segunda-feira, 9 de março de 2009

Entrevista.


Por Marcelo Morais Caetano

Carioca de Santa Teresa, Ana Maria Machado foi militante estudantil contra a ditadura militar, presa, exilada política, repórter, redatora, radialista, pintora profissional, tradutora, professora doutora em Linguística e Semiologia pela universidade francesa Sorbonne, empresária, esposa, mãe e, sempre, escritora. Vivendo parte de sua infância em Manguinhos, no litoral do Espírito Santo, aprendeu com os pescadores locais o sabor da oralidade e das tradições populares. Por outro lado, tendo na família jornalistas e intelectuais fortemente engajados em movimentos políticos, pôde conhecer desde cedo o valor da ética e o quanto se deve lutar por ela. Além de ter se iniciado, na mais tenra infância, com a leitura dos grandes clássicos da literatura, como Dom Quixote, Ilíada, Huckleberry Finn – experiência que registra em Como e por que ler os clássicos universais.

Assim, Ana privilegiou a palavra (bem) trabalhada como sua principal ferramenta de expressão, unindo desde sempre a delicadeza do universo infantil, a erudição do ambiente acadêmico e a profundidade emocional do mundo adulto. Seus personagens representam um pouco de tudo o que há no Brasil, real e folclórico: a mistura de etnias, os contos populares passados de boca em boca, as tradições que o povo leva pelas gerações (como o carnaval), além de um mundo mágico de elfos, fadas, dragões, unicórnios, sereias, bois voadores... enfim, toda essa riqueza imaterial que faz parte do inconsciente coletivo do brasileiro.

Sua primeira publicação foi a tese de doutorado, orientada pelo semiólogo francês Roland Barthes, Recado do nome (1976). Logo em seguida, publicou sua primeira obra infantil, Bento que bento é o frade (1977), ganhadora do título “Altamente recomendável” concedido pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. Já seu primeiro romance para adultos, Alice e Ulisses, veio alguns anos depois (1983).

Ana Maria Machado foi eleita em 24 de abril de 2003 para ocupar a cadeira número 1 da Academia Brasileira de Letras. Além disso, é detentora de vários prêmios no Brasil e no exterior, incluindo muitos dos mais importantes que existem, como o Casa de las Américas (Cuba, 1980), o Hans Christian Andersen, pelo conjunto da obra infantil (2000), o Prêmio Machado de Assis da ABL pelo conjunto da obra (2001), além do Jabuti, Prêmio da Bienal de São Paulo e APCA, entre outros, e prestigiosas menções como a da Apple (Associação pela Promoção do Livro Infantil, Instituto Jean Piaget, Genebra), e a do Americas Award (Estados Unidos). Nesta entrevista, a autora fala de como consegue transitar entre universos tão distantes e, para muitos, inconciliáveis.


Marcelo Morais Caetano

Recado do nome foi sua tese de doutorado, orientada por Roland Barthes, e é sobre linguística e semiologia. A seu ver, essa incursão no campo da semiótica influenciou, consciente ou inconscientemente, os títulos de suas obras, o nome dos personagens e sua própria construção frasal, estilisticamente tão rica de significantes e jogos sonoros entre as palavras? É claro que sim. Eu só não saberia dizer exatamente o nível de consciência que tenho sobre essa criação. Mas comecei fazendo uma pesquisa sobre o nome próprio no engendramento do texto literário. Então, é claro que tenho uma consciência do papel que ele desempenha, da importância dele. Alice e Ulisses, especificamente, surgiu num momento em que eu estava na França. E, em francês, eles rimam ainda muito mais do que em português: é “Alice et Ulisse”. Então, eu parei e pensei: meu Deus do céu, isso dá o maior samba! “Alice et Ulisse”, você tem aí um encontro que é capaz de detonar uma carga explosiva de muitos megatons. E são dois arquétipos. “Feliz aquel que como Ulisses quer voltar ao seu reino, a Ítaca!” Aquele homem que leva 18 anos fora de casa, em todas as aventuras, e sempre tentando voltar. E a Alice, entrando de peito aberto no país das maravilhas, topando qualquer coisa que venha. Ela está sempre disponível: ela prova, ela come, ela bebe, ela conversa, ela faz qualquer coisa... Então, acho que esse encontro tinha um valor simbólico, arquetípico tão forte que pedia um livro. Senti que eu tinha que fazer, senão outra pessoa ia acabar fazendo. Foi um insight. Levei cinco anos fazendo. Inicialmente, ele tinha 250 páginas e era narrado em primeira pessoa, pela mulher. Aí, achei que, por ser o primeiro romance de uma escritora mulher, todo mundo ia pensar que era um romance autobiográfico, confessional. Todo esse preconceito. Já era uma história de amor... Então, resolvi inverter, fazer com que fosse narrado pelo homem, e reduzi para 170 páginas. Depois, achei que o melhor ia ser ficar na terceira pessoa e reduzi para 80.

