quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Café Filosofico.

Gerald Thomas – Trecho II.


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Santa Madalena.

C. 1590, óleo sobre tela 207 x 134 cm Igreja da Graça Lisboa, Portugal.
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Café Filosófico .

Gerald Thomas - Trecho I.


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A DIALÉCTICA DO ESCLARECIMENTO.



Fragmentos Filosóficos
EXCURSO I
Ulisses ou Mito e Esclarecimento

Assim como o episódio das sereias mostra o entrelaçamento do mito e do trabalho racional, assim também a Odisseia em seu todo dá testemunho da dialéctica do esclarecimento. Sobretudo em seus elementos mais antigos, a epopeia mostra-se ligada ao mito: as aventuras têm origem na tradição popular. Mas, ao se apoderar dos mitos, ao "organizá-los", o espírito homérico entra em contradição com eles. A assimilação habitual da epopeia ao mito - que a moderna filologia clássica, aliás, desfez - mostra-se à crítica filosófica como uma perfeita ilusão. São dois conceitos distintos, que marcam duas fases de um processo histórico nos pontos de sutura da própria narrativa homérica. O discurso homérico produz a universidade da linguagem, se já não a pressupõe. Ele dissolve a ordem hierárquica da sociedade pela forma exotérica de sua exposição, mesmo e justamente onde ele a glorifica. Cantar a ira de Aquiles e as aventuras de Ulisses já é uma estilização nostálgica daquilo que não se deixa mais cantar, e o herói das aventuras revela-se precisamente como um protótipo do indivíduo burguês, cujo conceito tem origem naquela auto-afirmação unitária que encontra seu modelo mais antigo no herói errante. Na epopeia, que é o oposto histórico-filosófico do romance, acabam por surgir traços que a assemelham ao romance, e o cosmo venerável do mundo homérico pleno de sentido revela-se como obra da razão ordenadora, que destrói o mito graças precisamente à ordem racional na qual ela o reflecte.
O discernimento do elemento esclarecedor burguês em Homero foi enfatizado pelos intérpretes da antiguidade ligados ao romantismo tardio alemão e que seguiam os primeiros escritos de Nietzsche. Nietzsche conhecia como poucos, desde Hegel, a dialéctica do esclarecimento. Foi ele que formulou sua relação contraditória com a dominação. É preciso "levar o esclarecimento ao povo, para que os padres se tornem todos padres cheios de má consciência - é preciso fazer a mesma coisa com o Estado. Eis a tarefa do esclarecimento: tornar, para os príncipes e estadistas, todo seu procedimento uma mentira deliberada. .." (1) Por outro lado, o esclarecimento sempre foi um meio dos "grandes virtuosos na arte de governar (Confúcio na China, o Imperium Romanum, Napoleão, o papado na época em que se voltara para o poder e não apenas para o mundo) ... A maneira pela qual as massas se enganam acerca desse ponto, por exemplo em toda democracia, é extremamente valiosa: o apequenamento e a governabilidade dos homens são buscados como 'progresso'!" (2) Quando essa duplicidade do esclarecimento se destaca como um motivo histórico fundamental, seu conceito como pensamento progressivo é estendido até o início da história tradicional. Todavia, a relação de Nietzsche com o esclarecimento, e portanto com Homero, permanecia ela própria contraditória. Assim ele enxergava no esclarecimento tanto o movimento universal do espírito soberano, do qual se sentia o realizador último, quanto a potência hostil à vida, "nihilista". Em seus seguidores pré-fascistas, porém, apenas o segundo aspecto se conservou e se perverteu em ideologia. Esta ideologia torna-se a cega exaltação da vida cega, à qual se entrega a mesma prática pela qual tudo o que é vivo é oprimido. Isso está claramente expresso na posição dos intelectuais fascistas em face de Homero. Eles farejam na descrição homérica das relações feudais um elemento democrático, classificam o poema como uma obra de marinheiros e negociantes e rejeitam a epopeia jónica como um discurso demasiado racional e uma comunicação demasiado corrente. O mau-olhado daqueles que se sentem identificados com toda dominação que pareça directa e que proscrevem toda mediação, o "liberalismo" em qualquer nível, captou algo de correcto. De facto, as linhas da razão, da liberalidade, da civilidade burguesa se estendem incomparavelmente mais longe do que supõem os historiadores que datam o conceito do burguês a partir tão-somente do fim do feudalismo medieval. Ao identificar o burguês justamente onde o humanismo burguês mais antigo presumia uma aurora sagrada destinada a legitimá-lo, a reacção neo-romântica identifica a história universal e o esclarecimento. A ideologia na moda, que faz da liquidação do esclarecimento a primeira de suas causas, presta-lhe uma reverência involuntária e se vê forçada a reconhecer a presença do pensamento esclarecido até mesmo no mais remoto passado. É justamente o vestígio mais antigo desse pensamento que representa para a má consciência dos espíritos arcaicos de hoje a ameaça de desfechar mais uma vez todo o processo que intentaram sufocar e que, no entanto, ao mesmo tempo levam a cabo de maneira inconsciente.
Mas o discernimento do carácter antimitológico e esclarecido de Homero, de sua oposição à mitologia ctónica, permanece longe da verdade na medida em que é limitado. Ao serviço da ideologia repressiva, Rudolf Borchardt, por exemplo o mais importante e por isso o mais impotente entre os pensadores esotéricos da indústria pesada alemã, interrompe cedo demais a análise. Ele não vê que os poderes originários enaltecidos já representam uma fase do esclarecimento. Ao denunciar sem maiores qualificações a epopeia como romance, ele deixa escapar que a epopeia e o mito têm de facto em comum dominação e exploração. O elemento ignóbil que ele condena na epopeia - a mediação e a circulação - é apenas o desdobramento desse duvidoso elemento de nobreza que ele diviniza no mito: a violência nua e crua. A pretensa autenticidade, o princípio arcaico do sangue e do sacrifício, já está marcado por algo da má consciência e da astúcia da dominação, que são características da renovação nacional que se serve hoje dos tempos primitivos como recurso propagandístico. O mito original já contém o aspecto da mentira que triunfa no carácter embusteiro do fascismo e que esse imputa ao esclarecimento. Mas nenhuma obra presta um testemunho mais eloquente do entrelaçamento do esclarecimento e do mito do que a obra homérica, o texto fundamental da civilização europeia. Em Homero, epopeia e mito, forma e conteúdo, não se separam simplesmente, mas se confrontam e se elucidam mutuamente. O dualismo estético atesta a tendência histórico-filosófica. "O Homero apolíneo é apenas o continuador daquele processo artístico humano universal ao qual devemos a individuação." (3)
Os mitos depositaram-se nas diversas estratificações do texto homérico; mas o seu relato, a unidade extraída às lendas difusas, é ao mesmo tempo a descrição do trajecto de fuga que o sujeito empreende diante das potências míticas. Isto já vale num sentido mais profundo para a Ilíada. A cólera do filho mítico de uma deusa contra o rei guerreiro e organizador racional, a inactividade indisciplinada desse herói, finalmente o facto de que o destino nacional-helénico e não mais tribal alcança o morto vitorioso através da lealdade mítica ao companheiro morto, tudo isso confirma o entrelaçamento da história e da pré-história. Isso vale tanto mais drasticamente para a Odisseia quanto mais esta se aproxima da forma do romance de aventuras. A oposição do ego sobrevivente às múltiplas peripécias do destino exprime a oposição do esclarecimento ao mito. A viagem errante de Tróia a Ítaca é o caminho percorrido através dos mitos por um eu fisicamente muito fraco em face das forças da natureza e que só vem a se formar na consciência de si. O mundo pré-histórico está secularizado no espaço que ele atravessa; os antigos demónios povoam a margem distante e as ilhas do Mediterrâneo civilizado, forçados a retroceder à forma do rochedo e da caverna, de onde outrora emergiram no pavor dos tempos primitivos. Mas as aventuras contemplam cada lugar com seu nome, e é a partir delas que se pode ter uma visão de conjunto e racional do espaço. O náufrago trémulo antecipa o trabalho da bússola. Sua impotência, para a qual nenhum lugar do mar permanece desconhecido, visa ao mesmo tempo a destituição das potências. Mas a simples inverdade dos mitos - a saber, que o mar e a terra na verdade não são povoados de demónios, efeitos do embuste mágico e da difusão da religião popular tradicional - torna-se aos olhos do emancipado um "erro" ou "desvio" comparado à univocidade do fim que visa em seu esforço de autoconservação: o retorno à pátria e aos bens sólidos. As aventuras de que Ulisses sai vitorioso são todas elas perigosas seduções que desviam o eu da trajectória de sua lógica. Ele cede sempre a cada nova sedução, experimenta-a como um aprendiz incorrigível e até mesmo, às vezes, impelido por uma tola curiosidade, assim como um actor experimenta insaciavelmente os seus papéis. "Mas onde há perigo, cresce também o que salva": (4) o saber em que consiste sua identidade e que lhe possibilita sobreviver tira sua substância da experiência de tudo aquilo que é múltiplo, que desvia, que dissolve e o sobrevivente sábio é ao mesmo tempo aquele que se expõe mais audaciosamente à ameaça da morte, na qual se torna duro e forte para a vida. Eis aí o segredo do processo entre a epopeia e o mito: o eu não constitui o oposto rígido da aventura, mas só vem a se formar em sua rigidez através dessa oposição, unidade que é tão somente na multiplicidade de tudo aquilo que é negado por essa unidade. (5) Como os heróis de todos romances posteriores, Ulisses por assim dizer se perde a fim de se ganhar. Para alienar-se da natureza ele se abandona à natureza, com a qual se mede em toda aventura, e, ironicamente, essa natureza inexorável que ele comanda triunfa quando ele volta - inexorável - para casa, como juiz e vingador do legado dos poderes de que escapou. Na fase homérica, a identidade do eu é a tal ponto função do não-idêntico, dos mitos dissociados, inarticulados, que ela tem que se buscar neles. Ainda é tão fraca a forma de organização interna da individualidade, o tempo, que a unidade das aventuras permanece exterior e sua sequência não passa da mudança espacial dos cenários, dos sítios das divindades locais, para onde o arrasta a tempestade. Todas as vezes que o eu voltou a experimentar historicamente semelhante enfraquecimento, ou que o modo de expor pressupôs semelhante fraqueza no leitor, a narrativa da vida resvalou novamente para a sucessão de aventuras. Na imagem da viagem, o tempo histórico se desprende laboriosa e revogavelmente do espaço, o esquema irrevogável de todo tempo mítico.
