domingo, 21 de novembro de 2010

FILOSOFIA MODERNA POR MARILENA CHAUI. PARTE IV.

2. Alguns aspectos do Renascimento, da Reforma e da Contra-Reforma
Do lado do que denominamos Renascimento, encontramos os seguintes elementos definidores da vida intelectual:
1) surgimento de academias laicas e livres, paralelas às universidades confessionais, nas quais imperavam as versões cristianizadas do pensamento de Platão, Aristóteles, Plotino e dos Estóicos e as discussões sobre as relações entre fé e razão, formando clérigos e teólogos encarregados da defesa das idéias eclesiásticas; as academias redescobrem outras fontes do pensamento antigo, se interessam pela elaboração de conhecimentos sem vínculos diretos com a teologia e a religião, incentivam as ciências e as artes (primeiro, o classicismo e, depois da Contra-Reforma, o maneirismo);
2) a preferência pelas discussões em torno da clara separação entre fé e razão, natureza e religião, política e Igreja. Considera-se que os fenômenos naturais podem e devem ser explicados por eles mesmos, sem recorrer à continua intervenção divina e sem submetê-los aos dogmas cristãos (como, por exemplo, o geocentrismo, com a Terra imóvel no centro do universo); defende-se a idéia de que a observação, a experimentação, as hipóteses lógico-racionais, os cálculos matemáticos e os princípios geométricos são os instrumentos fundamentais para a compreensão dos fenômenos naturais (Bruno, Copérnico, Leonardo da Vinci sendo os expoentes dessa posição). Desenvolvem-se, assim, tendências que a ortodoxia religiosa bloqueara durante a Idade Média, isto é, o naturalismo (coisas e homens, enquanto seres naturais, operam segundo princípios naturais e não por decretos divinos providenciais e secretos);

FILOSOFIA MODERNA POR MARILENA CHAUI. PARTE III.

O resultado da transição, da indefinição e da crise, conforme muitos historiadores, foi o ceticismo filosófico, cujos maiores expoentes teriam sido Montaigne e Erasmo.
Só muito recentemente, os historiadores das idéias e da história sócio-política desfizeram essa imagem da transitoriedade e indefinição renascentistas, mostrando haver o Renascimento criado um saber próprio, com conceitos e categorias novos e sem os quais a filosofia moderna teria sido impossível.
Assim, por exemplo, o historiador das idéias e das instituições européias, Michel Foucault, no livro As Palavras e as Coisas (Les Mots et les Choses), considera o Renascimento um período em que os conhecimentos são regulados por um conceito fundamental: o conceito de Semelhança, graças ao qual são pensadas as relações entre seres que constituem toda a realidade, motivo pelo qual ciências como a medicina e a astronomia, disciplinas como a retórica e a história, teorias sobre a natureza humana, a sociedade, a política e a teologia empregam conceitos como os de simpatia e antipatia (nas doenças e nos movimentos dos astros), de imitação ou emulação (entre os seres humanos, entre as coisas vivas, entre humanos e coisas, entre o visível e o invisível, como no caso da alquimia), conceitos que nada têm a ver com a "magia" como superstição, mas com a magia como forma de revelação do oculto pelos poderes da mente humana, isto é, a Semelhança define um certo tipo de saber e um certo tipo de poder. Também é central o conceito de amizade, como atração natural e espontânea dos iguais (animais, humanos) e que serve de referência para pensar-se a figura do tirano como inimigo do povo e criador de reinos regulados pela inimizade recíproca (forma de compreender as divisões sociais e os conflitos entre poder e sociedade).
A Natureza é pensada como um grande Todo Vivente, internamente articulado e relacionado pelas formas variadas da Semelhança, indo dos minerais escondidos no fundo da terra ao brilho dos astros no firmamento, das coisas aos homens, dos homens a Deus. Essa idéia de totalidade vivente se exprime na frase de Giordano Bruno: "A Natureza opera a partir do Centro" (La Natura opra dal centro). Essa mesma idéia permite distinguir uma história humana e uma história natural no sentido da diferença entre ações humanas, que têm poder de transformação sobre a realidade, e as ações que nada podem sobre a Natureza enquanto obra divina, idéia que se exprime na filosofia da história de Vico.
A idéia de imitação aparece na teoria política quando alguns humanistas (sobretudo os humanistas cristãos como Erasmo e Thomas Morus) consideram que as qualidades (virtudes ou vícios) dos governantes são um espelho para a sociedade inteira, de tal modo que num regime tirânico os súditos serão tiranos também. Essa idéia de um imenso espelho reaparece no ensaio de La Boétie, Discurso da Servidão Voluntária, mas com uma grande inovação: não é o tirano que cria uma sociedade tirânica, mas é a sociedade tirânica (a sociedade onde homens desejam a servidão) que produz o tirano, o seu espelho.
A imitação também aparece no grande prestígio da retórica que ensina a imitação dos grandes autores e artistas clássicos da antigüidade, mas não como repetição ou reprodução do que eles pensaram, escreveram ou fizeram, e sim como recriação a partir dos procedimentos antigos. A erudição, uma das principais características dos humanistas, não é acúmulo de informações, mas uma atitude polêmica perante a tradição (recusar a apropriação católica da cultura antiga). Isto aparece com grande clareza nos historiadores que procuram conhecer fontes primárias e documentos originais a fim de elaborar uma história objetiva e patriótica, isto é, uma história nacional que seja, por si mesma, a refutação da legitimidade da dominação da Igreja Romana e do Império Romano Germânico sobre os Estados Nacionais. A erudição também serve, juntamente com a retórica, para um tipo muito peculiar de imitação dos antigos: aquela que é feita pelos escritores com a finalidade de criar uma língua nacional culta, rica, bela e que substitua o imperialismo do latim. Assim, em todas as esferas das atividades culturais pode-se perceber que a famosa "renascença dos antigos" não tem uma finalidade nostálgica e sim polêmica e criadora, que diz respeito ao presente e às suas questões.