Sobre esse processo de reduzir o texto. Como você consegue fazer isso? Tive muita prática como editora. Em rádio, por exemplo, você tem às vezes dois minutos para dizer algo. E não pode passar desse tempo. Então, a gente precisa de uma imagem, que vale mil palavras... Creio que, entre os infinitos tipos de escritores, há dois que me vêm à mente: um escritor como Guimarães Rosa, que estava sempre acrescentando coisas em seus originais, a tal ponto que o seu editor uma bela hora lhe dizia: “Chega!”; e há autores como Graciliano Ramos que, diante de seus originais, a cada vez que se defrontava com eles, retirava alguma coisa. Então, acho que a minha maneira de escrever, não o meu estilo, mas a minha forma de ir cortando, editando, é do Graciliano. No momento em que estou escrevendo, não me preocupo com isso, não me policio. Depois, corto. No caso de Alice e Ulisses, eu realmente queria muito chegar ao sumo. É diferente de meu segundo romance, por exemplo, Tropical sol da liberdade, em que eu não tinha essa necessidade, porque tinha muitas ações paralelas, além de uma mistura de gêneros - tem uma parte que é carta, uma que é peça de teatro, outra que é diário... Agora, Alice e Ulisses é linear, tinha que ser uma novela, então, tudo precisava convergir para isso. E ficava uma chatice se deixasse com 250 páginas! Foi meu primeiro romance, então, eu tinha muito medo.

O romance Uma vontade louca também trata de um homem e uma mulher que discordam diametralmente de pontos de vista em relação à vida. É, mas, engraçado, nesta obra, só por acaso, os personagens são um homem e uma mulher. Podia ser qualquer pessoa. Na minha cabeça, o tema verdadeiro do romance é o contraste das visões de mundo: espírito científico e artístico. Mas acho que ele nasce realmente de um caso pessoal. Fiz científico, pois me preparava para cursar química ou arquitetura. Meu avô era físico e matemático, e sempre tive um lado de economista muito marcante, sempre lidei muito bem com números, já cheguei a exercer funções nas quais isso era obrigatório. Então, sempre tive uma atração pelas duas visões de mundo, a exata, numérica, matemática, e a artística. Uma vontade louca traduz bem isso. E a síntese dele, que é quando essas visões divergentes convergem no carnaval, é também uma experiência bem minha. Passei por anos e anos o carnaval em Manguinhos, no Espírito Santo, e essa lembrança fica em mim de forma muito eloquente. É uma festa com uma tradição de 60 anos. Havia muito tempo que eu queria contar essa experiência, essa lembrança.
Uma grande preocupação que pode ser observada em sua obra é a questão da ética, ou das éticas em convívio, conflito, contraste, harmonia e desarmonia. Em Era uma vez um tirano, por exemplo, chega a ser o tema central. Por que você o escreveu e como ele chegou ao Berliner Ensemble (o teatro de Bertolt Brecht), onde ocorreram leituras dramatizadas do texto? Este é um livro infantil e já estava traduzido para o alemão. No ano em que houve essas leituras dramáticas, o Brasil estava sendo homenageado em Frankfurt. Eu quis fazer num momento em que a Ruth Rocha, que é uma grande amiga, além de minha cunhada, havia escrito quatro obras chamadas A tetralogia dos reis [
O reizinho mandão, O rei que não sabia de nada, O amigo do rei(esgotado), Sapo vira rei, vira sapo(esgotado)]. Isso, durante a ditadura, questionando o autoritarismo; eu tinha escrito o Bento que bento é o frade, e ela tinha feito o dos reis. E aí, de repente, já era 1980 ou 81, já havia acontecido anistia, e então pensei: vamos experimentar dar nome aos bois... O AI-5 ainda estava em vigor. Resolvi experimentar o que acontecia se a gente, em vez de chamar de rei, chamasse de ditador, tirano. Como ditador era sempre usado, tirano dava o recado direitinho. Era uma questão de testar isso. Já havia sido suspensa a censura prévia, mas ainda havia a censura ao rádio e à televisão. Então, era uma maneira de testar um limite. E ele foi muito calcado na situação do Chile, mais até que na do Brasil. O nível de proibição no Chile era muito maior do que aqui. Era o Chile de Pinochet.