O recurso do eu para sair vencedor das aventuras, perder-se para se conservar, é a astúcia. O navegador Ulisses logra as divindades da natureza, como depois o viajante civilizado logrará os selvagens oferecendo-lhes contas de vidro coloridas em troca de marfim. É verdade que só às vezes ele aparece fazendo trocas, a saber, quando se dão e se recebem os presentes da hospitalidade. O presente de hospitalidade homérico está a meio caminho entre a troca e o sacrifício. Como um acto sacrificial, ele deve pagar pelo sangue incorrido, seja do estrangeiro, seja do residente vencido pelos piratas, e selar a paz. Mas, ao mesmo tempo, o presente anuncia o princípio do equivalente: o hospedeiro recebe real ou simbolicamente o equivalente de sua prestação, o hóspede um viático que, basicamente, deve capacitá-lo a chegar em casa. Mesmo que o hospedeiro não receba nenhuma compensação imediata, ele pode ter a certeza de que ele próprio ou seus parentes serão recebidos da mesma maneira: como sacrifício às divindades elementares, o presente é ao mesmo tempo um seguro rudimentar contra elas. A extensa mas perigosa navegação na Grécia antiga é o pressuposto pragmático disto. O próprio Posseidon, o inimigo elementar de Ulisses, pensa em termos de equivalência, queixando-se de que aquele receba em todas as etapas de sua errática viagem mais presentes do que teria sido sua parte nos despojos de Tróia, caso Posseidon não lhe houvesse impedido transportá-la. Em Homero, porém, é possível derivar semelhante racionalização dos actos sacrificiais propriamente ditos. Pode-se contar com a benevolência das divindades conforme a magnitude das hecatombes. Se a troca é a secularização do sacrifício, o próprio sacrifício já aparece como o esquema mágico da troca racional, uma cerimónia organizada pelos homens com o fim de dominar os deuses, que são derrubados exactamente pelo sistema de veneração de que são objectos. (6)
A parte que o logro desempenha no sacrifício é o protótipo das astúcias de Ulisses, e é assim que muitos de seus estratagemas são armados à maneira de um sacrifício oferecido às divindades da natureza. (7) As divindades da natureza são logradas pelo herói do mesmo modo que pelos deuses solares. Assim os amigos olímpicos de Ulisses valem-se da estada de Posseidon entre os etíopes - selvagens que ainda o veneram e lhe oferecem enormes sacrifícios - para escoltar a salvo seu protegido. O logro já está envolvido no próprio sacrifício que Posseidon aceita prazerosamente: a limitação do amorfo deus do mar a uma localidade determinada, a área sagrada, limita ao mesmo tempo sua potência, e, para saciar-se nos bois etíopes, ele deve em troca renunciar a dar vazão à sua cólera em Ulisses. Todas as acções sacrificiais humanas, executadas segundo um plano, logram o deus ao qual são dirigidas: elas o subordinam ao primado dos fins humanos, dissolvem seu poderio, e o logro de que ele é objecto se prolonga sem ruptura no logro que os sacerdotes incrédulos praticam sobre a comunidade crédula. A astúcia tem origem no culto. O próprio Ulisses actua ao mesmo tempo como vítima e sacerdote. Ao calcular seu próprio sacrifício, ele efectua a negação da potência a que se destina esse sacrifício. Ele recupera assim a vida que deixara entregue. Mas o logro, a astúcia e a racionalidade não se opõem simplesmente ao arcaísmo do sacrifício. O que Ulisses faz é tão-somente elevar à consciência de si a parte de logro inerente ao sacrifício, que é talvez a razão mais profunda para o carácter ilusório do mito. A experiência de que a comunicação simbólica com a divindade através do sacrifício nada tem de real só pode ser uma experiência antiquíssima. A substituição que ocorre no sacrifício, exaltada pelos defensores de um irracionalismo em moda, não deve ser separada da divinização do sacrificado, ou seja, do embuste que é a racionalização sacerdotal do assassínio pela apoteose do escolhido. Algo desse embuste - que erige justamente a pessoa inerme em portador da substância divina - sempre se pôde perceber no ego, que deve sua própria existência ao sacrifício do momento presente ao futuro. Sua substancialidade é aparência, assim como a imortalidade da vítima abatida. Não é à toa que Ulisses foi tido por muitos como uma divindade.
Enquanto os indivíduos forem sacrificados, enquanto o sacrifício implicar a oposição entre a colectividade e o indivíduo, a impostura será uma componente objectiva do sacrifício. Se a fé na substituição pela vítima sacrificada significa a reminiscência de algo que não é um aspecto originário do eu, mas proveniente da história da dominação, ele se converte para o eu plenamente desenvolvido numa inverdade: o eu é exactamente o indivíduo humano ao qual não se credita mais a força mágica da substituição. A constituição do eu corta exactamente aquela conexão flutuante com a natureza que o sacrifício do eu pretende estabelecer. Todo sacrifício é uma restauração desmentida pela realidade histórica na qual ela é empreendida. A fé venerável no sacrifício, porém, já é provavelmente um esquema inculcado, segundo o qual os indivíduos subjugados infligem mais uma vez a si próprios a injustiça que lhes foi infligida, a fim de poder suportá-la. O sacrifício não salva, por uma restituição substitutiva, a comunicação imediata apenas interrompida que os mitólogos de hoje lhe atribuem, mas, ao contrário, a instituição do sacrifício é ela própria a marca de uma catástrofe histórica, um acto de violência que atinge os homens e a natureza igualmente. A astúcia nada mais é do que o desdobramento subjectivo dessa inverdade objectiva do sacrifício que ela vem substituir. Talvez essa inverdade não tenha sido sempre apenas uma inverdade. Pode ser que, em determinada época (8) dos tempos primitivos, os sacrifícios tenham possuído uma espécie de racionalidade crua, que no entanto já então mal se podia separar da sede de privilégios. A teoria do sacrifício predominante hoje em dia relaciona-o à representação do corpo colectivo, da tribo, à qual deve refluir como força o sangue derramado do membro da tribo. Embora o totemismo já fosse em sua época uma ideologia, ele marca no entanto um estado real em que a razão dominante precisava dos sacrifícios. É um estado de carência arcaica, onde é difícil distinguir os sacrifícios humanos do canibalismo. Em certos momentos, com seu aumento numérico, a colectividade só consegue sobreviver provando a carne humana. É possível que, em muitos grupos étnicos ou sociais, o prazer estivesse ligado ao canibalismo de uma maneira da qual só o horror da carne humana dá hoje testemunho. Costumes de épocas posteriores como o do ver sacrum, onde em tempos de fome uma geração inteira de adolescentes era forçada a emigrar em meio a cerimônias rituais, conservam de uma maneira bastante clara os traços dessa racionalidade bárbara e transfigurada. O carácter ilusório dessa racionalidade deve ter se revelado muito antes da formação das religiões populares: assim, quando a caça sistemática começou a prover a tribo de um número suficiente de animais para tornar supérflua a antropofagia, os caçadores e colocadores de armadilhas sensatos devem ter ficado desconcertados com a ordem dos feiticeiros de que os membros da tribo se deixassem devorar. (9) A interpretação mágica e colectiva do sacrifício, que nega totalmente sua racionalidade, é a sua racionalização; mas a hipótese esclarecida e linear de que o que hoje seria ideologia poderia ter sido outrora verdade é ingénua demais: (10) as ideologias mais recentes são apenas reprises das mais antigas, que se estendem tanto mais aquém das ideologias anteriormente conhecidas quanto mais o desenvolvimento da sociedade de classes desmente as ideologias anteriormente sancionadas. A irracionalidade tão invocada do sacrifício exprime simplesmente o facto de que a prática dos sacrifícios sobreviveu à sua própria necessidade racional, que já constituía uma inverdade, isto é, já era particular. É dessa separação entre a racionalidade e a irracionalidade do sacrifício que a astúcia se utiliza. Toda desmitologização tem a forma da experiência inevitável da inanidade e superfluidade dos sacrifícios.
Se, por causa de sua irracionalidade, o princípio do sacrifício se revela efémero, ele perdura ao mesmo tempo em virtude de sua racionalidade. Essa se transformou, não desapareceu. O eu consegue escapar à dissolução na natureza cega, cuja pretensão o sacrifício não cessa de proclamar. Mas ao fazer isso ele permanece justamente preso ao contexto natural como um ser vivo que quer se afirmar contra um outro ser vivo. A substituição do sacrifício pela racionalidade autoconservadora não é menos troca do que o fora o sacrifício. Contudo, o eu que persiste idêntico e que surge com a superação do sacrifício volta imediatamente a ser um ritual sacrificial duro, petrificado, que o homem se celebra para si mesmo opondo sua consciência ao contexto da natureza. Eis aí a verdade da célebre narrativa da mitologia nórdica, segundo a qual Odin se pendurou numa árvore em sacrifício por si mesmo, e da tese de Klages que todo sacrifício é o sacrifício do deus ao deus, tal como ainda se apresenta nesse disfarce monoteísta do mito que é a cristologia. (11) Só que o extracto da mitologia no qual o eu aparece como sacrifício a si mesmo não exprime tanto a concepção originária da religião popular quanto a acolhida do mito na civilização. Na história das classes, a hostilidade do eu ao sacrifício incluía um sacrifício do eu, porque seu preço era a negação da natureza no homem, em vista da dominação sobre a natureza extra-humana e sobre os outros homens. Exactamente essa negação, núcleo de toda racionalidade civilizatória, é a célula da proliferação da irracionalidade mítica. Com a negação da natureza no homem, não apenas o telos da dominação externa da natureza, mas também o telos da própria vida se torna confuso e opaco. No instante em que o homem elide a consciência de si mesmo como natureza, todos os fins para os quais ele se mantém vivo - o progresso social, o aumento de suas forças materiais e espirituais, até mesmo a própria consciência - tornam-se nulos, e a entronização do meio como fim, que assume no capitalismo tardio o carácter de um manifesto desvario, já é perceptível na proto-história da subjectividade. O domínio do homem sobre si mesmo, em que se funda o seu ser, é sempre a destruição virtual do sujeito ao serviço do qual ele ocorre; pois a substância dominada, oprimida e dissolvida pela autoconservação, nada mais é senão o ser vivo, cujas funções configuram, elas tão-somente, as actividades da autoconservação, por conseguinte exactamente aquilo que na verdade devia ser conservado. A anti-razão do capitalismo totalitário, cuja técnica de satisfazer necessidades, em sua forma objectualizada, determinada pela dominação, torna impossível a satisfação de necessidades e impele ao extermínio dos homens - essa anti-razão está desenvolvida de maneira prototípica no herói que se furta ao sacrifício sacrificando-se. A história da civilização é a história da introversão do sacrifício. Ou por outra, a história da renúncia. Quem pratica a renúncia dá mais de sua vida do que lhe é restituído, mais do que a vida que ele defende. Isso fica evidente no contexto da falsa sociedade. Nela cada um é demais e se vê logrado. Mas é por uma necessidade social que quem quer que se furte à troca universal, desigual e injusta, que não renuncie, mas agarre imediatamente o todo inteiro, por isso mesmo há de perder tudo, até mesmo o resto miserável que a auto-conservação lhe concede. Todos esses sacrifícios supérfluos são necessários: contra o sacrifício. Uma vítima de um desses sacrifícios é o próprio Ulisses, o eu que está sempre a se refrear (12) e assim deixa escapar a vida que salvou e que só recorda como uma viagem de erros. No entanto, ele é ao mesmo tempo uma vítima que se sacrifica pela abolição do sacrifício. Sua renúncia senhoril é, enquanto luta com o mito, representativa de uma sociedade que não precisa mais da renúncia e da dominação: que se tornou senhora de si, não para fazer violência a si mesma e aos outros, mas para a reconciliação.
