quinta-feira, 21 de abril de 2011

O Concílio de Niceia

Em 325 DC, o Imperador Constantino presidiu ao Concílio de Niceia, no qual 318 Bispos, por ele fortemente influenciados e pressionados, iriam determinar o curso dos 17 séculos seguintes da cultura ocidental.
Foi um dia na história que marcaria, nos séculos vindouros da História Ocidental, o princípio do fim de conceitos como o da pré-existência e da reencarnação, e de importantes conceitos Cosmogónicos como a distinção entre o Deus Ignoto e o Logos, ou Demiurgo, ao mesmo tempo que promovia o distanciamento entre o Homem e o Cristo. Ao mesmo tempo, afirmava a ideia de uma humanidade passiva, “corrompida pelo pecado original”, à qual restava e bastava acreditar na literalidade dos factos históricos da vida de Jesus Cristo e obedecer cegamente aos padres da Igreja – exclusivos intermediários entre Deus e o povo – para ser salva.
Constantino desejava um Império forte e unido. Naturalmente que, para manter o seu domínio sobre o povo e estabelecer uma ditadura religiosa, as autoridades eclesiásticas teriam que promover o obscurecimento e a ignorância do conhecimento existente nas brilhantes escrituras e filosofias arcaicas (e perenes…), que constituíam um obstáculo aos objectivos da nova religião imperial.

Foi no Concílio de Niceia que se deram dados passos decisivos no sentido de criar uma nova religião unificada, engendrada de forma a servir ao Imperador como forma de domínio político e social.
O Deus do Império deveria ser suficientemente forte para se opor aos Deuses do Olimpo, ao Jeová dos Hebreus e ao Buda do Oriente. Misturando as divindades arcaicas orientais com as antigas histórias de Moisés, Elias e Isaías, foram assim convenientemente criados os símbolos da nova Igreja Romana. De igual modo, para a fabricação desta nova religião, assimilaram-se as práticas do paganismo mais convenientes, enquanto, em paralelo, todas as filosofias contrárias aos interesses da Igreja e do Império eram suprimidas ou ocultadas.
O Concílio de Niceia constituiu-se como o primeiro de vinte e um concílios (oficialmente reconhecidos) realizados ao longo dos séculos com o fim de fabricar e consolidar a teologia de uma nova religião concebida para o fácil controlo das populações. Embora tenham havido concílios anteriores, o de Niceia foi o primeiro considerado como Concílio Ecuménico e o primeiro que foi alvo de convocação. E, certamente, é o mais celebrado pela Igreja Católica Romana, em toda a sua história. 1
Iremos ver como nele foram instituídas as primeiras “ferramentas” facilitadoras da criação do profissionalismo religioso e do afastamento entre o Homem e o ideal de Cristo; como foram criados os fundamentos da teologia da nova Igreja Cristã, alicerçados na deificação de Jesus e sua consubstanciação com o Deus Pai, bem como na escolha dos Evangelhos que, a partir deste Concílio, passaram a ser os únicos textos considerados como sagrados no Cristianismo.



A Conjuntura
                                                               Roma Antiga
Vejamos então o conjunto de circunstâncias que levou a este acontecimento decisivo da nossa história e cultura.
Até Constantino, Roma exigia uma obediência total ao estado mas tinha bastante abertura à livre expressão da liberdade do pensamento religioso. Em Roma coexistiam grupos que professavam a Tradição Hermética Egípcia, o Zoroastrismo Persa, o Budismo Oriental, o Monoteísmo Judeu, bem como grupos Gnósticos, Filósofos Platónicos, e outros. Esta confluência de diversidade religiosa e filosófica permitia o intercâmbio de tradições e ensinamentos, contribuindo assim para o desenvolvendo de uma teologia bastante rica.
Alexandria era o centro de aprendizagem deste império (que então integrava) e a sua biblioteca era a mais famosa da antiguidade.
Além do mais, a sua localização geográfica proporcionava a congregação de pessoas grupos de várias culturas e credos.
Entretanto, a acumulação de riqueza nos estratos sociais mais altos, a cobrança de impostos injustos aos pobres, a escravatura disseminada e o desrespeito pela vida humana, tinham chegado a um ponto de decadência que se tinha alastrado, e que estava agora a corromper o coração do império.
Neste contexto vários grupos Gnósticos2 floresciam em Alexandria. Simultaneamente, nasciam escolas filosóficas e grandes instrutores religiosos que procuravam despertar, nos seus alunos, ideais mais nobres.
Grupos Gnósticos foram aos Cristãos primitivos, verdadeiros herdeiros da Religião-Sabedoria. Até 250 DC, as suas ideias difundiram-se e foram amplamente toleradas.
Eles ensinavam que o caminho para a libertação se encontrava pela obtenção da Gnose, o conhecimento das verdades sagradas do Universo Espiritual. Para os cristãos dos primeiros séculos, Cristo era o símbolo vivo da centelha divina em cada Homem; e Jesus, o Homem sublimado, era o “… Chréstos, ou discípulo no Caminho ascendente, (que) havia chegado a ser um poder maior, Christos, ao realizar a união permanente com o seu Espírito, a Mônada Divina, o Pai. Neste estado crístico, Jesus volveu-se apto para ser o veículo de uma Entidade (ainda) mais excelsa, um Mestre de Mestres – o Cristo manifestado em Jesus”3. Através da sua vida e morte, era demonstrada a via da libertação e ensinavam-se os segredos da ascensão espiritual.
Em contraste com a cultura Romana, estes grupos de Cristãos ensinavam a simplicidade, muitas vezes levando vidas ascéticas. Denunciavam a escravatura, a opressão e a brutalidade dos Jogos romanos, onde se sacrificavam os desfavorecidos, às centenas, em espectáculos de carnificina. Roma tinha sido até ai bem sucedida a silenciar protestos populares por meio da morte ou suborno. Estes grupos Cristãos, porém, não eram permeáveis a ameaças: não tinham medo da morte, não eram tentados por suborno, e continuavam a aumentar.
Entretanto, paralelamente, as facções Cristãs mais literalistas, mais fanáticas e que se vieram a tornar Ortodoxas, viram o seu poder confirmado por Constantino. Em 314, um mês depois da morte de Miltiades, Bispo de Roma, o Imperador Constantino nomeou publicamente Silvestre como o sucessor daquele. Silvestre foi o primeiro bispo de Roma a ser coroado como um príncipe. Constantino doou-lhe terras, palácios, poder judicial, dinheiro, força política e até controlo sobre o exército, estendendo assim o seu poder e autoridade sobre todo o Império. Ao ter aceite a aliança entre o Estado e a Igreja, Silvestre foi o primeiro Papa a ter verdadeiro poder temporal. Em troca, promovia-se o papel divino do Imperador Constantino.
Em sequência, dois anos antes da realização do Concílio de Niceia, o Imperador Constantino declara oficialmente o Cristianismo (Ortodoxo) como a religião do império Romano. Consequentemente, toda a Igreja passou também a receber grandes poderes, promovendo assim o apetite pela riqueza da classe eclesiástica. Toda a nova classe de líderes da Igreja Romana deixou então de ser estrangeira no mundo, para ser parte activa no sistema político vigente, acumulando riqueza e dominando congregações. Os Bispos tornaram-se homens de poder e de política, assim como conselheiros do Imperador, alguns gozando de grande prestígio e cooperando com o Imperador na construção da nova religião, como foi um exemplo Eusébio de Cesareia.