Como e por que você começou a escrever livros infantis? Na verdade foi um convite da revista Recreio. No começo, não entendi muito bem o porquê, mas deu muito certo. Quando a história que a Recreio publicava era minha ou da Ruth Rocha, a revista vendia 5 vezes mais nas bancas. Se antes ela vendia 50 mil, quando uma de nós escrevia, ela vendia 250 mil. Os leitores nos quiseram, por isso, é claro, que o editor queria alternar uma história dela e uma das minhas, foi nos encomendando e nós fomos fazendo. No começo, eu tinha muita dificuldade, mas depois passou a vir com muita naturalidade. Então, fui para o exílio e comecei a escrever a história do papagaio longe de casa num lugar frio. Falava de mim, falava dos meus filhos, da minha vida, sob a aparência daquela história, e descobri que era um espaço de liberdade extraordinário, e me permiti fazer uma experiência linguística que para mim foi um desafio, a possibilidade de trabalhar com linguagem coloquial, oralizante, familiar, brasileira, de criar uma obra cheia de sentidos, poética, humorística, ambígua, divertida, plurissêmica. Esse desafio foi fascinante. Senti-me assim pegando o bastão do Manuel Bandeira, aquele negócio da língua errada do povo, a língua certa do povo, a língua gostosa do povo. Vamos fazer uma coisa gostosa com isso, com diálogos como as pessoas falam. Então, a literatura infantil me deu essa possibilidade com a linguagem.

Você acha equivocado que se trate uma grande parte de sua obra infantil como livros didáticos ou paradidáticos, como os que tratam do uso correto das letras, dos fonemas, dos encontros consonantais, dos dígrafos etc? Não são didáticos. Na verdade, para mim, eles não são uma porção de livros: são um só publicado em fascículos. São um único projeto: a série Mico Maneco. Começou no exílio, quando vi meu filho aprendendo a ler em inglês sem ler em português. Aí, fiquei preocupada. Foi uma experiência terrível de desenraizamento. Ele falava português, mas não sabia escrever. Tive que bolar um sistema que ensinasse a ler, mas não sabia como. Não estudei pedagogia, mas estava me doutorando em linguística, então, pude formular uma hipótese científica de como poderia se dar isso. Imaginei que a ordem de aquisição daqueles fonemas deveria se dar na mesma ordem em que a gente aprende a falar, que se dá exatamente nos músculos pelos quais aprendemos a mamar: “mã”, “pã”. Então, vieram as bilabiais, as plosivas. Fiz famílias de sílabas com esses fonemas e criei um jogo. A gente sentava no chão e pegava cartas com fonemas e inventava histórias. Eu tinha trabalhado um pouco com método Paulo Freire e usei com eles as palavras geradoras. Ou seja, eles trouxeram o universo deles. O que é que eles queriam? Cavalo, que é coisa de menino. Fiquei com isso. E rapidamente vi que, desde a primeira sessão, dava para formar não só palavras, mas frases. Então, escrevi o que a gente tinha feito. Fizemos quatro histórias diferentes com a mesma sílaba. Depois, parti para outras, como Uma gota de mágica. No fim, vi que podia escrever livros com essas histórias. Não acho que devam ser chamados só de didáticos, porque têm toda uma exploração como "a lua na taba alumia tudo", tem preocupação com certos arcaísmos, com ritmos, "Caiu um toco no pé do tatu", é uma proposta poética.