A transformação do sacrifício em subjectividade tem lugar sob o signo daquela astúcia que sempre teve uma parte no sacrifício. Na inverdade da astúcia, a fraude presente no sacrifício torna-se um elemento do carácter, uma mutilação do herói astuto arrojado pelo mar (13) e cuja fisionomia está marcada pelos golpes que desferiu contra si mesmo a fim de se autoconservar. Aí se exprime a relação entre o espírito e a força física. O portador do espírito, o que comanda (e é assim que o astucioso Ulisses é quase sempre apresentado) é, apesar dos relatos de suas façanhas, sempre fisicamente mais fraco do que as potências dos tempos primitivos com as quais deve lutar pela vida. Os episódios celebrando a pura força física do aventureiro, o pugilato patrocinado pelos pretendentes com o mendigo Iros e o retesamento do arco, são de natureza desportiva. A autoconservação e a força física separaram-se: as habilidades atléticas de Ulisses são as do gentleman, que, livre dos cuidados práticos, pode treinar de uma maneira ao mesmo tempo senhoril e controlada. A força dissociada da autoconservação reverte em proveito da autoconservação: no agon (14) com o mendigo fraco, voraz, indisciplinado, ou com os que vivem no ócio, Ulisses inflige simbolicamente aos atrasados aquilo que a dominação territorial organizada há muito já fizera com eles na realidade, e assim prova sua nobreza. Quando, porém, encontra potências do mundo primitivo, que não se domesticaram nem se afrouxaram, suas dificuldades são maiores. Ele não pode jamais travar luta física com os poderes míticos que continuam a existir à margem da civilização. Ele tem que reconhecer como um. facto os cerimoniais sacrificiais com os quais acaba sempre por se envolver, pois não tem força para infringi-los. Em vez disso, faz deles o pressuposto formal de sua própria decisão racional, que se realizará sempre, por assim dizer, no interior do veredicto proto-histórico subjacente à situação sacrificial. O facto de que o sacrifício antigo se tornara entrementes ele próprio irracional apresenta-se à inteligência do mais fraco como a estupidez do ritual. Ele permanece aceite, sua letra é estritamente observada. Mas a sentença que perdeu o sentido refuta-se a si mesma pelo facto de que seu próprio estatuto dá margem a que se esquive a ela. É exactamente o espírito dominador da natureza que reivindica sempre a superioridade da natureza na competição. Todo esclarecimento burguês está de acordo na exigência de sobriedade, realismo, avaliação correcta de relações de força. O desejo não deve ser o pai do pensamento. Mas isso deriva do facto de que, na sociedade de classes, todo poderio está ligado à consciência incómoda da própria impotência diante da natureza física e de seus herdeiros sociais, a maioria. Só a adaptação conscientemente controlada à natureza a coloca sob o poder dos fisicamente mais fracos. A ratio, que recalca a mimese, não é simplesmente seu contrário. Ela própria é mimese: a mimese do que está morto. O espírito subjectivo que exclui a alma da natureza só domina essa natureza privada da alma imitando sua rigidez e excluindo-se a si mesmo como animista. A imitação se põe ao serviço da dominação na medida em que até o homem se transforma num antropomorfismo para o homem. O esquema da astúcia ulissiana é a dominação da natureza mediante essa assimilação. A avaliação das relações de força, que de antemão coloca a sobrevivência na dependência por assim dizer da confissão da própria derrota e virtualmente da morte, já contém in nuce o princípio da desilusão burguesa, o esquema exterior para a interiorização do sacrifício, a renúncia. O astucioso só sobrevive ao preço de seu próprio sonho, a quem ele faz as contas desencantando-se a si mesmo bem como aos poderes exteriores. Ele jamais pode ter o todo; tem sempre de saber esperar, ter paciência, renunciar; não pode provar do lótus nem tampouco da carne dos bois de Hipérion; e quando guia sua nau por entre os rochedos, tem de incluir em seu cálculo a perda dos companheiros que Cila arranca ao navio. Ele tem que se virar, eis aí sua maneira de sobreviver, e toda a glória que ele próprio e os outros aí lhe concedem confirma apenas que a dignidade de herói só é conquistada humilhando a ânsia de uma felicidade total, universal, indivisa.
A fórmula para a astúcia de Ulisses consiste em fazer com que o espírito instrumental, amoldando-se resignadamente à natureza, dê a esta o que a ela pertence e assim justamente a logre. Os monstros míticos em cujo poder ele cai representam sempre, por assim dizer, contratos petrificados, reivindicações pré-históricas. É assim que a religião popular antiga, numa fase avançada da era patriarcal, se apresenta em suas relíquias dispersas: sob o céu olímpico, elas se tornaram figuras do destino abstracto, da necessidade distante dos sentidos. A impossibilidade, por exemplo, de escolher uma rota diversa da que passa por entre Cila e Caríbdis pode ser compreendida de maneira racionalista como a transformação mítica da superioridade das correntes marítimas sobre as pequenas embarcações da antiguidade. Mas, nessa transferência objectualizadora operada pelo mito, a relação natural entre força e impotência já assumiu o carácter de uma relação jurídica. Cila e Caríbdis têm o direito de reclamar aquilo que lhes cai entre os dentes, assim como Circe tem o direito de metamorfosear quem quer que não seja imune à sua mágica, ou Polifemo o direito de devorar seus hóspedes. Cada uma das figuras míticas está obrigada a fazer sempre a mesma coisa. Todas consistem na repetição: o malogro desta seria seu fim. Todas têm os traços daquilo que, nos mitos punitivos do inferno - os mitos de Tântalo, de Sísifo, das Danaides - , se fundamenta no veredicto do Olimpo. São figuras da compulsão: as atrocidades que cometem representam a maldição que pesa sobre elas. A inevitabilidade mítica é definida pela equivalência entre essa maldição, o crime que a expia e a culpa que dele resulta e reproduz a maldição. A justiça traz até hoje a marca desse esquema. No mito, cada ponto do ciclo faz reparação ao precedente e ajuda assim a instalar como lei as relações de culpa. É a isso que se opõe Ulisses. O eu representa a universalidade racional contra a inevitabilidade do destino. Mas, como ele encontra o universal e o inevitável entrelaçados, sua racionalidade assume necessariamente uma forma restritiva, a da excepção. Ele está obrigado a se subtrair às relações jurídicas que o encerram e o ameaçam e que, de certa maneira, estão inscritas em cada figura mítica. Ele satisfaz o estatuto jurídico de tal sorte que este perde seu poder sobre ele, na medida mesmo em que lhe concede esse poder. É possível ouvir as Sereias e a elas não sucumbir: não se pode desafiá-las. Desafio e cegueira são uma só coisa, e quem as desafia está por isso mesmo entregue ao mito ao qual se expõe. A astúcia, porém, é o desafio que se tornou racional. Ulisses não tenta tomar um caminho diverso do que passa pela ilha das Sereias. Tampouco tenta, por exemplo, alardear a superioridade de seu saber e escutar livremente as sedutoras, na presunção de que sua liberdade constitua protecção suficiente. Ele se apequena, o navio toma sua rota predeterminada e fatal, e ele se dá conta de que continua como ouvinte entregue à natureza, por mais que se distancie conscientemente dela. Ele cumpre o contrato de sua servidão (15) e se debate amarrado ao mastro para se precipitar nos braços das corruptoras. Mas ele descobriu no contrato uma lacuna pela qual escapa às suas normas, cumprindo-as. O contrato antiquíssimo não prevê se o navegante que passa ao largo deve escutar a canção amarrado ou desamarrado. O costume de amarrar os prisioneiros pertence a uma fase em que eles não são mais sumariamente executados. Ulisses reconhece a superioridade arcaica da canção deixando-se, tecnicamente esclarecido, amarrar. Ele se inclina à canção do prazer e frustra-a como frustra a morte. O ouvinte amarrado quer ir ter com as Sereias como qualquer outro. Só que ele arranjou um modo de, entregando-se, não ficar entregue a elas. Apesar da violência de seu desejo, que reflecte a violência das próprias semideusas, ele não pode reunir-se a elas, porque os companheiros a remar, com os ouvidos tapados de cera, estão surdos não apenas para as semideusas, mas também para o grito desesperado de seu comandante. As Sereias recebem sua parte, mas, na proto-história da burguesia, isto já se neutralizou na nostalgia de quem passa ao largo. A epopeia cala-se acerca do que acontece às cantoras depois que o navio desapareceu. Mas, na tragédia, deveria ter sido sua última hora, como foi a da Esfinge quando Édipo resolveu o enigma, cumprindo sua ordem e assim precipitando sua queda. Pois o direito das figuras míticas, que é o direito do mais forte, vive tão-somente da impossibilidade de cumprir seu estatuto. Se este é satisfeito, então tudo acabou para os mitos até sua mais remota posteridade. Desde o feliz e malogrado encontro de Ulisses com as Sereias, todas as canções ficaram afectadas, e a música ocidental inteira labora no contra-senso que representa o canto na civilização, mas que, ao mesmo tempo, constitui de novo a força motora de toda arte musical.
Com a dissolução do contrato através de sua observância literal, altera-se a posição histórica da linguagem: ela começa a transformar-se em designação. O destino mítico, fatum, e a palavra falada eram uma só coisa. A esfera das representações a que pertencem as sentenças do destino executadas invariavelmente pelas figuras míticas ainda não conhece a distinção entre palavra e objecto. A palavra deve ter um poderio imediato sobre a coisa, expressão e intenção confluem. A astúcia, contudo, consiste em explorar a distinção, agarrando-se à palavra, para modificar a coisa. Surge assim a consciência da intenção: premido pela necessidade, Ulisses se apercebe do dualismo, ao descobrir que a palavra idêntica pode significar coisas diferentes. Como o nome Oudeis (16) pode ser atribuído tanto ao herói quanto a ninguém, Ulisses consegue romper o encanto do nome. As palavras imutáveis permanecem fórmulas para o contexto inexorável da natureza. Na magia, sua rigidez já devia fazer face à rigidez do destino que ao mesmo tempo se reflectia nela. Isso já implicava a oposição entre a palavra e aquilo ao qual ela se assimilava. Na fase homérica, essa oposição torna-se determinante. Ulisses descobre nas palavras o que na sociedade burguesa plenamente desenvolvida se chama formalismo: o preço de sua validade permanente é o facto de que elas se distanciam do conteúdo que as preenche em cada caso e que, a distância, se referem a todo conteúdo possível, tanto a ninguém quanto ao próprio Ulisses. É do formalismo dos nomes e estatutos míticos, que querem reger com a mesma indiferença da natureza os homens e a história, que surge o nominalismo, o protótipo do pensamento burguês. A astúcia da autoconservação vive do processo que rege a relação entre a palavra e a coisa. Os dois actos contraditórios de Ulisses no encontro com Polifemo - sua obediência ao nome e seu repúdio dele - são, porém, mais uma vez a mesma coisa. Ele faz profissão de si mesmo negando-se como Ninguém, ele salva a própria vida fazendo-se desaparecer. Essa adaptação pela linguagem ao que está morto contém o esquema da matemática moderna.