A Crescente Controvérsia
Naturalmente, as vozes dos Gnósticos, cujos valores não se coadunavam com os do Império Romano, e que recusavam a interpretação literal da vida de Jesus promovida pela facção ortodoxa, constituíam sum perigo para a Igreja de Constantino. Os Gnósticos entendiam Deus a um nível metafísico e místico, e sugeriam uma relação com o Divino bem mais madura qdo ue a promovida pelos ortodoxos-literalistas. Em consequência, começaram a surgir verdadeiros focos de discórdia e diferendos vários, que vinham a causar grande ressentimentos na comunidade ortodoxa e a contribuir para debilitar cada vez mais a relação entre estes grupos.
Diferentemente da facção ortodoxa, os Cristãos originais, Gnósticos, consideravam o Deus Jeová dos Judeus como o Demiurgo, o Criador ou Governante do mundo imperfeito, do mundo inferior, e não como o Pai de que falava Jesus ou muito menos como o Absoluto. Pretendiam ainda alguns dos grupos Gnósticos cortar a ligação a este Deus caprichoso, ou melhor, separar o Cristianismo das noções de um Deus ciumento e vingativo que aparece em tantas páginas do Antigo Testamento 4.
Em acréscimo, nos primeiros tempos do Cristianismo discutia-se na Igreja Ortodoxa a segunda vinda de Cristo (Parusia). Acreditava-se – e a Igreja continua até hoje a subscrever esta ideia - que a humanidade estava prestes a entrar numa idade gloriosa em que Cristo voltaria para recompensar os que nele acreditavam, castigar os que não acreditavam nele e voltar a dar vida física àqueles que tinham morrido em seu favor. Por contraste, a generalidade dos Gnósticos não defendiam essas crenças literalistas. Tal como a crucificação, a ressurreição física não significava nada para eles, pois a verdadeira vitória estava em transcender o corpo físico (e a natureza animal), não em transporta-lo depois da morte. A ressurreição de Cristo não era interpretada de uma forma literal mas sim simbólica, referindo-se a uma transformação interior levada a cabo na Iniciação nos Mistérios.
Outros diferendos, como a Doutrina das Emanações, e as doutrinas sobre a Criação do Universo, suscitavam de igual modo feroz reacção nos Cristãos ortodoxos, tendo-se atingido o ponto máximo de controvérsia – que levou à convocação do Concílio de Niceia por Constantino – com a discussão em torno da Doutrina da Trindade.

