que em acompanhar as preces e orações com que recomendamos nossas almas a Deus, e lhe pedimos sua graça: Non opus est manuum melius quam tendere caelo Castas, et toto jungere corde preces. Mas o principal motivo de todos seja conformarem-se os devotos do Rosário com o exemplo da soberana instituidora dele, assim com o coração como com as mãos: como coração, imitando a mesma Senhora, enquanto trouxe ao Filho de Deus em suas entranhas: Beatus venter qui te portavit - e com as mãos, enquanto o teve nas suas, e a seus peitos: Et ubera quae suxisti.




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(1) Bem-aventurado o ventre que te trouxe e os peitos a que foste criado (Lc11, 27).
(2) Na arca, porém, não havia senão as duas tábuas de pedra que Moisés tinha metido nela (3 Rs 8, 9).
(3) A arca do testamento, na qual havia uma urna de ouro que continha o maná (Hebr 9, 4).
(4) Põe-no em reserva diante do Senhor (Êx 16, 33).
(5) Antes, bem-aventurados aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem por obra (Lc 11, 28).
(6) Todas estas coisas, porém, lhes aconteciam a eles em figura (1 Cor 10, 11).
(7) Eu não fui enviado senão às ovelhas que pereceram da casa de Israel (Mt 15, 24)
(8) Até que haja entrado a multidão das gentes, e que assim todo o Israel se salvasse (Rom 11, 25s).
(9) Põe-me a mim como um selo sobre o teu coração, como selo sobre o teu braço (Cânt 8, 6).
(10) No coração estão os pensamentos, nas mãos as obras: por isso o amado é estampado como um selo sobre o coração e sobre o braço da esposa (D. Greg. in eum locum).
(11) O amado é posto como um selo sobre o coração e sobre o braço da Virgem, porque a Virgem imita o Filho tanto nos pensamentos, significados pelo coração, como nas obras, significadas pelo braço (Alanus ibi).
(12) A bem-aventurada Virgem pôs a Cristo sobre seu coração quando o teve em suas entranhas pelo espaço de nove meses, e o pôs sobre o braço quando, depois de nascido, o teve em seus braços e a seus peitos (Cornelius in 3 sensu principali de Christo et B. V.).
(13) Seu louvor será sempre na minha boca (Sl 33, 2).
(14) Tornem-se mudos os lábios enganadores (Sl 30, 19).
(15) E os vinte e quatro anciãos se prostraram diante do Cordeiro, tendo cada um suas cítaras e suas redomas de ouro cheias de perfumes (Apc 5, 8).
(16) E cantavam um cântico novo (Ibid 9).
(17) Vistoso em formosura sobre os filhos dos homens (Sl 44, 3).
(18) Apresentou-se a rainha à tua dextra (Ibid 10).
(19) Levanta-te, louva, derrama o teu coração como água diante do acatamento do Senhor; levanta as tuas mãos a ele pela alma de teus filhinhos (Lam 2, 19).
(20) Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim (Mt 15, 8).
(21) Is 29, 13.
(22) Onde estavas tu quando os astros da manhã me louvavam, e quando todos os filhos de Deus estavam transportados de júbilo (Jo 38, 4. 7).
(23) Às suas vozes - nós te rogamos - manda que se unam as nossas (Prefácio da Missa).
(24) Se eu falar a língua dos homens e dos anjos (1 Cor 13, 1).
(25) Se algum fala, seja como palavras de Deus (1 Pdr 4, ll).
(26) O meu coração te falou a ti (S1 26, 8).
(27) Soam com a voz, mas com o coração estão mudos (Agost.).
(28) Este povo honra-me com os lábios (Mt 15, 8).
(29) Mas o seu coração está longe de mim (Ibid).
(30) Falaram com coração dobrado (Sl 11, 3).
(31) Como uma pomba enganada sem ter coração (Os 7, 11).
(32) Mas o seu coracão está longe de mim (Mt 15, 8).
(33) Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim (Mt 15, 8).
(34) E quando Moisés tinha as mãos levantadas vencia Israel; mas, se as abaixava um pouco, vencia Amalec (Êx 17, 11).
(35) Saindo, peleja contra Arnalec: amanhã estarei eu no cume do outeiro, tendo na minha mão a vara de Deus (Ibid 9).
(36) A minha cavalaria nos carros de Faraó eu te assemelhei, amiga minha (Cânt 1, 8).
(37) Se as abaixava um pouco, vencia Amalec (Êx 17, 11).
(38) Levantando as mãos puras (1 Tim 2, 8).
(39) Senhor, suba direita a minha oração como incenso na tua presença (Sl 140, 2).
(40) O ineenso é para mim abominação (Is 1, 13).
(41) Como nas coroas, não basta que as flores sejam puras, se as mãos que as tecerem não o forem igualmente (S. João Crisost.).
(42) Difundi um perfume como o cinamomo e o bálsamo aromático, e como mirra escolhida exalei suave cheiro (Eclo 24, 20).
(43) Do Senhor é a terra, e tudo o que a enche; a redondeza da terra, e todos os seus habitadores (Sl 23, 1).
(44) Quem subirá ao monte do Senhor, ou quem estará no seu santo lugar (Ibid 3).
(45) Santificado seja o teu nome (Mt 6, 9).
(46) Venha a nós o teu reino (Ibid 10).
(47) Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu (Ibid 10).
(48) Esquadrinhemos os nossos caminhos, e investiguemo-los, e voltemos ao Senhor (Lam 3, 40).
(49) Levantemos ao Senhor os nossos corações com as mãos (Ibid 41).
Fonte: http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/sermx.html#-(1)