sexta-feira, 12 de agosto de 2011

FILOSOFIA DA CIÊNCIA. Introdução ao Jogo e a suas Regras (Recensão).


Telma Castro
Coordenadora na Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda, com atribuições vinculadas a políticas sociais. Formada em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Goiás, bacharelanda no curso de Direito do UniCeub, Brasília

Em Filosofia da Ciência. Introdução ao jogo e a suas regras, Rubem Alves faz um alerta para a necessidade de se desmistificar o cientista, considerado superior, por si, pela classe e pela grande maioria das pessoas comuns, dado ao seu trabalho em busca da verdade, do conhecimento e do desenvolvimento da ciência.

A obra é dividida em onze capítulos, os quais, gradativamente, vão conduzindo o leitor ao mundo da ciência, em um raciocínio bem estruturado, lógico e didático. Ao longo dos temas tratados, são inseridos exemplos, questionamentos e jogos, em uma contínua interação com o leitor. Também sobressaem as críticas, comparações entre pensadores e cientistas e as conclusões a que conduz o raciocínio desenvolvido.

Nos dois primeiros capítulos (O Senso Comum e a Ciência - I e II), a curiosidade do leitor sobre o tema é provocada de início, ao se deparar com perguntas e exemplos que o levam a compreender as diferenças básicas entre senso comum e ciência. Aqui, o senso comum não recebe uma definição específica, mas apenas uma inferência a partir da definição de ciência. Em sendo esta uma "especialização, um refinamento de potenciais comuns a todos", o senso comum seriam "as receitas para o dia-a-dia, bem como os ideais e esperanças que constituem a capa do livro de receitas", ou, na qualificação dos cientistas, "pessoas que não passaram por um treinamento científico". O autor sugere, ainda, e de forma enfática, o risco de que a especialização, aí entendida a ciência, se transforme em uma "perigosa fraqueza", de vez que ela, se mal aplicada, pode contribuir para uma atrofia do pensamento dos não-cientistas, além de limitar a visão do todo pelo aprofundamento do particular. Em outras palavras, deve-se estar ciente de que tanto a ciência quanto o senso comum requerem criatividade para o invento de soluções que buscam a adaptação do ser humano às revoluções da humanidade.

No terceiro capítulo (Em Busca da Ordem) está presente o ponto de convergência entre ciência e senso comum, representado pela busca da ordem, exigência do homem, cientista ou não, desde sempre. Em se tratando da ciência, o estabelecimento da ordem se dá por meio de métodos, cuja sistematização pretende isolar o cientista da influência de subjetividades que possam corromper o "conhecimento objetivo da realidade". O autor, neste capítulo, fortalece a idéia de que a ciência parte da necessidade de solução para um determinado problema, sendo a teoria ou hipótese de trabalho o produto final. A solução, no âmbito do método científico, usa um modelo mentalmente idealizado, hipotético e provisório, que, depois de construído, deve ser pesquisado e experimentado. Assim, entendendo-se a teoria como algo continuamente passível de teste, os fatos objeto do trabalho científico são restritos àqueles decisivos para a confirmação ou negação das teorias postas.

No quarto capítulo (Modelos e Receitas), que trata do estabelecimento da ordem, o autor faz um questionamento no mínimo intrigante, ao afirmar que "o homem foi capaz de manipular as estrelas, os planetas e os satélites". A manipulação, nesse sentido, ocorre no plano da imaginação, quando o cientista analisa uma questão a partir de um modelo. Nessa linha de raciocínio, o modelo representa um artefato construído de conceitos e que nos permite simular o que deve ocorrer sob certas condições. Utilizando várias situações ilustrativas, o autor conclui que as mudanças de modelo são necessárias para a compreensão do problema e, novamente, ressalta que o progresso da ciência depende da ocorrência de anomalias, as quais forçam o trabalho científico na busca de solução.

O capítulo quinto (Decifrando Mensagens Cifradas) propõe formas para se decodificar mensagens cifradas, existentes em coisas aparentemente insignificantes e cujo sentido são um desafio à razão, à inteligência e à persistência do homem. Segundo o autor, a decifração requer uso de chaves que, uma vez identificadas, permitem conhecer o que se pretende. Aqui, o conceito do termo teleológico é introduzido para explicar a importância da finalidade da descoberta do sentido das coisas, pelo uso da pergunta "para quê?". Entretanto, no mesmo diapasão, Rubem Alves nos leva a uma reflexão mais profunda, envolvendo o propósito da própria criação máxima de Deus - o universo. Uma das mais fortes ilustrações utilizadas por ele é a afirmação de Galileu (Il Saggiatore): "O livro da natureza está escrito em caracteres matemáticos", considerada, à época, "subversiva, sacrílega, digna da Inquisição". Essa referência a Galileu foi o mote usado por Rubem Alves para explicar que, na decifração da natureza, a ciência usa hipóteses - ou perguntas - que requerem, para sua confirmação ou refutação, a observação e o experimento.

O capítulo seis (Pescadores e Anzóis) talvez seja o mais elucidativo para o principiante da leitura ou do trabalho científico. Resgatando a frase usada por Karl Popper como epígrafe de seu livro A lógica da investigação científica, "Teorias são redes; somente aqueles que as lançam pescarão alguma coisa", Rubem Alves, faz uma analogia, embora ressalvando a sua incompletude, entre o pescador e o cientista, as redes e as teorias, os peixes e os objetos de estudo, os anzóis e os métodos de pesquisa e investigação. Leva-nos, assim, a entender que o que não é significativo para o cientista não deve ser considerado no decorrer do seu trabalho, ou seja, há que se ter um foco bem definido, uma questão bem formulada, uma hipótese passível de teste, para que o resultado (a pesca) corresponda ao que o cientista (o pescador) buscou como solução para o problema (o peixe). Mais uma vez, o alerta: o pescador, com freqüência, se arvora em dizer que conhece o mistério da lagoa por haver pescado um peixinho; não se sabe, entretanto, se ele utilizou a rede certa ou se haveriam diferentes tipos de peixe cujo melhor instrumento de pesca seria o anzol.