A Controvérsia “Ariana”
Discutida pela primeira vez no Concílio de Antióquia em 269 DC, as divergências sobre Doutrina da Trindade alcançam o seu climax no Concílio de Niceia, quando do diferendo entre Arius (e seus seguidores, os “Arianos”) e o Bispo Alexandre de Alexandria (e seu protegido Atanásio), relativamente à consubstancialidade de Jesus com Deus Pai, defendida por este(s) último(s).
Até então, em muitas comunidades Cristãs , era o ensinamento preponderante que Jesus fora um homem que, em virtude da sua vida perfeita e sem pecado, recebera pelo baptismo a Iniciação, tornando-se (um) Salvador do Mundo. Este tinha sido também o ensinamento da Igreja até então, nomeadamente através de Paulo de Samosata (260 – 272 DC), Bispo de Antioquia.
Esta concepção foi seguida por Arius, um presbítero da Igreja de Alexandria.
Começava, no entanto, a surgir a tendência materializante da facção ortodoxa. Deste modo, e ao contrário de Arius, Alexandre, Bispo de Alexandria, afirmava nos seus sermões que, em relação ao mistério da Trindade, o Filho era igual ao Pai, que o gerara, e da mesma substância. Dava-se início, assim, à formulação das três pessoas da divindade cristã ortodoxa, uma trindade antropomorfizada e que não admite divindade superior. Arius, tendo sabido dos sermões do Bispo, declarou-lhe oposição e afirmou publicamente a sua dedução lógica: se o filho era gerado pelo Pai, tem que ter havido um tempo, um momento em que o Filho não existia, ou seja, o momento anterior à sua criação. O Filho tinha, portanto, tido um começo, um início. Antagonizando o Bispo Alexandre, Arius iniciou uma forte campanha ensinando em Igrejas e assembleias públicas a doutrina de que Jesus Cristo era filho do Pai, criado pelo Pai e, portanto, uma criatura. Em resposta o Bispo Alexandre escreveu a vários Bispos, incluindo ao Bispo Alexandre de Constantinopla, denunciando Arius e os seus seguidores por tentarem evitar a deificação de Cristo.

 
O verdadeiro propósito do Concílio de Niceia
Constantino terá percebido que a controvérsia entre os seus Bispos podia constituir uma ameaça e ser um impedimento à unidade do Império Romano. Ou, talvez ainda mais provavelmente, Constantino terá visto nesta conjuntura uma oportunidade para a unidade da religião que ele pensava impor ao império (e como forma de controlar a população), e que acabou por assentar na facção que se opunha a Arius – a facção que veio a ser a ortodoxa.
A nova religião imperial, assente numa mistura confusa das ideologias dos vários grupos Cristãos e Pagãos, permitia a difusão desejada. A adaptação (desvirtuadora, embora) das tradições do passado, facilitaria também a sua aderência pelos povos de Roma.
Adicionalmente, ao atribuir “origens divinas” à Igreja Cristã de Roma, garantia-se que Deus ficava acessível apenas à hierarquiaeclesiástica – controlada por Constantino – e não ao indivíduo comum. Constantino estendia então e reforçava o seu poder político através de todo o Ocidente, garantindo também que, como Imperador defensor da Igreja, se revestia ele próprio de uma manto divino.
Quanto à moralidade que Jesus teria ensinado, esta seria gradualmente modificada de acordo com interesses do Império e da Igreja, que impunha que “fora da igreja não há salvação”, evitando focos de dissidência.
Por último, e de modo a garantir a adesão da população a um catecismo pouco credível, a Igreja postulou a ideia que acreditar nos eventos históricos da vida de Jesus era o suficiente para a salvação, fundando-se assim a “Religião Imperial Católica Apostólica Romana” ou, por outras palavras, o Cristianismo Imperial de Constantino.

O Concílio
Segundo Helena Blavatsky uma névoa de mistério envolve este concílio, o qual “… pode muito bem ser chamado de misterioso. Havia mistério, em primeiro lugar, no número místico dos seus 318 5 bispos, a que Barnabé deu muita importância; além disso não há concordância entre os escritores antigos quanto à época e ao local de realização dessa reunião, nem mesmo sobre quem seria o bispo que a presidiu” 6. Não obstante, os frutos da realização deste concílio marcaram de forma indelével o curso da nossa civilização.
Segundo a história oficial da Igreja Católica, o concilio terá sido presidido pelo próprio Imperador Constantino, e nele terá estado presente Eusébio de Cesareia, um dos maiores apoiantes da Ortodoxia, que mais tarde reescreveu a história da Igreja, segundo a perspectiva do Cristianismo Imperial de Constantino.
Deve-se a este concílio duas ferramentas chave da teologia da igreja Católica:

A decisão de quais, entre os muitos Evangelhos existentes, eram inspirados pelo Divino, ou seja, a selecção dos Evangelhos oficiais (e a subsequente erradicação de todos os escritos considerados apócrifos);
A formulação Oficial da Doutrina da Trindade, em que a Igreja rejeita o principio “Ariano” (de Arius) e afirma que Jesus é da mesma substância (ou seja, é a mesma entidade) que Deus.
Consequentemente, o Credo de Niceia foi redigido e modificado (nele se inserindo várias redundâncias) de forma a identificar o Pai com o Filho. Quem discordou, foi pura e simplesmente perseguido pelo imperador.
Ainda durante os vários séculos posteriores, os concílios defenderam as visões mais antagónicas e contraditórias sobre a Doutrina da Trindade, visando reforçar cada vez mais a ideia da identidade de Jesus como Deus Absoluto, e o consequente afastamento do Homem e do ideal do Cristo. É exemplo a proclamação de Maria, mãe de Jesus, como “Theotokos” – mãe de Deus – no Concílio de Éfeso realizado em 431 DC.