A astúcia como meio de uma troca onde tudo se passa correctamente, onde o contrato é respeitado e, no entanto, o parceiro é logrado, remete a um modelo económico que aparece, senão nos tempos míticos, pelo menos na aurora da antiguidade: é a antiquíssima "troca ocasional" entre economias domésticas fechadas. "Os excedentes são trocados ocasionalmente, mas a principal fonte do abastecimento é a autoprodução." (17) O comportamento do aventureiro Ulisses lembra o comportamento do trocador ocasional. Mesmo sob a figura patética do mendigo, o homem feudal exibe os traços do comerciante oriental (18) que retorna com riquezas inauditas, porque, pela primeira vez e opondo-se à tradição, saiu do âmbito da economia doméstica e "embarcou". Do ponto de vista económico, o elemento aventureiro de seus empreendimentos nada mais é do que o aspecto irracional de sua ratio em face da forma económica tradicionalista ainda predominante. Essa irracionalidade da ratio sedimentou-se na astúcia enquanto assimilação da razão burguesa - àquela irrazão que vem a seu encontro como um poder ainda maior. O solitário astucioso já é o homo oeconomicus, ao qual se assemelham todos os seres racionais: por isso, a Odisseia já é uma robinsonada. Os dois náufragos prototípicos fazem de sua fraqueza - a fraqueza do indivíduo que se separa da colectividade - sua força social. Entregues ao acaso das ondas, desamparadamente isolados, seu isolamento dita-lhes a perseguição implacável do interesse atomístico. Eles personificam o princípio da economia capitalista, antes mesmo que esta recorra aos serviços de um trabalhador: mas os bens que salvam do naufrágio para empregar em um novo empreendimento transfiguram a verdade segundo a qual o empresário jamais enfrentou a competição unicamente com o labor de suas mãos. Sua impotência em face da natureza já funciona como justificação ideológica de sua supremacia social. O desamparo de Ulisses diante da fúria do mar já soa como a legitimação do viajante que se enriquece à custa do nativo. Foi isso que a teoria económica burguesa fixou posteriormente no conceito do risco: a possibilidade da ruína é a justificação moral do lucro. Do ponto de vista das sociedades de troca desenvolvidas e dos indivíduos que as compõem, as aventuras de Ulisses nada mais são do que a descrição dos riscos que constituem o caminho para o sucesso. Ulisses vive segundo o princípio primordial que constituiu outrora a sociedade burguesa. A escolha era entre lograr ou arruinar-se. O logro era a marca da ratio, traindo sua particularidade. Por isso a socialização universal, esboçada na história de Ulisses, o navegante do mundo, e na de Robinson, o fabricante solitário, já implica desde a origem a solidão absoluta, que se torna manifesta ao fim da era burguesa. Socialização radical significa alienação radical. Ulisses e Robinson têm ambos a ver com a totalidade: aquele a percorre, este a produz. Ambos só a realizam em total separação de todos os demais homens. Estes só vêm ao encontro dos dois em uma feição alienada, como inimigos ou como pontos de apoio, sempre como instrumentos, como coisas.
Uma das primeiras aventuras do nostos (19) propriamente dito remonta, é verdade, muito mais alto, e até mesmo muito aquém da era bárbara das caretas dos demónios e das divindades mágicas. Trata-se da narrativa dos lotófagos, dos comedores de lótus. Quem prova de sua comida sucumbe como os que escutam as Sereias ou como os que foram tocados pela varinha de Circe. Todavia, nenhum mal é feito a suas vítimas: "Os lotófagos nenhum mal fizeram aos homens de nosso grupo." (20) A única ameaça é o esquecimento e a destruição da vontade. A maldição condena-os unicamente ao estado primitivo sem trabalho e sem luta na "fértil campina": (21) "ora, quem saboreava a planta do lótus, mais doce do que o mel, não pensava mais em trazer notícias nem em voltar, mas só queria ficar aí, na companhia dos lotófagos, colhendo o lótus, e esquecido da pátria". (22) Essa cena idílica - que lembra a felicidade dos narcóticos, de que se servem as camadas oprimidas nas sociedades endurecidas, a fim de suportar o insuportável - , essa cena, a razão autoconservadora não pode admiti-la entre os seus. Esse idílio é na verdade a mera aparência da felicidade, um estado apático e vegetativo, pobre como a vida dos animais e no melhor dos casos a ausência da consciência da infelicidade. Mas a felicidade encerra a verdade. Ela é essencialmente um resultado e se desenvolve na superação do sofrimento. E essa a justificação do herói sofredor, que não sofre permanecer entre os lotófagos. Ele defende contra estes a própria causa deles, a realização da utopia, através do trabalho histórico, pois o simples facto de se demorar na imagem da beatitude é suficiente para roubar-lhe o vigor. Mas ao perceber essa justificação, a racionalidade, isto é, Ulisses, entra forçosamente no contexto da injustiça. Enquanto imediata, sua própria acção resulta em favor da dominação. Essa felicidade "nos limites do mundo" (23) é tão inadmissível para a razão autoconservadora quanto a felicidade mais perigosa de fases posteriores. Os preguiçosos são despertados e transportados para as galeras: "mas eu os trouxe de novo à força, debulhados em lágrimas, para as naus; arrastei-os para os navios espaçosos e amarrei-os debaixo dos bancos." (24) O lótus é um alimento oriental. Ainda hoje, cortado em finas fatias, desempenha seu papel na cozinha chinesa e indiana. A tentação que lhe é atribuída, não é talvez, outra coisa senão a da regressão à fase da colecta dos frutos da terra (25) e do mar, anterior à agricultura, à pecuária e mesmo à caça, em suma, a toda a produção. Não é certamente por acaso que a epopeia liga a imagem do país de Cocanha à alimentação de flores, mesmo que se trate de flores nas quais nada de semelhante se possa hoje notar. O hábito de comer flores - que ainda se pratica à sobremesa no Próximo Oriente e que as crianças europeias conhecem das massas assadas com leite de rosas e das violetas cristalizadas - é a promessa de um estado em que a reprodução da vida se tornou independente da autoconservação consciente e o prazer de se fartar se tornou independente da utilidade de uma alimentação planejada. A lembrança da felicidade mais remota e mais antiga, que desperta o sentido do olfacto, ainda está intimamente ligada à proximidade extrema da incorporação. Ela remete à proto-história. Não importa quantos tormentos os homens aí padeceram, eles não conseguem imaginar nenhuma felicidade que não se nutra da imagem dessa proto-história: "assim prosseguimos viagem, com o coração amargurado". (26)
A próxima figura à qual o astucioso Ulisses é arremessado - em Homero ser arremessado e ser astucioso são equivalentes (27) -, o ciclope Polifemo, traz em seu olho do tamanho de uma roda o vestígio do mesmo mundo pré-histórico: esse olho único lembra o nariz e a boca, mais primitivos do que a simetria dos olhos e dos ouvidos, (28) que, na unidade de duas percepções coincidentes, vem possibilitar a identificação, a profundidade e a objectualidade em geral. Mas ele representa, no entanto, em face dos lotófagos, uma era posterior, a era propriamente bárbara, que é a dos caçadores e pastores. Ele chama os ciclopes de "celerados sem lei", (29) porque eles (e nisso há algo que se assemelha a uma secreta confissão de culpa da própria civilização) "confiando no poderio dos deuses imortais, nada cultivam com as mãos, plantando ou lavrando; mas, sem ninguém para plantar ou cultivar, crescem as plantas, tanto o trigo quanto a cevada e as nobres cepas, carregadas de grandes cachos, que a chuva de Crônion vem nutrir". (30) A abundância não precisa da lei e a acusação civilizatória da anarquia soa quase como uma denúncia da abundância: "aí não há nem leis nem assembleias do povo, mas habitam em volta dos penhascos das montanhas em grutas côncavas; e cada um dita arbitrariamente a lei às mulheres e às crianças; e ninguém tem consideração pelos outros". (31) Já é uma sociedade patriarcal, baseada na opressão dos fisicamente mais fracos, mas ainda não organizada segundo o critério da propriedade fixa e de sua hierarquia; e é a ausência de vínculos entre os habitantes das cavernas que explica a ausência de uma lei objectiva e assim justifica a censura homérica da desconsideração recíproca, característica do estado selvagem. Ao mesmo tempo, a fidelidade pragmática do narrador desmente numa passagem posterior seu juízo civilizado: toda a tribo atende ao grito de pavor do ciclope cegado para ajudá-lo, e apenas o estratagema que Ulisses arma com seu nome impede os tolos de darem assistência ao seu semelhante. (32) A estupidez e a ausência de leis aparecem como o mesmo atributo: quando Homero chama o ciclope de "monstro que pensa sem lei", (33) isso não significa meramente que ele não respeite em seu pensamento as leis da civilidade. Isso significa também que o seu próprio pensamento é sem lei, assistemático, rapsódico, quando por exemplo não consegue resolver o singelo problema de raciocínio, que consiste em saber de que maneira seus hóspedes não-indesejáveis conseguem escapar da caverna (a saber, agarrando-se ao ventre dos carneiros, ao invés de cavalgá-los) e também quando não se dá conta do sofístico duplo sentido do nome falso de Ulisses. Polifemo, que confia no poderio dos imortais, é no entanto um antropófago e é por isso que, apesar dessa confiança, recusa reverência aos deuses: "tu és louco, estranho, ou vens de longe" - em épocas posteriores, a distinção entre o louco e o estranho era menos escrupulosa e o desconhecimento do costume, assim como todo modo de ser estranho, eram imediatamente tachados de loucura - , "tu que me exortas a temer os deuses e sua vingança! Pois de nada valem para os ciclopes o trovejador Zeus Crônion, nem os deuses bem-aventurados, pois somos muito superiores!" (34) "Superiores", escarnece o narrador Ulisses. Mas o que ele de facto queria dizer era: mais velhos. O poderio do sistema solar é reconhecido, porém mais ou menos assim como um senhor feudal reconhece o poderio da riqueza burguesa, embora secretamente se sinta como o mais nobre, sem perceber que a injustiça que lhe foi feita é da mesma ordem que a injustiça que ele próprio representa. Posseidon, o deus marinho próximo, pai de Polifemo e inimigo de Ulisses, é mais velho do que Zeus, o deus celeste universal e distante, e é por assim dizer sobre o dorso do sujeito que é decidido o conflito entre a religião popular elementarista e a religião logocêntrica da lei. Mas o Polifemo sem lei não é o simples vilão em que o transformam os tabus da civilização, quando o apresentam no mundo fabuloso da infância esclarecida como o monstro Golias. No domínio restrito, em que sua autoconservação levou-o a adoptar uma certa ordem e costume, não lhe falta um aspecto conciliante. Quando achega os filhotes ao ubre de suas ovelhas e cabras, esse acto prático implica o desvelo pela própria criatura. E o famoso discurso que o gigante faz, depois de ficar cego, ao carneiro-mestre (que chama de seu amigo e de quem indaga por que agora abandona por último a caverna e se por acaso lhe faz pena o infortúnio de seu senhor) atinge uma intensidade de emoção que só é atingida de novo na passagem que representa o ponto culminante da Odisseia, quando Ulisses, retornando a casa, é reconhecido pelo velho cão Argos, em que pese a abominável crueza com que termina o discurso. O comportamento do gigante ainda não se objectivou na forma do carácter. Ele responde às súplicas de Ulisses não simplesmente com a expressão do ódio selvagem, mas apenas com a recusa da lei que ainda não o alcançou realmente: ele não quer poupar Ulisses e os seus companheiros: "se meu coração não mandar", (35) e não é certo se ele realmente, como afirma Ulisses em sua narrativa, fala com malícia. De maneira jactanciosa e arrebatada, o embriagado promete presentes de hospitalidade (36) a Ulisses e só a ideia de Ulisses como Ninguém leva-o ao pérfido pensamento de cobrar o presente de hospitalidade devorando por último o chefe - talvez porque esse se denominou Ninguém e por isso não conta como existente para a fraca inteligência do ciclope. (37) A brutalidade física desse ente monstruosamente forte é a sua confiança inconstante. Por isso o cumprimento do estatuto mítico, que é sempre injustiça para o condenado, torna-se injustiça também para o poder natural que estabelece o direito. Polifemo e os outros monstros ludibriados por Ulisses já são os modelos para os diabos estúpidos da era cristã até Shylock e Mefistófeles. A estupidez do gigante, substância de sua bárbara brutalidade enquanto tudo corre bem para ele, passa a representar algo de melhor tão logo é esmagada por quem deveria saber melhor. Ulisses insinua-se na confiança de Polifemo e assim ao direito de presa à carne humana que ele representa, segundo o esquema da astúcia que destrói o estatuto cumprindo-o: "Toma, ciclope, e bebe; o vinho vai bem com a carne humana; vê que delícia é a bebida guardada, no navio que nos trouxe", (38) recomenda o representante da cultura.