No capítulo sete (A Aposta), Rubem Alves retrata parte da história da ciência, citando a mudança do paradigma da Era Medieval, em que imperava o representante da ordem eclesiástica, para o qual a explicação dos fatos estava no passado. Com os fundamentos apresentados pelos filósofos naturais estabelece-se a preocupação de aprender a partir da natureza. Esse aprendizado dá início aos métodos indutivo e dedutivo, de que a ciência se utiliza. Para Rubem Alves, a dedução é ineficiente para a ampliação do conhecimento, aplicando-se somente em questões de lógica, de raciocínio matemático; por outro lado, a indução, para progredir, requer informações sobre fatos, sendo o resultado da sua aplicação uma probabilidade. Neste ponto, Rubem Alves deixa de falar apenas de fatos e razão, para afirmar que o método probabilístico tem um elemento de crença, por força dos costumes, da repetição.

No capítulo oito (A Construção dos Fatos), deparamo-nos com uma análise bastante clara sobre o pensamento filosófico do positivismo, para o qual tudo se limita aos fatos. Em contraposição a esse movimento, Rubem Alves, concordando com Kant, sugere que ao se limitar a fatos os cientistas evitam os conflitos, de vez que as decisões podem ser tomadas por métodos precisos e objetivos. Porém, esse método não propicia o alcance da explicação pretendida. A simplicidade da correlação entre causa e efeito, de seu lado, também não oferece conhecimento, porquanto se trata de hábitos, automatismos e costumes, que levam o homem a aceitar as coisas como fatos. Entretanto, o que o cientista procura é a integração dos fatos em um esquema teórico-explicativo, o que, em si, requer uma interpretação, uma iluminação que lhes dê vida.

No capítulo nono (A Imaginação), o autor se reporta a vários pensadores, cientistas e filósofos, para ilustrar e definir a questão do método e a sua relação intrínseca com a ciência. O método poderia ser o caminho que conduz à realização dos enunciados universais - as teorias, a partir das amostras, dos dados e dos fatos, na forma proposta pela indução. Poderia também ser uma simples organização de dados, embora estes requeiram a imaginação do homem para lhes atribuir significado. Em outras palavras, os dados apenas fazem sentido quando são organizados na mente. Com um exemplo simples, o autor nos faz observar diferentes coisas a partir de uma mesma fonte, levando-nos à conclusão natural de que tudo nada mais é do que uma questão de perspectiva, da forma como vemos ou analisamos os dados. A perspectiva seria determinada pela imaginação e esta, por sua vez, seria o elo que une o homem ao objeto de estudo. Nessa análise, Rubem Alves se permite contestar os pensadores que renegam a emoção que envolve o cientista quando investiga alguma coisa. Ele não crê que a ciência seja neutra, a partir do entendimento de que o trabalho do cientista exige uma grande dose de amor e paixão, presente nos "vôos da imaginação criadora".

No décimo capítulo (As Credenciais da Ciência), Rubem Alves parte da sugestão de que a ciência é uma entre muitas outras atividades com que se ocupam as pessoas comuns, não existindo, assim, razão para orgulho. Entretanto, ao procurar a verdade, que pode e é testada, o cientista se distingue dos demais profissionais, pois nestes o discurso é função apenas do prazer. Nessa linha, o autor compartilha a sugestão de Karl Popper, segundo a qual apenas a falsicabilidade da ciência, ou seja, a capacidade de ser testada pela experiência, podendo daí ser demonstrada sua falsidade, poderia ser aceita como credencial. Isso porque o falso é conclusivo, enquanto o verdadeiro não o é. Neste ponto, Rubem Alves questiona a razão de os cientistas não divulgarem seus fracassos, já que elas não seriam de cunho metodológico. Mais uma vez em foco a questão da neutralidade da ciência.

O décimo-primeiro e último Capítulo (Verdade e Bondade) traz exemplos e citações de outros autores, que, a princípio, colocam em cheque a afirmação de Popper sobre a falsicabilidade da ciência. Para Kuhn, em especial, poder-se-ia simplesmente deixar correr a história e observar o comportamento dos cientistas, para se compreender os mecanismos que permitem a tomada de decisão. As teorias estariam ligadas à biografia do cientista e ao destino de sua comunidade. Com isso, Rubem Alves conclui que o conhecimento não é suficiente para legitimar a ciência e que esta poderia redirecionar seu foco para a bondade, em vez da verdade. Poderia, simplesmente, voltar-se para a busca do alívio da miséria humana.

Pela estrutura de raciocínio desenvolvida, pode-se dizer que os estudantes iniciados na matéria, professores, pesquisadores e curiosos são os que poderão extrair mais proveito dessa obra, ao se aperceberem da capacidade de Rubem Alves de lidar, com simplicidade didática, de questões comuns e ao mesmo tempo de grande cunho filosófico. O leitor, todavia, pode se julgar insatisfeito, por remanescerem dúvidas sobre o trabalho da ciência, ou, no extremo oposto, motivado a realizar novas leituras, com vistas à elucidação ou mesmo contraposição ao pensamento do autor.
Fonte:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/rev_81/Recensoes/TelmaCastro.htm