O Concílio – a selecção dos Evangelhos
Quanto à selecção dos Evangelhos, diz-nos HBP na sua obra “Ísis sem Véu”:

“Todo o actual dogmatismo religioso da Igreja se deve à Sortes Sanctorum, a prática de lançar à sorte alguma coisa com o fim da adivinhação, exercida pelo clero cristão primitivo e medieval. Não sendo capazes de concordar quais dos numerosos Evangelhos seriam os mais divinamente inspirados, foi resolvido no concílio de Nicea deixar a decisão nas mãos da intervenção milagrosa” 7. Como tal, os actuais Evangelhos Canónicos são estes e não outros devido à Sortes Sanctorum.
Curiosamente esta prática de adivinhação era considerada uma prática sagrada, se feita pelo clero cristão primitivo e medieval. Porém, se exercido por leigos, hereges ou pagãos o sortes sanctorum convertia-se, se acreditarmos nos piedosos padres, em sortes diabolurum ou sortilégio (feitiçaria) 8.
Ainda segundo Helena Blavatsky, “… Pappus diz-nos no seu Synodicon daquele Concilio: ‘Depois de terem promiscuamente colocado todos os livros que tinham sido referidos para determinação ao Concílio sob a mesa de comunhão de uma Igreja, eles (os Bispos) imploraram ao Senhor para que os livros inspirados fossem parar em cima da mesa, e assim sucedeu (…) Com base na autoridade das testemunhas eclesiásticas, portanto, tomamos a liberdade de dizer que o mundo cristão deve a sua ‘Palavra de Deus’ a um processo adivinhatório, pelo qual a Igreja, em seguida, condenou vítimas infelizes como conjuradores, encantadores, mágicos, feiticeiros e vaticinadores e os queimou aos milhares. Falando desse fenómeno verdadeiramente divino da escolha dos manuscritos, os padres da Igreja dizem que o próprio Deus preside ao Sortes”’ 9.
Refira-se que, nos primeiros séculos do Cristianismo. os Evangelhos teriam chegado a ser mais de 300. A sua redução para somente 4, decorrente do Concílio de Niceia, e o facto de se conhecerem hoje mais de 60 Evangelhos ditos “apócrifos” (como os de Tomé, de Pedro, de Filipe, de Tiago, dos Doze Apóstolos, dos Hebreus, etc.) vem demonstrar o papel preponderante da Igreja Católica na eliminação e adulteração dos primeiros escritos cristãos. Adicionalmente, sabe-se que os diversos grupos de Cristãos Gnósticos, de que são exemplo os Ebionitas e os Nazarenos, tinham os seus próprios Evangelhos, muito diferentes dos textos seleccionados sob os auspícios de Constantino.
Reforçando a incoerência de todo este processo, e de acordo com um dos compiladores da obra “Apócrifos, os Proscritos da Bíblia”, houve textos que, não obstante eliminados da Bíblia Romana, viriam mais tarde a ser nela reintegrados, como são exemplos o Livro da Sabedoria (atribuído a Salomão), o Eclesiástico ou Sirac, as Odes de Salomão, o Livro de Tobias, o Livro de Macabeus, e outros mais. Outra parte de escritos veterotestamentários ficou, no entanto, de fora, como o famoso Livro de Enoch, o Livro da Ascensão de Isaías, e os Livros III e IV dos Macabeus.