A assimilação da ratio ao seu contrário, um estado de consciência a partir do qual ainda não se cristalizou uma identidade estável e representado pelo gigante trapalhão, completa-se, porém, na astúcia do nome. Ela pertence a um folclore muito difundido. Em grego trata-se de um jogo de palavras; na única palavra que se conserva separam-se o nome - Odysseus (Ulisses) - e a intenção - Ninguém. Para ouvidos modernos, Odysseus e Oudeis ainda têm um som semelhante, e é fácil imaginar que, em um dos dialectos em que se transmitiu a história do retorno a Ítaca, o nome do rei desta ilha era de facto um homófono do nome de Ninguém. O cálculo que Ulisses faz de que Polifemo, indagado por sua tribo quanto ao nome do culpado, responderia dizendo: "Ninguém" e assim ajudaria a ocultar o acontecido e a subtrair o culpado à perseguição, dá a impressão de ser uma transparente racionalização. Na verdade, o sujeito Ulisses renega a própria identidade que o transforma em sujeito e preserva a vida por uma imitação mim ética do amorfo. Ele se denomina Ninguém porque Polifemo não é um eu e a confusão do nome e da coisa impede ao bárbaro logrado escapar à armadilha: seu grito, na medida em que é um grito por vingança, permanece magicamente ligado ao nome daquele de quem se quer vingar, e esse nome condena o grito à impotência. Pois ao introduzir no nome a intenção, Ulisses o subtraiu ao domínio da magia. Mas sua auto-afirmação é, como na epopeia inteira, como em toda civilização, uma autodenegação. Desse modo o eu cai precisamente no círculo compulsivo da necessidade natural ao qual tentava escapar pela assimilação. Quem, para se salvar, se denomina Ninguém e manipula os processos de assimilação ao estado natural como um meio de dominar a natureza sucumbe à hybris. O astucioso Ulisses não pode agir de outro modo: ao fugir, ainda ao alcance das pedras arremessadas pelo gigante, não se contenta em zombar dele, mas revela seu verdadeiro nome e sua origem, como se o mundo primitivo, ao qual sempre acaba por escapar, ainda tivesse sobre ele um tal poder que, por ter se chamado de Ninguém, devesse temer voltar a ser Ninguém, se não restaurasse sua própria identidade graças à palavra mágica, que a identidade racional acabara de substituir. Os amigos tentam em vão preservá-lo da tolice de proclamar sua sagacidade, e é por um fio que escapa às rochas arremessadas por Polifemo. Ao mesmo tempo, foi a designação de seu nome que provavelmente atraiu para ele o ódio de Posseidon - que não se pode dizer que tenha sido apresentado como omnisciente. A astúcia, que para o inteligente consiste em assumir a aparência da estupidez, converte-se em estupidez tão pronto ele renuncie a essa aparência. Eis aí a dialéctica da eloquência. Da antiguidade ao fascismo, tem-se censurado a Homero o palavrório de seus heróis e do próprio narrador. Mas o Jónio revelou-se profeticamente superior tanto aos antigos quanto aos jovens espartanos ao mostrar a fatalidade que o discurso do astucioso - o mediador - faz recair sobre ele. O discurso que suplanta a força física é incapaz de se deter. Seu fluxo acompanha como uma paródia a corrente da consciência, o próprio pensamento, cuja autonomia imperturbável assume um aspecto de loucura - o aspecto maníaco - quando entra na realidade pelo discurso, como se o pensamento e a realidade fossem homónimos, ao passo que o pensamento só tem poder sobre a realidade pela distância. Essa distância, porém, é ao mesmo tempo sofrimento. Por isso, o inteligente - contrariamente ao provérbio está sempre tentado a falar demais. Ele está objectivamente condicionado pelo medo de que a frágil vantagem da palavra sobre a força poderá lhe ser de novo tomada pela força se não se agarrar o tempo todo a ela. Pois a palavra sabe-se mais fraca do que a natureza que ela enganou. Quem fala demais deixa transparecer a força e a injustiça como seu próprio princípio e assim excita sempre aquele que deve ser temido a cometer exactamente a acção temida. A mítica compulsão da palavra nos tempos pré-históricos perpetua-se na desgraça que a palavra esclarecida atrai para si própria. Oudeis, que se dá compulsivamente a conhecer como Ulisses, já apresenta os traços característicos do judeu que, mesmo na angústia da morte, se gaba da superioridade que dela resulta; e a vingança contra o mediador não aparece só ao fim da sociedade burguesa, mas já está em seu começo como a utopia negativa à qual toda forma de violência sempre tende.
Diferentemente das lendas que narram a fuga do mito como a fuga da barbárie do canibalismo, a história mágica de Circe remete à fase mágica propriamente dita. A magia desintegra o eu que volta a cair em seu poder e assim se vê rebaixado a uma espécie biológica mais antiga. Mas a força dessa dissolução é, mais uma vez, a do esquecimento. Ela se apodera ao mesmo tempo da ordem fixa do tempo e da vontade fixa do sujeito que se orienta por essa ordem. Circe induz sedutoramente os homens a se abandonarem à pulsão instintiva: a forma animal dos seduzidos foi sempre relacionada com isso e Circe transformou-se no protótipo da hetaira, imagem essa motivada provavelmente pelos versos de Hermes que lhe atribuíam como um facto óbvio a iniciativa erótica: " Assustada, ela instará contigo a que partilhes de teu leito. Não resistas diante do leito da deusa." (39) A marca distintiva de Circe é a ambiguidade, ao aparecer na acção, sucessivamente, como corruptora e benfeitora: ela é a filha de Hélio e a neta de Oceano (40). Nela estão inseparavelmente mesclados os elementos do fogo e da água, e é essa indivisibilidade, no sentido de uma oposição ao primado de um aspecto determinado da natureza - seja o matriarcal, seja o patriarcal - , que constitui a essência da promiscuidade, o hetáirico, que ainda brilha no olhar da prostituta, o húmido reflexo do astro. (41) A hetaira distribui a felicidade e destrói a autonomia de quem fez feliz, eis aí sua ambiguidade. Mas o indivíduo, ela não o destrói necessariamente: ela fixa uma forma de vida mais antiga (42). Como os lotófagos, Circe não fere mortalmente seus hóspedes, e até mesmo aqueles que ela transformou em animais selvagens são pacíficos: "Em volta viam-se também lobos monteses e leões de grandes jubas que ela própria enfeitiçara com suas drogas nocivas. Todavia, não investiam contra os homens, mas festejavam-nos, erguendo-se sobre as patas e abanando as caudas. Do mesmo modo que os cães cercam o dono, quando este volta de um banquete, porque sempre lhes traz bons petiscos, assim lobos e leões de fortes garras cercavam os homens abanando as caudas" (43). As pessoas encantadas comportam-se como os animais selvagens que ouvem Orfeu tocar. A mítica injunção a que sucumbem dá rédeas ao mesmo tempo à liberdade neles reprimida. O que é revogado em sua recaída no mito é ele próprio mito. A repressão do instinto, a qual os transformou num eu e os distinguiu do animal, era a introversão da repressão no ciclo desesperadamente fechado da natureza, a que alude, segundo uma concepção mais antiga, o nome Circe. Em compensação, o violento sortilégio que lhes recorda a proto-história idealizada produz não só a animalidade, mas também - como no idílio dos lotófagos - a ilusão da reconciliação. Contudo, como já foram homens, a epopeia civilizatória não sabe apresentar o que lhes ocorreu a não ser como uma queda nefasta, e no relato homérico mal se percebe sequer o vestígio do prazer. Ele é expurgado com ênfase tanto maior quanto mais civilizadas são as vítimas sacrificadas. (44) Os companheiros de Ulisses não se transformam como os hóspedes anteriores nas criaturas sagradas das regiões selvagens, mas em animais domésticos impuros, porcos. Na história de Circe insinua-se talvez a reminiscência do culto ctônico de Deméter, para quem o porco era sagrado. (45) Mas talvez também seja a ideia de uma semelhança entre a anatomia do porco e a do homem e de sua nudez que explique esse motivo: como se entre os jónios houvesse o mesmo tabu que há entre os judeus acerca da mistura com os semelhantes. Finalmente, pode-se pensar na proibição do canibalismo, pois, como em Juvenal, o sabor da carne humana é sempre descrito como semelhante ao da carne de porco. Em todo caso, todas as civilizações posteriores preferiram qualificar de porcos aqueles cujo instinto buscava um prazer diverso daquele que a sociedade sanciona para seus fins. Magia e contramagia estão ligadas, na metamorfose dos companheiros de Ulisses, a ervas e ao vinho; à embriaguez e ao despertar, ao olfacto como o sentido cada vez mais reprimido e recalcado e que mais próximo está tanto do sexo quanto da lembrança dos tempos primitivos (46). Mas, na imagem do porco, o prazer do olfacto já está desfigurado no fungar (47) compulsivo de quem arrasta o nariz pelo chão e renunciou ao andar erecto. É como se a hetaira encantadora repetisse no ritual a que submete os homens o ritual ao qual ela própria é o tempo todo submetida pela sociedade patriarcal. Igual a ela, as mulheres se inclinam, sob a pressão da civilização, a adoptar o juízo civilizatório sobre a mulher e a difamar o sexo. No debate do esclarecimento e do mito, cujos vestígios a epopeia ainda conserva, a poderosa sedutora já se mostra fraca, obsoleta, vulnerável, e precisa dos animais submissos por escolta (48). Como representante da natureza, a mulher tornou-se na sociedade burguesa a imagem enigmática da sedução irresistíve1 (49) e da impotência. Ela espelha assim para a dominação a vã mentira que substitui a reconciliação pela subjugação da natureza.