Você disse que Tropical sol da liberdade, Um avião e uma viola e O mar nunca transborda foram bastante difíceis para escrever. Por quê? O Tropical sol foi mexendo com elementos biográficos e de pesquisa histórica. Tive que ir para a Biblioteca Nacional, ver microfilme, coisas da imprensa da época. E não sou historiadora.
Um avião e uma viola, levei muitos anos escrevendo, porque é uma brincadeira com palavras, ou um poema que não rima no final, mas tem uma rima interna no início do sintagma. Então, você diz "um avião, uma viola", "uma labareda, um malabarista", “uma lambisgóia, um alambique", "um mafuá, uma fuinha". Deu trabalho para encontrar um nível de nonsense, de absurdo, em torno de palavras muito concretas, capaz de comunicar para uma criança, pois eu não podia usar palavras abstratas. O mar nunca transborda foi bastante trabalhoso, porque teve também uma experiência de pesquisa, são cinco séculos de História do Brasil e, em cada um, uso o sotaque da época. Quando saiu, destoava de todos os meus demais, mas em seguida escrevi dois outros em que uma parte se passa no século 19, que foram A audácia dessa mulher e Palavra de honra.

Qual a palavra mais bonita da língua portuguesa para você? Alarido. Não pelo significado, eu detesto barulho, mas pelo som.

Qual a palavra mais feia?

Ignóbil. O que a faz chorar?

Muita coisa, sou uma manteiga derretida. Eu choro com jornal, com noticiário na televisão, choro com a enchente em Santa Catarina, com tiroteio na favela, chorei ontem com um olhar de um menino na TV... O que a faz rir? Muita coisa também. Devo ser muito rica, porque rio à toa. Tenho um ótimo humor. Eu acordo feliz. Agora, quer me ver de péssimo humor, me põe para fazer palestra às nove da noite. Sinto sono cedo. Não consigo responder minimamente à plateia. Do que você tem medo?

De perder a independência. De não ser autônoma, de ter que depender dos outros. Isso seguramente é uma das coisas. E tenho medo de abandono na velhice. Acho que as duas coisas até têm a ver.

Que pergunta para você não tem resposta?

Olha, aprendi na minha pré-adolescência, com a minha família, que tem coisas que você não precisa responder, não tem que responder e, se não quiser, não responde. Por exemplo, quanto você ganha, com quem você dorme, qual é a sua doença, onde operou... Hoje em dia, se perguntam isso, eu sei que não preciso responder.

O que traz alegria para você?

Gente que eu gosto. Acho que a principal coisa é gente, amigos, família...

Um elogio inesquecível?

Uma vez, uma repórter mexicana me entrevistou na Colômbia e me pediu que autografasse dois livros para um escritor, porque eram os melhores que os netos dele liam. Perguntei: quem é o escritor? Ela disse: Gabriel García Márquez.

O que não tem perdão?

Traição, gente que não merece a confiança depositada por nós.

Há alguma coisa que a faça perder a calma, a elegância? Com frequência. Odeio me sentir acuada, não ter para onde ir, viro bicho e vôo no pescoço.

Você é mística, tem religião?

Não, mas não desprezo a transcendência.

E Canteiros de Saturno, esse título não tem algo a ver com o fato de você ser capricórnio?

É, me disseram que Saturno tinha a ver com capricórnio. Eu comprei um kit de fazer mapa astral e nesse livro cada personagem tem o seu próprio mapa natal. Isso não é mostrado na obra, mas sei que cada um deles tem o seu.

Como você acha que as crianças e os jovens estão hoje se relacionando com a literatura?

Bom, você olha na lista dos mais vendidos e estarão sempre Harry Potter, O senhor dos anéis etc. Então, dizer que as crianças e os jovens não estão lendo me parece errado...

Diga uma frase, um pensamento, uma reflexão. Bom, vou dizer duas, uma do Drummond e outra do Galbraith. Este diz que gostaria de, com o trabalho dele, levar um pouco de conforto para os aflitos e um pouco de aflição para os confortados. E o Drummond diz que este é o segredo e a arte do bem viver: uma fuga relativa, uma não muito estouvada confraternização.

Uma definição ou reflexão para o conceito de cultura? Tem uma observação de que gosto muito; originalmente nem é minha, parte de uma análise etimológica que o Alfredo Bosi faz. Ele lembra que toda ocupação de um espaço para o plantio, enfim para a "agricultura", é uma aposta no futuro. Esse "ura" era o particípio futuro do latim: "nascituro", aquele que vai nascer. Então "cultura" é aquilo que vai ser colhido. Cultura é aquilo que, plantado, num determinado momento pela humanidade, vai construir o futuro. A cultura tem um olho no futuro.

Cinema

Os maravilhosos cinemas antigos no Rio de Janeiro, com seus inesquesciveis lanterninhas.