O Concílio – o Credo Niceno
Para prover a nova religião de origens divinas, os Bispos reconstruíram um credo existente, enfatizando a consubstanciação do Filho com o Pai, de Jesus com Deus:
“Creio em Deus Pai Todo Poderoso , Criador do Céu e da Terra, e de todas as coisas visíveis e invisíveis.
E em um Senhor Jesus Cristo , filho unigénito de Deus, gerado de Seu Pai antes de todos os tempos, Deus de Deus, Luz da Luz, Deus Verdadeiro de Deus Verdadeiro, gerado e não criado, consubstancial ao Pai (…)”
De facto, como já foi dito, um dos dois pontos na agenda do Concílio, foi a discussão sobre a natureza de Cristo e a natureza da sua relação com Deus: se o Pai tinha existido antes do Filho, e se Pai e Filho eram da mesma natureza ou “apenas” de natureza semelhante. A discussão centrou-se à volta de uma variação da palavra grega “homos”: em grego a palavra “homos” significa da mesma natureza ou substância, consubstancial. No entanto, adicionando um “i” à palavra – “homoios” – passa a significar de natureza semelhante. Decidiram os Bispos que o termo correcto para designar Jesus seria, na língua Grega, “homos”, ou seja, consubstancial.
A Trindade de Hipóstases divinas existente no Hinduísmo e no antigo Egipto, assim como em todos os sistemas religiosos e filosóficos arcaicos 10, foi assim decalcada e antropomorfizada. Consequentemente o Concílio decidiu que a Trindade Cristã seria constituída por Três Pessoas: o Pai, o Filho (Jesus) e o Espírito Santo, e que Jesus, o Filho, era consubstancial a Deus.
Nos Mistérios e religiões arcaicas que antecederam a Cristandade, era bem conhecido que o termo “Filho de Deus” se usava para designar o grau de Iniciação nos mais altos Mistérios, a realização da sua natureza divina por parte do iniciado. Quando um aspirante alcançava, através da Iniciação, de grandes provas e sofrimentos, um elevado estado de perfeição, o seu nome era transformado em Christos, o “purificado” 11. Para a generalidade dos grupos Gnósticos, Jesus era a Sabedoria e a palavra de Deus em virtude da sua indissolúvel união com o Verbo. Cristo, filho de Deus, corresponde analogicamente ao segundo Aspecto do Logos e o princípio Cristico, ou Buddhi, no homem.
Como é óbvio, estas considerações metafísicas por muito enriquecedoras do ponto de vista do conhecimento religioso-filosófico que fossem, não beneficiavam em nada o poder e a autoridade da classe eclesiástica, que se começava a formar no Império através do domínio da facção ortodoxa nas paróquias.Se os padres da Igreja Ortodoxa fizessem a distinção entre a preexistência da alma de Jesus (ou Jesus homem) e o Cristo ao qual ele ascendeu, isso implicava obviamente que qualquer alma podia, da mesma forma que Jesus, vir a identificar-se com o Filho e, portanto, a progredir na direcção de uma União com a Divindade. O poder e a autoridade do Clero, como únicos mediadores entre Deus e o Homem, seriam, desta forma, ameaçados.
Os padres tomaram portanto a direcção contrária – uma direcção que lhes permitisse o controlo absoluto dos seus crentes, um movimento na direcção da absoluta deificação de Jesus.
Em oposição, vários Bispos favoráveis às teses de Arius apresentaram um outro credo ao concilio, o qual foi rasgado, resultando na excomunhão de Arius. O livro de Arius foi igualmente queimado no próprio concílio. Uma confissão de fé (o Credo Niceno) foi então escrita no concílio e assinada por todos os presentes, de acordo com ordem dada por Constantino. Todos os que se recusaram a assinar o Credo, foram banidos.
O Credo subscrito em Niceia é muito mais do que a afirmação da Divindade de Jesus: é também a afirmação da nossa separação de Cristo e do Divino.
Entretanto, curiosamente, o Credo Niceno é também visto por alguns estudiosos como um simples (mas pouco lúcido) desenvolvimento da fórmula “O Buddha, A Lei, A Comunidade Monástica (Buddha, Dharma, Sangha), tendo sido o Concílio o momento em que o Cristianismo rompeu definitivamente com o Budismo eclesiástico, visto que os Essenos, os Terapeutas e os Gnósticos são identificados como o resultado da fusão entre o pensamento Indiano e Semítico, demonstrado por comparação entre a vida de Jesus e Buddha. Na parte lendária, ambas as histórias são idênticas. A parte lendária é contrastada com a característica correspondente noutras religiões, principalmente com a história Védica do Visvakarman” 12.
Aliás, são patentes as similaridades do Credo Niceno com a antiga doutrina Hindu. Krishna era considerado como a incarnação de Visnhu, cuja função era análoga à Segunda Pessoa da Trindade Cristã. No Bhagavad-Gita (datado aproximadamente de 250 AC ), o mesmo Krishna é representado como a suprema personificação de Brahman – a divindade suprema que desce para iluminar o homem e contribuir para a sua salvação. Isto vem evidenciar, uma vez mais, que o Credo proposto pela facção ortodoxa e feito assinar pelos Bispos em Niceia resultou de uma amálgama fabricada com elementos de outras doutrinas mais antigas, adaptadas aos interesses e objectivos da nova religião imperial.
Posteriormente, ao longo da História da Igreja Católica, e no decorrer de vários concílios, foram também adicionadas ao Credo Niceno diversas outras referências reflectindo a constante adaptação da religião fabricada, nomeadamente a inclusão da passagem “… e encarnou pelo Espírito Santo na Virgem Maria…” e “… também por nós foi crucificado e sob Pôncio Pilatos”, numa clara tentativa de enfatizar um elemento Histórico na vida literal de Jesus, justamente por ser um elemento controvertido” 13.

Conclusão
Como vimos, a política do Império Romano foi lentamente assimilada na Igreja, sendo formulada uma religião totalitária com o nome de Catolicismo Romano. A ascensão de Constantino foi um período de grande crescimento da Igreja, com o criar da religião oficial do Império.
Vimos também que no concilio de Niceia se dão os primeiros passos no sentido de construir os alicerces da teologia desta igreja oficial: são “sorteados” os Evangelhos “Divinamente” inspirados, e Jesus Cristo é oficialmente declarado como Deus.
Após este acto, haverá sempre, para muitos, um abismo entre a humanidade e Cristo. De acordo com os padres pós-Niceia, Jesus é o próprio Deus Eterno Imanifestado e Absoluto. Também a noção de “Iniciação” é eliminada. As doutrinas gnósticas e esotéricas, cujos ensinamentos incidiam na evolução espiritual, tornaram-se supérfluas e indesejáveis. A teologia resultante do Credo Niceno promoveu uma passividade em que, de acordo com aquela fórmula, qualquer pessoa tem apenas que aceitar o credo, partilhar dos sacramentos, obedecer aos Bispos e à Igreja, bem como às decisões dos concílios, e será “salvo”.
Este concílio e as doutrinas daí advenientes prepararam também o terreno no qual floresceram as doutrinas do pecado original e do Inferno Eterno, contribuindo para a degradação e aviltamento da humanidade.
Vimos ainda que o triunfo do Cristianismo não pode ser separado da influência politica do Império Romano. Ao promover o casamento entre igreja e estado, os líderes da igreja tornaram-se monarcas e Constantino foi quase foi considerado um santo. Consequentemente, uma das grandes preocupações da Igreja foi (não a teologia) mas a eliminação de todos os elementos que se atravessaram na obtenção do poder absoluto. A partir daqui e até 1798 (quando os exércitos de Napoleão entraram em Roma), o Papa e as Monarquias governaram em uníssono.
Quando Constantino morreu, em 337, foi Baptizado (ironicamente só no seu leito de morte e por um seguidor de Arius) e enterrado na consideração que se tornara um décimo terceiro apóstolo. Na iconografia eclesiástica foi representado como recebendo uma coroa da mão de Deus…