O casamento é a via média que a sociedade segue para se acomodar a isso: a mulher continua a ser impotente na medida em que o poder só lhe é concedido pela mediação do homem. Isso já está, até certo ponto, delineado na Odisseia com a derrota da deusa hetaira, enquanto o casamento plenamente configurado com Penélope, literariamente mais recente, representa um estágio posterior da objectividade da instituição patriarcal. Com a conduta de Ulisses em Eéia (50), a ambiguidade da relação do homem com a mulher - desejo e comando - já assume a forma de uma troca garantida por contratos. A renúncia é o pressuposto disso. Ulisses resiste à magia de Circe e assim consegue aquilo que a magia só ilusoriamente promete aos que não resistem a ela. Ulisses dorme com ela. Antes porém faz com que profira o grande juramento dos bem-aventurados, o juramento olímpico. O juramento deve proteger o homem da mutilação, da vingança para a proibição da promiscuidade e para a dominação masculina, que, no entanto, enquanto renúncia permanente ao instinto, ainda realizam simbolicamente a automutilação do homem. Aquele que resistiu a ela, o senhor, o eu, e a quem Circe por causa de sua imutabilidade censura por trazer "no peito um coração insensível e obstinado" (51) é aquele a quem Circe se dispõe fazer as vontades: "Pois bem! Guarda a espada e vamos logo para o nosso leito a fim de que, unidos no leito e no amor, aprendamos a confiar um no outro" (52). Para o prazer que concede ela estabelece como preço o desdém do prazer: a última hetaira se afirma como o primeiro carácter feminino. Na transição da lenda para a história, ela faz uma contribuição decisiva para a frieza burguesa. Seu comportamento pratica a proibição do amor, que posteriormente se impôs tanto mais poderosamente quanto mais o amor teve, enquanto ideologia, de se prestar à tarefa de dissimular o ódio dos competidores. No mundo da troca, quem está errado é quem dá mais; o amante, porém, é sempre o que ama mais. Ao mesmo tempo que seu sacrifício é glorificado, zela-se ciumentamente para que o amante não seja poupado do sacrifício. É exactamente no amor que o amante fica sem razão e é punido. A incapacidade de dominar a si mesmo e aos outros, de que dá provas seu amor, é motivo suficiente para lhe recusar satisfação. Com a sociedade, reproduz-se de maneira amplificada a solidão. Esse mecanismo prevalece até mesmo nas mais ternas manifestações do sentimento, a tal ponto que o próprio amor, a fim de abrir um caminho qualquer até ao outro, é forçado a tamanha frieza que se destrói com a própria realização. - A força de Circe, que submete e reduz os homens à servidão, converte-se na servidão do homem que, pela renúncia, recusou a submissão. A influência sobre a natureza, que o poeta atribui à deusa Circe, reduz-se ao vaticínio sacerdotal e à prudente previsão de futuras dificuldades náuticas. Tudo isso sobrevive na caricatura da prudência feminina. As profecias da feiticeira destituída de seus poderes sobre as Sereias, Cila e Caríbdis só aproveitam, afinal, à autoconservação masculina.
Quanto custou o preço pago pela instauração de relações ordenadas para a reprodução sexual é o que deixam apenas entrever os versos obscuros que descrevem o comportamento dos amigos que Circe reconverte em homens por ordem de seu senhor contratual. Dizem primeiro: "Logo se transformaram de novo em homens, mais jovens do que haviam sido e também de aparência muito mais bela e aspecto muito mais nobre." (53) Mas os homens assim confirmados e fortalecidos em sua masculinidade não são felizes: "Todos estavam tomados de uma melancolia agridoce e o palácio ressoava com suas queixas." (54) Talvez tenha soado assim o mais antigo hino nupcial, cantado para acompanhar o banquete celebrando o casamento primitivo que dura apenas um ano. O verdadeiro casamento com Penélope tem mais em comum com esse do que se poderia presumir. A prostituta e a esposa são elementos complementares da auto-alienação da mulher no mundo patriarcal: a esposa deixa transparecer prazer com a ordem fixa da vida e da propriedade, enquanto a prostituta toma o que os direitos de posse da esposa deixam livre e, como sua secreta aliada, de novo o submete às relações de posse, vendendo o prazer. Circe como Calipso, as cortesãs, são apresentadas como diligentes teceloas, exactamente como as potências míticas do destino (55) e as donas-de-casa, ao passo que Penélope, desconfiada como uma prostituta, examina o retornado, perguntando-se se não é realmente apenas um mendigo velho ou quem sabe um Deus em busca de aventuras. Todavia, a famosa cena do reconhecimento com Ulisses tem um carácter verdadeiramente patrício: "Por muito tempo ela sentou-se calada, pois o espanto tomava todo o seu coração. Ora achava-o parecido, atentando em seu rosto, ora de novo o desconhecia envolto em vis andrajos." (56) Nenhuma emoção espontânea vem à tona, pois não quer cometer nenhum erro, que de mais a mais, sob a pressão da ordem que pesa sobre ela, dificilmente se poderia permitir. O jovem Telémaco, que ainda não se adaptou direito à sua futura posição, irrita-se com isso, mas já se sente homem o bastante para repreender a mãe. A censura de teimosia e dureza que dirige a ela é exactamente a mesma que Circe fizera antes a Ulisses. Se a hetaira se apropria da ordem de valores patriarcal, a esposa monogâmica não se contenta ela própria com isso e não descansa enquanto não houver se igualado ao carácter masculino. É assim que se entendem os casados. O teste a que submete o retornado tem por conteúdo a posição irremovível do leito nupcial, que o esposo em sua juventude havia construído em torno de uma oliveira, símbolo da unidade do sexo e da propriedade. Com uma astúcia tocante ela fala como se essa cama pudesse ser tirada do lugar, e "zangado" o esposo responde-lhe com a narrativa circunstanciada da obra de seu duradouro artesanato: como protótipo do burguês vivo e habilidoso que é, ele tem um hobby. O hobby consiste na repetição do trabalho artesanal, do qual - no quadro de relações de propriedade - está necessariamente excluído há muito tempo. Ele se compraz nele porque a liberdade de fazer o que para ele é supérfluo confirma seu poder de dispor sobre aqueles que têm que realizar tais trabalhos para viver. É nisso que o reconhece a engenhosa Penélope, que o lisonjeia com o louvor de sua excepcional inteligência. Mas à lisonja, que já contém uma dose de escárnio, juntam-se - numa súbita cesura que interrompe o discurso - as palavras que buscam a razão de todo o sofrimento dos esposos na inveja dos deuses pela felicidade que só é garantida pelo casamento, os "pensamentos confirmados da permanência" (57) : "Os imortais nos cumularam de desgraças, achando demais que desfrutássemos juntos e em paz de nossa juventude e que suavemente nos aproximássemos da velhice". (58) O casamento não significa apenas a ordenação da vida segundo relações de reciprocidade, mas também a solidariedade diante da morte. Nele a reconciliação cresce em torno da submissão, assim como, em toda a história até agora, o humano só floresceu sobre a barbárie que a humanidade justamente oculta. Se o contrato entre os esposos não faz senão redimir penosamente uma hostilidade antiquíssima, os que envelhecem pacificamente se esvaem na imagem de Filémon e Baucis, assim como a fumaça do altar sacrificial se transforma na fumaça salutar da lareira. O casamento pertence certamente à rocha primeira do mito na base da civilização. Mas sua mítica dureza e solidez emerge do mito assim como o pequeno reino insular do mar infinito.
A última etapa da viagem de erros propriamente dita não é nenhum refúgio dessa espécie. É o Hades. As figuras que o aventureiro enxerga na primeira nekyia (59) são antes de mais nada as imagens matriarcais (60) banidas pela religião da luz: depois da própria mãe, diante de quem Ulisses se força a assumir a atitude patriarcal de uma conveniente dureza (61), vêm as heroínas antiquíssimas. Contudo, a imagem da mãe é impotente, cega e muda (62), a imagem de uma alucinação como a própria narrativa épica nos momentos em que abandona a linguagem à imagem. É preciso do sangue sacrificado como penhor de uma lembrança viva para dar fala à imagem, para que esta, ainda que em vão e efemeramente, se arranque à mudez mítica. É só quando se torna senhora de si no reconhecimento da inanidade das imagens que a subjectividade chega a participar da esperança que as imagens prometem em vão. A terra prometida de Ulisses não é o reino arcaico das imagens. Todas as imagens, enquanto sombras no mundo dos mortos, acabam por lhe revelar sua verdadeira essência, a aparência. Ele se livra delas depois de tê-las reconhecido como mortas e de tê-las afastado, com o gesto imperioso da autoconservação, do sacrifício que só oferece a quem lhe concede um saber útil para sua vida, na qual o poder do mito só continua a se afirmar como imaginação transposta para o espírito. O reino dos mortos, onde se reúnem os mitos destituídos de seu poder, é o ponto mais distante da terra natal, e é só na mais extrema distância que ele se comunica com ela. Se seguirmos Kirchhoff na hipótese de que a visita de Ulisses ao inferno pertence à camada mais antiga, propriamente lendária da epopeia (63), é aí também que encontramos o traço que - assim como na tradição das descidas de Orfeu e Hércules ao inferno - mais nitidamente se destaca do mito, pois o motivo do arrombamento das portas do inferno, da supressão da morte, constitui o núcleo de todo pensamento antimitológico. Este elemento antimitológico está contido no vaticínio de Tirésias sobre a possível reconciliação de Posseidon. Ulisses há de errar, com um remo sobre o ombro, até alcançar os homens "que não conhecem o mar e jamais provaram comida temperada com sal" (64). Quando encontrar um viandante e este lhe disser que está carregando uma pá sobre os 'ombros, terá atingido o lugar certo para oferecer a Posseidon o sacrifício reconciliador . O ponto central do vaticínio é o equívoco do remo pela pá, que deve ter parecido enormemente cómico ao Jónio. Mas essa comicidade, de que depende a reconciliação, não pode estar destinada aos homens, mas à ira de Posseidon. (65) O equívoco deve fazer rir o colérico deus elementar, para que em sua gargalhada a raiva se dissipe. Encontramos uma situação análoga em um dos contos dos irmãos Grimm com o conselho que a vizinha dá à mãe sobre como se livrar da figura monstruosa que substituíram a seu filho recém-nascido: "Disse a ela que levasse o monstro para a cozinha, o colocasse sobre o fogão. acendesse o fogo e pusesse água a ferver em duas cascas de ovo: isso faria o monstro rir e, quando risse, ele estaria acabado." (66) Se o riso é até hoje o sinal da violência, o prorrompimento de uma natureza cega e insensível, ele não deixa de conter o elemento contrário: com o riso. a natureza cega toma consciência de si mesma enquanto tal e se priva assim da violência destruidora. Esse duplo sentido do riso está próximo do duplo sentido do nome, e talvez os nomes nada mais sejam do que risadas petrificadas, assim como ainda hoje os apelidos, os únicos nos quais perdura ainda algo do acto originário da denominação. O riso está ligado à culpa da subjectividade, mas, na suspensão do direito que ele anuncia, também aponta para além da servidão. Ele promete o caminho para a pátria. É a saudade de casa que desfecha as aventuras por meio das quais a subjectividade ( cuja proto-história é narrada pela Odisseia) escapa ao mundo primitivo. O facto de que o conceito de pátria se opõe ao mito (que a mentira fascista quer transformar na pátria) constitui o paradoxo mais profundo da epopeia. É aí que se encontra sedimentada a lembrança da passagem histórica da vida nomádica à vida sedentária, que é o pressuposto da existência de qualquer pátria. Se é na ordem fixa da propriedade dada com a vida sedentária, que se origina a alienação dos homens, de onde nasce a nostalgia e a saudade do estado originário perdido, é também na vida sedentária, em compensação, e na propriedade fixa apenas que se forma o conceito da pátria, objecto de toda nostalgia e saudade. A definição de Novalis segundo a qual toda filosofia é nostalgia só é correcta se a nostalgia não se resolve no fantasma de um antiquíssimo estado perdido, mas representa a pátria, a própria natureza, como algo de extraído ao mito. A pátria é o estado de quem escapou. Por isso a censura feita às lendas homéricas de "se afastarem da terra" é a garantia de sua verdade. "Elas voltam-se para a humanidade." (67) A transposição dos mitos para o romance, tal como ocorre na narrativa das aventuras, é menos uma falsificação dos mitos do que um meio de arrastar o mito para dentro do tempo, descobrindo o abismo que o separa da pátria e da reconciliação. Terrível é a vingança que a civilização praticou contra o mundo pré-histórico, e nisso ela se assemelha à pré-história, como se pode ver em seu mais atroz documento em Homero: o relato da mutilação do pastor de cabras Melântio. O que a eleva acima do mundo pré-histórico não é o conteúdo dos crimes relatados. É a tomada de consciência que faz com que a violência se interrompa no momento da narrativa. A própria fala, a linguagem em sua oposição ao canto mítico, a possibilidade de fixar na memória a desgraça ocorrida, é a lei da fuga em Homero. Não é à toa que o herói que escapa é sempre reintroduzido como narrador. É a fria distância da narrativa que, ao apresentar as atrocidades como algo destinado ao entretenimento, permite ao mesmo tempo destacar a atrocidade que, na canção, se confunde solenemente como destino. Mas a interrupção da fala é a cesura, a transformação dos factos relatados em acontecimentos de um passado remoto, que faz cintilar a aparência da liberdade que, desde então, a civilização não extinguiu mais por inteiro. No canto XXII da Odisseia, descreve-se a punição infligida pelo filho de Ulisses nas servas infiéis que haviam recaído na condição de hetairas. Com frieza e serenidade, com uma impassibilidade inumana e só igualada pelos grandes narradores do século dezanove, Homero descreve a sorte das enforcadas e compara-a sem comentários à morte dos pássaros no laço, calando-se num silêncio que é o verdadeiro resto de toda fala. A passagem termina com o verso que descreve como as mulheres enforcadas em fileira "debateram-se um pouco com os pés, mas não por muito tempo" (68). A precisão com que o autor descreve o facto e que já tem alguma coisa da frieza da anatomia e da vivissecção (69) faz do relato uma acta romanceada dos espasmos das mulheres submetidas que, sob o signo do direito e da lei, são arrastadas para o reino de onde escapou o juiz Ulisses. Como um cidadão meditando sobre a execução, Homero consola-se a si mesmo e aos ouvintes, que são na verdade leitores, com a constatação tranquilizadora de que não durou muito: um instante e tudo se acabou (70). Mas, após o "não por muito tempo", o fluxo interno da narrativa estanca. Não por muito tempo? pergunta o gesto do narrador e desmente sua serenidade. Interrompendo o relato, ele nos impede de esquecer as mulheres executadas e revela o inominável e eterno tormento daquele único segundo durante o qual as servas lutam com a morte. O único eco desse "não por muito tempo" que subsiste é aquele "quo usque tandem" (71) que os retores da época posteriores inadvertidamente profanaram ao se atribuírem a si mesmos a paciência. Mas, no relato do crime, resta uma esperança, que se prende ao facto de ter ocorrido há muito tempo. Homero ergue sua voz consoladora sobre essa mistura inextricável da pré-história, da barbárie e da cultura recorrendo ao "era uma vez". É só como romance que a epopeia se transforma em conto de fadas.


Notas do Excurso I
1. Nietzsche, Nachlass. Werke. Vol. XIV, p. 206.
2. Ibid., vol. XV, p. 235.
3. Nietzsche, op. cit. Vol. IX, p. 289
4. Hölderlin, Patmos (edição completa da Inselverlag, texto estabelecido por Zinkernagel) .Leipzig, s. d., p. 230.
5. Esse processo está directamente documentado no começo do vigésimo canto. Ulisses observa como as servas se esgueiram de noite ao encontro dos pretendentes "e o coração em seu peito ladrava. Assim como a cadela valente anda em redor de seus frágeis cachorrinhos e ladra para o desconhecido, instigando-se para a luta, assim também ladrava o coração em seu peito, enfurecido pela conduta vergonhosa das servas. Batendo no coração, punia-o com as seguintes palavras: 'Aguenta, coração! Mais duras penas suportaste no dia em que o ciclope monstruoso devorou enfurecido meus bravos amigos. Suportaste sozinho até que, graças a um estratagema, escapaste da caverna onde antevias uma noite horrorosa!" Assim falou. punindo o coração no peito irado. Logo o coração recobrou a calma e quedou inabalável. Ele. porém, continuava a revolver-se para lá e para cá" (XX. 13/24). O sujeito ainda não está configurado em sua identidade interna. Seus ímpetos. seu ânimo e seu coração excitam-se independentemente dele. "No começo de y, ladra a kradia [kardía, coração] ou ainda o étor [coração] (as duas palavras são sinónimas, 17.22) e Ulisses bate no peito. logo contra o coração, e interpela-o. Ele sente o coração palpitar. logo esta parte de seu corpo excita-se contra sua vontade. Assim, sua interpelação não é meramente formal (como em Eurípedes, que interpela a mão e o pé quando estes devem entrar em acção), mas o coração age de maneira autónoma" (Wilamowitz-Moellendorff, Die Heimkehr des Odysseus. Berlim, 1927. p. 189). O ímpeto é equiparado ao animal que o homem subjuga: a comparação da cadela pertence ao mesmo nível de experiência a que remete a imagem dos companheiros metamorfoseados em porcos. O sujeito, ainda dividido e forçado a usar de violência contra a natureza tanto dentro dele quanto fora dele, "pune" o coração exortando-o à paciência e negando-lhe com o olhar posto no futuro - o presente imediato. Bater no peito tornou-se depois um gesto de triunfo: com esse gesto, o vencedor exprime o facto de que sua vitória é sempre uma vitória sobre sua própria natureza. Esse feito é levado a cabo pela razão autoconservadora. " ...a princípio, o narrador ainda estava pensando no coração que batia rebelde; superior a este era a métís [inteligência, discernimento] , que é assim claramente apresentada como uma outra força interna: foi ela que salvou Ulisses. Os filósofos posteriores tê-la-iam contraposto enquanto nous [razão, espírito, entendimento] ou logistikon [ (poder) capaz de entender , calcular] à parte da alma desprovida de entendimento" (Wilamowjtz. op. cit., p. 190). Do "eu" - autós - só se fala no verso 24: depois que a razão conseguiu domar o instinto. Se atribuímos à escolha e sequência das palavras um valor demonstrativo, é preciso admitir que Homero só vem a considerar o ego idêntico como o resultado do domínio da natureza intra-humana. Este novo eu estremece dentro de si, uma coisa. o corpo, depois que o coração foi punido nele. De qualquer maneira, a justaposição dos elementos da alma (analisada em detalhe por Wilamowitz) .que frequentemente se dirigem uns aos outros, parece confirmar a frouxa e efémera composição do sujeito, cuja substância consiste unicamente na coordenação desses elementos.
6. Contra a interpretação materialista de Nietzsche, Klages interpretou a conexão entre o sacrifício e a troca num sentido inteiramente mágico: " A obrigação do sacrifício concerne a cada um. porque a porção que cada um pode arrebatar à vida e ao conjunto de seus bens - o suum cuique originário - só é conseguida num processo contínuo de dar e devolver. Mas não se trata da troca no sentido da troca de bens usual (que. aliás. também recebe sua consagração originária da noção de sacrifício). mas do intercâmbio dos fluidos ou essências pela entrega de sua própria alma à vida de que tudo depende e se alimenta" (Ludwig Klages. Der Geist als Widersacher der Seele. Leipzig, 1932. Vol. Ill. 2.a parte. p. 1409). Contudo. o carácter dual do sacrifício - o mágico autoabandono do indivíduo à colectividade, não importa se para seu bem ou para seu mal, e a autoconservação dessa magia pela técnica - implica uma contradição objectiva que impele justamente ao desenvolvimento do elemento racional no sacrifício. Sob o influxo constante da magia, a racionalidade converte-se enquanto oomportamento do sacrificante em astúcia. O próprio Klages, autor de uma entusiástica apologia do mito e do sacrifício. tropeçou com isso e viu-se forçado a fazer uma distinção, mesmo na imagem ideal da era pelásgica. entre a genuína comunicação com a natureza e a mentira. sem conseguir no entanto derivar do próprio pensamento mítico um princípio oposto à aparência da dominação mágica da natureza, porque essa aparência constitui justamente a essência do mito. "Já não é mais simplesmente a fé pagã, já é também superstição pagã quando, por exemplo. o rei-deus tem que jurar. ao subir ao trono, que fará o sol brilhar e o campo cobrir-se de frutos" (Klages, op. cit., p. 1408).
7. Isso se harmoniza com o facto de que os sacrifícios humanos propriamente ditos não ocorrem em Homero. A tendência civilizatória da epopeia manifesta-se na escolha dos acontecimentos relatados. "With one exception...both Iliad and Odyssey are completely expurgated of the abomination of Human Sacrifict" ["Com uma única exceção. ..tanto a Ilíada quanto a Odisseia estão completamente expurgadas da abominação do Sacrifício Humano"] (Gilbert Murray, The Rise of the Greek Epic. Oxford, 1911. p. 150).
8. Dificilmente na mais antiga. "O costume do sacrifício humano. ..é muito mais difundido entre bárbaros e povos semicivilazados do que entre os verdadeiros selvagens, e é praticamente desconhecido nos estágios inferiores da cultura. Em vários povos observou-se que ele foi se difundindo ao longo do tempo. como, por exemplo, nas Ilhas da Sociedade, na Polinésia. na India. entre os Astecas. "Relativamente aos africanos, diz Winwood Read: 'Quanto mais poderosa a nação, tanto mais importante o sacrifício' " (Eduard Westermarck, Ursprung und Entwicklung der Moralbegriffe. Leipzig, 1913, vol. I, p. 363).
9. Entre os povos antropófagos, como os da África Ocidental, não podiam "provar dessa iguaria nem as mulheres nem os adolescentes" (E. Westermarck, op. cit. Leipzig, 1909. Vol II, p. 459).
10. Wilamowitz coloca o nous em "nítida oposição" ao logos (Glaube der Hellenen, Berlim, 1931. Vol. I, pp. 41 sg). O mito é para ele uma "história como a gente se conta a si mesma", fábula infantil, inverdade, ou ainda, ao mesmo tempo, a verdade suprema que não é passível de prova, como em Platão. Enquanto Wilamowitz está consciente do carácter ilusório dos mitos, ele equipara-os à poesia. Ou por outra: ele procura-os em primeiro lugar na linguagem significativa que já está em contradição objectiva com sua intenção, contradição essa que ela, enquanto poesia. tenta racionalizar: "O mito é, antes de mais nada, o discurso falado; a palavra não concerne jamais a seu conteúdo" (loc. cit.). Ao hipostasiar esse conceito tardio do mito. que já pressupõe a razão como sua contrapartida explícita, e polemizando implicitamente com Bachofen - que é para ele um modismo de que zomba sem, no entanto, pronunciar seu nome - , ele chega a uma nítida separação da mitologia e da religião (op. cit., p. 5) , na qual o mito aparece, não como a fase mais antiga, mas justamente como a mais recente: "Estou tentando seguir o vir-a-ser, as transformações e a passagem da fé ao mito" (op. cit, p. 1). A obstinada arrogância departamental do helenista impede-lhe o discernimento da dialéctica do mito, da religião e do esclarecimento. "Não compreendo as línguas às quais se tomaram as palavras tabu e totem;, mana e orenda, mas considero um caminho viável ater-me aos gregos e pensar grego sobre coisas gregas" (op. cit., p. 10). Como compatibilizar isso, a saber, a opinião expressa sem maiores justificativas e segundo a qual "o germe da divindade platónica já se encontrava no mais antigo helenismo", com a concepção histórica defendida por Kirchhoff e adoptada por Wilamowitz, que vê nos encontros míticos do nostos [retorno, volta à casa, viagem] o núcleo mais antigo do livro da Odisseia? Isso não é esclarecido e o próprio conceito do mito, que é um conceito central, não encontra em Wilamowitz uma articulação filosófica suficiente. Entretanto, sua resistência ao irracionalismo que enaltece o mito e sua insistência na inverdade dos mitos contém um profundo discernimento, que não devemos ignorar. A aversão ao pensamento primitivo e à pré-história destaca com clareza tanto maior a tensão que já havia sempre entre a palavra enganosa e a verdade. 0 que Wilamowitz censura aos mitos posteriores, o arbítrio da invenção. já devia estar presente nos mais antigos em virtude do pseudos [mentira, inverdade, engano] dos sacrifícios. Esse pseudos tem justamente um parentesco com a divindade platónica que Wilamowitz faz remontar à fase arcaica do espírito helénico.