Helena Castanheira
Licenciada em Gestão de Empresa

Notas:

1 Dean Dudley, “History of the First Council of Nice”
2 Sobre os grupos Gnósticos vide Capítulo II de “Cristo” por José Manuel Anacleto (CLUC, Lisboa, 2005); “Os Antigos Gnósticos e o Cristianismo Primitivo” por Ana Isabel Neves, na revista “Biosofia” n.13; H. P. Blavatsky, “Ísis Sem Véu” – Volume III; “H. P. Blavatsky On The Gnostics”, H. J. Spierenburg.
3 José Manuel Anacleto, “Cristo”, pág. 85.
4 Ver Biosofia n. 18, pág. 17.
5 Helena Blavatsky demonstra no Volume VIII dos seus “Collected Writings” como este número reflecte uma mistura entre nomes e alegorias Egipto-Judaicas do Antigo Testamento com as dos Gnósticos Gregos. Nomeadamente São Barnabás, companheiro de São Paulo, relaciona o número 318 com o IHT, em que o Tau (T) significa Jesus crucificado. Também um cabalista relaciona este número com as letras hebraicas Jod, Cheth, e Shin, donde deriva o IHS, que corresponde ainda hoje ao monograma de Cristo.
6 Helena Blavatsky, “Collected Writings” – Volume III, pág. 211.
7 Helena Blavatsky, “Isis Sem Véu” – Volume III, págs. 251.
8 Helena Blavatsky, “Glossário Teosófico”.
9 Helena Blavatsky, “Isis Sem Véu” – Volume III”, págs. 251-253 (cit.).
10 Helena Blavatsky refere no Volume XIV dos seus “Collected Writings” como Orfeu, Pitágoras e Platão, que afirmavam a Trindade das Hipóstases divinas, derivaram grande parte da sua doutrina dos Egípcios, anteriores a eles, e como, por sua vez, os Egípcios certamente derivaram a sua Trindade da Trindade Hindu – Hiranyagarbha, Hari, e Sansara (Brahmâ, Vishnu, e Shiva) – as três hispóstases do Espírito que se manifesta.
11 Helena Blavatsky, “Glossário Teosófico”.
12 Helena Blavatsky, “Collected Writings” – Volume X, pág.67.
13 José Manuel Anacleto, “Cristo”, pág. 84.
REDE AQUARIANA - Seção Brasil — Para postar correspondência
para este GV escreva para rede.aquariana.brasil@grupos.com.br.

terça-feira, 19 de abril de 2011

A CONDIÇÃO HUMANA : HANNAH ARENDT.

Thiago Rodrigues Braga

Ao começar sua obra, “A condição humana”, Hannah Arendt alerta: condição humana não é a mesma coisa que natureza humana. A condição humana diz respeito às formas de vida que o homem impõe a si mesmo para sobreviver. São condições que tendem a suprir a existência do homem. As condições variam de acordo com o lugar e o momento histórico do qual o homem é parte. Nesse sentido todos os homens são condicionados, até mesmo aqueles que condicionam o comportamento de outros tornam-se condicionados pelo próprio movimento de condicionar. Sendo assim, somos condicionados por duas maneiras:


1. Pelos nossos próprios atos, aquilo que pensamos, nossos sentimentos, em suma os aspectos internos do condicionamento.


2. Pelo contexto histórico que vivemos, a cultura, os amigos, a família; são os elementos externos do condicionamento.


Hannah Arendt organiza, sistematiza, a condição humana em três aspectos:

                          • Labor

                          • Trabalho

                          • Ação

O “labor” é processo biológico necessário para a sobrevivência do indivíduo e da espécie humana. O “trabalho” é atividade de transformar coisas naturais em coisas artificias, por exemplo, retiramos madeira da árvore para construir casas, camas, armários, objetos em geral. É pertinente dizer que para a autora, o trabalho não é intrínseco, constitutivo, da espécie humana, em outras palavras, o trabalho não é a essência do homem. O trabalho é uma atividade que o homem impôs à sua própria espécie, ou seja, é o resultado de um processo cultural. O trabalho não é ontológico como imaginado por Marx.
Por último a “ação”. A ação é a necessidade do homem em viver entre seus semelhantes, sua natureza é eminentemente social. O homem quando nasce precisa de cuidados, precisa aprender e apreender, para sobreviver. Qualquer criança recém nascida abandonada no mato morrerá em questão de horas. Por isso dizemos que assim como outros animais o homem é um animal doméstico, porque precisa aprender e apreender para sobreviver. A mesma coisa não acontece com aqueles animais que ao nascer já conseguem sobreviver por conta própria, sem ajuda. A qualidade da ação supõe seu caráter social ou como escreve Hannah, sua pluralidade.


Tanto ação, labor e trabalho estão relacionados com o conceito de “Vita Activa”. Para os antigos, a “Vita Activa” é ocupação, inquietude, desassossego. O homem, no sentido dado pelos gregos antigos, só é capaz de tornar-se homem quando se distancia da “vida activa” e se aproxima da vida reflexiva, contemplativa.
É justamente nessa visão de mundo grega que os escravos não são considerados homens. O escravo ao ocupar a maior parte de seu tempo em tarefas que visam somente à sobrevivência de si e de outros, é destituído do conceito grego de homem, mas por outro lado ele não deixa de ser humano. Portanto, dentro dessa lógica só é homem aquele que tem tempo para pensar, refletir, contemplar. Nietzsche afirma em seu “Humano, desmasiado humano”que, aquele que não reserva, pelo menos, ¾ do dia para si é um escravo. A base disso encontramos em Sócrates: se é apenas para comer, dormir, fazer sexo, que o homem existe, então, ele não é homem, é um animal. Pois assim era visto o escravo: um animal. Um animal necessário para à formação de “homens”. É muito importante salientar que a escravidão da Grécia antiga é bem diferente da escravidão dos tempos modernos. Pois, na era moderna a escravidão é um meio de baratear a mão-de-obra, e assim, conseguir maior lucro. Na antiguidade a escravidão é um meio de permitir que alguns, por exemplos, os filósofos, tivessem o controle do corpo, das necessidades biológicas; a temperança. Para os gregos, a escravidão, do ponto de vista de quem se beneficia dela, - os próprios filósofos da época - salva o homem de sua própria animalidade, e não lhe prende às tarefas pragmáticas. A dignidade humana só é conquistada através da vida contemplativa, reflexiva: uma vida sem compromisso com fins pragmáticos.


A religião cristã toma emprestado a concepção de mundo grega, e vulgariza a dignidade humana. Agora qualquer indivíduo pode, e deve viver, uma vida contemplativa. Enquanto na Grécia antiga a vida contemplativa era destinada aos filósofos, no cristianismo ela é destinada a todos. Essa é única forma que o cristianismo encontra para convencer os homens a rezar.


Hannah Arendt identifica três forma dicotômicas de trabalho:


                        improdutivo e produtivo


                        • qualificado e não qualificado

                        • intelectual e manual.


Como a intenção da autora é mostrar a fraqueza do pensamento de Karl Marx, ela diz que o conceito de trabalho usado por Marx, é um conceito comum de sua época: trabalho é trabalho produtivo. Segundo a autora esse conceito de trabalho produtivo, isto é, trabalho que produz objetos, matéria; eclodiu das mãos dos fisiocratas. A escolha de Marx pelo uso do termo trabalho como trabalho que produz, que gera, que cria, estava em moda na época.


Com o avanço do processo de industrialização haveria de designar algum nome para todo


aquele trabalho que não estava ligado ao trabalho industrial, daí nasceu o trabalho intelectual em contraposição ao trabalho manual. Tanto um como outro, faz uso das mãos, quando colocados em prática. O intelectual precisa das mãos para escrever seu pensamento. Nesse sentido o trabalho intelectual também é trabalho manual. É dessa forma que o trabalho intelectual é integrado dentro do conceito “trabalho” da revolução industrial. A ideologia que atravessa os tempos modernos é a seguinte: Qualquer coisa que se faça tem que ser necessariamente produtivo, tudo deve ser transformado em mercadoria, ou seja, o valor de troca tem a última palavra.


Qual é o caráter objetivo implícito do conceito “força de trabalho” em Marx? Compreende que todos tem a mesma força de trabalho, até mesmo aqueles que são fisicamente mais fracos. Assim, Marx consegue formar o conceito de “valor de troca”, tempo de trabalho necessário dispendido para produzir um objeto. Necessário para quem? Para todos. Se o tempo médio da produção de um sapato é 6 horas, todos os trabalhadores devem se adequar. Marx não explica como ele consegue calcular o tempo médio abstrato, o tempo social? Portanto, ele, pressupõe que todos devem ter a mesma força de trabalho, e desconsidera as diferenças subjetivas. É obvio que uma criança não tem a mesma força de trabalho de um adulto, nem o deficiente físico terá a mesma força, sem falar nas diferenças mais minuciosas. Em suma, Marx pensava que todos devem ter a capacidade de produzir um mesmo objeto num tanto “x” de horas. E é isso que será exigido pelos proprietários dos meios de produção.



A força de trabalho é aquilo que o homem possui por natureza, só cessa com a morte. Diferente do produto, a força de trabalho não acaba quando o produto termina de ser produzido. Portanto, a força de trabalho é aquilo que Hannah Arendt entende por “labor”. “O labor não deixa atrás de si vestígio permanente”. ( 101, Arendt)


Arendt dá alguns exemplos que nos pode ajudar entender o conceito de labor. Qual é a diferença entre um pão e uma mesa? A mesa pode durar anos e o pão dura, como muito, dois dias. O trabalho é força gasta para produzir a mesa. O labor é a força dispendida para produzir o pão. Mesa: objeto material produzido para o uso cotidiano e ocupa lugar no espaço. Pão: elemento material produzido para à sobrevivência de seres vivos e não ocupa lugar no espaço, visto que durante a digestão o pão é transformado em energia do corpo.


" O que os bens de consumo são para a vida humana, os objetos de uso são para o mundo do homem”.(Arendt) O bem de consumo é o pão e o objeto de uso é a mesa. O primeiro permite a vida; o segundo é necessário aos relacionamentos humanos. Em suma, o homem se torna dependente daquilo que que produz. E para a autora, torna-se dependente é torna-se condicionado. Daí encontramos a justificativa do nome do livro: “A condição humana”. Quais são as condições que o homem se impõe e se submete para permanecer em sociedade, para viver em coletividade? Se fossemos analisar essa questão mais pormenorizadamente teriamos necessariamente de falar sobre auto-repressão do prazer, aquilo que Freud chama de controle do superego sobre o id. Mas não podemos esquecer que o nosso fim neste trabalho é perscrutar alguns aspectos e vertentes que o trabalho tem na obra da escritora alemã.