11. Essa concepção do cristianismo como religião sacrificial pagã é essencialmente a base do livro de Werner Hegemann: Geretteter Christus. Potsdam, 1928.
12. Assim, por exemplo, quando renuncia a matar imediatamente Polifemo (IX, 302) ; quando suporta os maltratos de Antinoo para não se trair (XVII, 460 sgg.). Cf. além disso o episódio com os ventos (X, 50 sgg.) e a profecia de Tirésias na primeira nekyia [sacrifício aos mortos] (XI, 105 sgg.), que põe a volta à casa na dependência de sua capacidade de domar o coração. Todavia, a renúncia de Ulisses ainda não tem um carácter definitivo, mas apenas de adiamento: as vinganças que ele se proíbe, no mais das vezes ele as perpetra depois de uma maneira ainda mais perfeita: O sofredor é o paciente. Até certo ponto, seu comportamento manifesta abertamente, como uma finalidade espontânea, o que depois se esconde na renúncia total e imperativa, para só então tomar uma força irresistível, a força da subjugação universal da natureza. Transposta para o sujeito, emancipada do conteúdo mítico dado, essa subjugação torna-se "objectiva", dotada da autonomia de uma coisa em face de toda finalidade particular do homem; ele se torna uma lei racional universal. Já na paciência de Ulisses, e de maneira muito nítida após a matança dos pretendentes, a vingança se transforma num procedimento jurídico: é justamente a satisfação finita da ânsia mítica que se torna o instrumento objectivo da dominação. O direito é a vingança abdicante. Mas, ao se formar com base em algo que está fora dela: a nostalgia da pátria, essa paciência judicial adquire traços humanos e até mesmo, quase, os da confiança, que transcendem a vingança diferida. Depois, na sociedade burguesa plenamente desenvolvida, as duas coisas são cobradas: com a ideia da vingança, a nostalgia também sucumbe ao tabu, o que significa justamente a entronização da vingança, mediada como vingança do eu contra si mesmo.
13. Os autores jogam com o duplo sentido da palavra alemã verschlagen. que significa: 1) astuto. ardiloso, manhoso; 2) arremessado, arrojado (à praia, à costa) pelo mar ou pelo acaso, bem como com seu parentesco com Schlag [golpe] e schlagen [bater, golpear] .(N. do T.)
14. Palavra grega que significa "luta". (N. do T.)
15. Os autores jogam com a origem comum das palavras Hörender [ouvinte, o que escuta] e Hörigkeit [servidão] .(N. do T.)
16. Oudeis, palavra grega que significa "ninguém" e que é o nome que Ulisses se dá ao falar com ciclope Polifemo. (N. do T.)
17. Max Weber. Wirtschaftsgeschichte. Munique e Leipzig, 1924, p. 3.
18. Victor Bérard ressaltou com particular ênfase (mas não, é verdade, sem alguma construção apócrifa) o elemento semítico da Odisseia. Cf. o capítulo: "Les Phéniciens et l'Odyssée" em sua Résurrection d'Homer. Paris, 1930, pp. 111 sgg.
19. Nostos, palavra grega que significa retorno, volta à casa, viagem (cf. "nostalgia"). (N. do T.)
20. Odisseia IX, 92 sg.
21. Ibid. XXIII, 311.
22. Ibid. IX, 94 sgg.
23. Jacob Burckhahrdt. Griechische Kulturgeschichte, Stuttgart. s. d. Vol. III. p.95.
24. Odisseia IX, 98 sg.
25. Na mitologia indiana, Lótus é a deusa da terra (cf. Heinrich Zimmer. Maja. Stuttgart e Berlim, 1936, pp. 105 sgg.). Se há uma conexão com a tradição mítica em que se baseia o velho nostos homérico, convém caracterizar também o encontro com os 1otófagos como uma etapa no confronto com as potências ctónicas.
26. Odisseia, IX. 105.
27. V. n. 12. (N. do T.)
28. Segundo Wilamowitz, os ciclopes são "na verdade animais" (Glaube der Hellenen. Vol. I, p. 14).
29. Odisseia. IX, 106.
30. Ibid.. 107 sgg.
31. Ibid.. 112 sgg.
32. Cf. ibid.. 403 sgg.
33. Ibid., 428.
34. Ibid., 273 sgg.
35. Ibid., 278.
36. Cf. ibid., 355 sgg.
37. "Finalmente a habitual puerilidade do demente poderia ser considerada à luz de um humor natimorto" (Klages, ap. cit., 1469).
38. Odisseia, loc. cit., 347 sg.
39. Ibid., X, 296/7.
40. Cf. ibid., 138 sg. Cf. também F. C. Bauer, Symbolik und Mythologie Stuttgart. 1824. Vol. I, p. 47.
41. Cf. Baudelaire, Le vin du solitaire, Les fleurs du mal.
42. Cf. J. A. K. Thompson, Studies in the Odyssey. Oxford, 1914, p. 153.
43. Odisseia, loc. cit., 212 sgg.
44. Murray trata das "sexual expurgations" a que foram submetidos os poemas homéricos no curso da redação (cf. op. cit., pp. 141 sgg.).
45. "Os porcos são os animais sacrificiais de Deméter em geral". (Wilamowitz-Moellendorff. Der Glaube der Hellenen. Vol. II, p. 53).
46. Cf. Freud, Das Unbehagen in der Kultur, em: Gesammelte Werke, vol. XIV. Frankfurt am Main. 1968, p. 459, nota.
47. Uma das notas de Wilamowitz remete surpreendentemente à conexão entre o conceito de "fungar" e o conceito do noos [nous. cf. n. 5] , isto é, da razão autónoma: "Schwyzer ligou de maneira muito convincente noos com bufar e fungar" (Wilamowitz-Moellendorff, Die Heimkehr des Odysseus, p. 191). Wilamowitz contesta, é verdade, que o parentesco etimológico dê alguma contribuição para o significado.
48. Odisseia, X. 434.
49. A consciência da irresistibilidade exprimiu-se mais tarde no culto de Afrodite Peithon [a persuasiva] "cuja magia não tolera nenhuma recusa" (Wilamowitz-Moe11endorff. Der Glaube der Hellenen. Vol. II, p. 152) .
50. Eéia: a ilha de Circe. (N. do T.)
51. Odisseia, X, 329.
52. Ibid., 333 sgg.
53. Ibid., 395 sg.
54. Ibid., 398 sg.
55. Cf. Bauer, op. cit., p. 49.
56. Odisseia, XXIII, 93 sgg.
57. Goethe, Wilhelm Meisters Lehrjahre. Jubiläumsausgabe. Stuttgart e Berlim. Vol. I, cap. 16, p. 70.
58. Odisseia, XXIII, 210 sgg.
59. Sacrifício aos mortos. (N. do T.)
60. Cf. Thomson. op. cit., p. 28.
61. "Ao vê-la, meus olhos marejaram e lamentei de todo coração. Contudo. proibi a ela também, embora cheio de íntima melancolia, que se aproximasse do sangue antes que eu interrogasse Tirésias" (Odisseia, XI, 87 sgg.) .
62. "Vejo aí a alma de minha defunta mãe, mas ela se mantém muda junto à poça de sangue e não se atreve a olhar para o próprio filho nem a proferir qualquer palavra. Diz, senhor, o que fazer, para que ela me reconheça como filho" (ibid., 141 sgg.).
63. "Não posso deixar de considerar todo o livro 11, com excepção de algumas passagens... como um fragmento do velho nostos, que foi apenas deslocado; seria assim a parte mais antiga do poema" (Kirchhoff, Die homerische Odyssee. Berlim, 1879, p. 226). - "Whatever else is original in the myth of Odysseus, the Visit to Death is" ["se alguma coisa é original no mito de Ulisses, a Visita à Morte é uma delas"] (Thomson, op. cit., p. 95).
64. Odisseia, XI, 122 sg.
65. Ele era originariamente o "esposo da Terra" (cf. Wilamowitz, Glaube der Hellenen, vol. I, pp. 112 sgg.) e só mais tarde tomou-se o deus do mar. A profecia de Tirésias pode aludir à sua essência dual. É concebível que sua reconciliação por meio de um sacrifício terreno, longe do mar , se baseie na restauração simbólica de sua potência ctónica. Essa restauração exprime possivelmente a substituição da pirataria pela agricultura; os cultos de Posseidon e Deméter se confundiram (cf. Thomson, op. cit, p. 96 n.).
66. Irmãos Grimm, Kinder und Hausmärchen, Leipzig, s.d., p. 208. Há temas intimamente aparentados a esse que remontam à antiguidade, ligados aliás a Deméter. Quando esta chegou a Elêusis, "em busca de sua filha raptada", encontrou "acolhida junto de Dysaules e sua mulher Baubo, mas recusou-se em sua profunda tristeza a tocar em comida ou bebida. Então sua hospedeira Baubo fez com que ela risse, levantando de repente a roupa e descobrindo o corpo" (Freud, Gesammelte Werke, vol. X. p. 399. Cf. Salomon Reinach, Cultes, Mythes et Religions. Paris, 1911 , vol. IV, pp. 115 sgg.).
67. Hölderlin, Der Herbst. op. cit., p. 1066.
68 .Odisseia, XXII, 473.
69. Wilamowitz é de opinião que a punição "foi narrada prazerosamente pelo poeta" (Die Heimkehr des Odysseus, p. 67) .Mas, como o autoritário filólogo se entusiasma com a metáfora da armadilha de pássaros porque "descreve de maneira precisa e… muito moderna como ficam a balouçar os cadáveres das escravas enforcadas" (loc. cit., cf. também p. 76) , o prazer em grande parte parece ser dele próprio. Os escritos de Wilamowitz se incluem entre os documentos mais enfáticos da mescla bem alemã de barbárie e cultura, que está na base do moderno filo-helenismo.
70. Gilbert Murray chama a atenção para a intenção consoladora do verso. Segundo sua teoria, a censura civilizatória expurgou de Homero as cenas de tortura. Restaram a morte de Melântio e das escravas (op. cit., p. 146).
71. "Até quando enfim" (N. do T.).
Texto Retirado de: http://adorno.planetaclix.pt/d_e_excurso1.htm