Sendo assim, como entender uma realidade que tem como pedra de toque o que chamamos trabalho? Para que o mundo dê curso à vida é preciso transformar o abstrato em matéria, o impalpável no papável. Isso é uma necessidade humana. Sociedades ocidentais e não-ocidentais( tribais) realizam esse processo de maneiras diferentes. Na primeira, existe o valor de troca, na segunda, não há valor de troca. A palavra trabalho é um termo, conceito, ocidental que é constitutivo do capitalismo, das sociedades ocidentalizadas. E este conceito não pode ser aplicado nas sociedades não ocidentalizadas, onde o capitalismo não existe. Portanto, não faz sentido dizer que os índios trabalham. Eles não trabalham, apenas realizam atividades. Estamos num ponto delicado do nosso trabalho.
Um ponto que é ignorado por grande parte de estudiosos das ciências.
A afirmação: os índios não trabalham, não quer dizer que eles são preguiçosos, quer dizer que eles não produzem valor de troca, portanto, não realizam trabalho. Quando Marx pensa que o trabalho pode ser constitutivo do homem, ele não está usando como pressuposto o conceito valor de troca. E, é importante entender isso, porque esse foi o lugar onde ele foi mais mal interpretado. Peço que esqueçam do conceito valor de troca por um momento. Vamos imaginar aquela velha estória do homem que se encontra isolado, sozinho numa ilha. Ele quer encontrar alguma forma para sair da ilha. E para isso ele deverá construir um barco, irá trabalhar. Antes de construir o barco o homem tem a idéia do que seja um barco, isto é, ele já viu um barco pelo contato direto. Ao ver um barco pela primeira vez, ele forma o conceito de barco. Então, imagina um barco, cria a imagem na mente, para depois construí-lo. A construção do barco dependente necessariamente do conceito barco. Esse exercício de imaginar e depois construir é próprio do ser humano, e, é nesse sentido que Marx diz que o homem é o único animal que trabalha. O homem imagina e depois faz. Se acrescentamos o valor de troca, temos o trabalho capitalista. O trabalhador da fábrica sabe de antemão qual objeto irá produzir, sabe para que será usado. Todo objeto antes de ser construído tem sua finalidade, sua utilidade.


Nesse aspecto entre o meio(recurso usado para obter um fim) e o fim, temos a distinção entre objeto e instrumento. O instrumento é usado para produzir o objeto, por exemplo, o alicate é usado na produção de automóveis. Uma vez acabada a produção do automóvel, este serve como meio de transporte. A princípio temos o automóvel como fim, e num segundo momento temos o automóvel como meio. Ele é um fim em relação ao alicate, e depois, é um meio em relação ao homem. Se em relação ao alicate temos um objeto, em relação ao homem temos um instrumento. É nesse sentido que Arendt fala que existe um processo circular entre meio e fim, instrumento e objeto; em que todo fim se torna meio e todo meio se torna fim. Assim nos explica Hannah Arendt: “Num mundo estritamente utilitário, todos os fins tendem a ser de curta duração e a transformar-se em meios para outros fins.”(Arendt, 167)



Nenhum instrumento é produzido a bel-prazer, é produzido para atender ao tipo de objeto desejado. O que realmente importa ao empregador é o objeto final acabado, o instrumento é apenas o meio. Por isso dizemos que os meios de produção são instrumentos usados para gerar mais-valia. Usados por quem? Pelo trabalhador assalariado. Quando o assalariado não percebe que o uso que ele faz do instrumento, -seu trabalho-, gera mais- valia, dizemos que ele se encontra num estado de alienação.


Vamos voltar um pouco na distinção entre trabalho e labor. Já foi dito que o labor é trabalho gasto para produção de alimentos. Portanto, é o que mantem a saúde do indivíduo. Só assim ele poderá trabalhar. Nesse aspecto o labor é pré-requisito do trabalho. O que quer dizer isso? Não é possível, (dentro dos termos de Arendt), existir trabalho sem labor, ainda que seja possível o inverso. Ao passo que o labor produz a matéria para incorporá-la ao organismo, o trabalho a produz para que esta seja usada na produção de outros objetos e na materialização do abstrato( exemplo, colocar no papel uma idéia).


Uma outra distinção entre trabalho e labor consiste em que, enquanto o labor exige o consumo rápido ou imediato, o trabalho não. A lógica do trabalho é a durabilidade dos objetos. Sua durabilidade permite a acumulação e estoque dos objetos


Fonte:


http://www.mundodosfilosofos.com.br/a-condicao-humana-hannah-arendtt.htm

Pintura: Neoclassismo.

Jacques-Louis David
(Paris, 30 de agosto de 1748 – Bruxelas, 29 de dezembro de 1825) foi um pintor francês, o mais característico representante do neoclassicismo. Controlou durante anos a atividade artística francesa, sendo o pintor oficial da Corte Francesa e de Napoleão Bonaparte.

A Morte de Sócrates (1787), exibida no Salão de 1787, que foi comparado a criações imortais de Michelangelo e Rafael Sanzio. Diderot a qualificou de "absolutamente perfeita", e obteve igualmente a aprovação real.