André Martins
Resumo
Exponho neste trabalho uma análise comparativa da função da linguagem e do estatuto da filosofia em Wittgenstein e Heidegger, apresentando suas propostas como diametralmente opostas, porém a partir de uma equivalente separação inicial - entre o que pode ser dito, ou a tentativa de desvelamento total do ser pela linguagem, e o que só pode ser mostrado, ou o que se desvela como velado. Em seu Tractatus Logico-Philosophicus (1922), Wittgenstein (1889-1951) apresenta sua proposta como a de "traçar um limite para a expressão dos pensamentos", inserindo-se assim na tradição crítica da filosofia moderna, e concluindo que este limite "só poderá ser traçado na linguagem", de modo que "o que estiver além do limite será simplesmente um contra-senso". O que está além desta linguagem passível de notação lógico-formal será, ainda segundo Wittgenstein, a ética, a estética e o místico. Heidegger (1889-1976) estabelece uma separação análoga, entre poesia e razão calculante, porém, contrariamente a Wittgenstein, associa à primeira, e não à segunda, o pensamento e a razão filosófica.
1. Kant: a tradição crítica da filosofia
Quais os limites da filosofia? Ao se propor a estabelecer estes limites, Kant quis mostrar que a filosofia teve, até então, a pretensão de conhecer objetos que, por serem metafísicos, escapavam aos limites da razão. O que se pode conhecer, quais as condições de possibilidade do conhecimento? Com estas questões, Kant inaugurava sua teoria crítica, visando ultrapassar a metafísica. A resposta que propusera fora que os limites da razão, e portanto do conhecimento e, assim, da filosofia, são dados pela experiência e pelo entendimento, ou, mais precisamente, pelas categorias a priori do entendimento que põem na experiência o que dela o sujeito pode então conhecer. Kant criou, assim, a idéia de um sujeito transcendental, o sujeito do conhecimento, transcendental pois que transcende o sujeito empírico, o sujeito "subjetivo", permitindo então a todo sujeito um conhecimento objetivo, verdadeiro, pois que puro, isto é, prévio ao indivíduo psicológico que conhece.
A teoria crítica kantiana gerou, entre outras filosofias, duas que, embora contem com esta origem comum, em muito diferem entre si: a fenomenologia e a filosofia analítica.
2. Husserl: fenomenologia transcendental
Husserl critica Kant por ter sucumbido ao ‘objetivismo’, desprezando a subjetividade originária das próprias fontes de sentido, que subsistem ao mundo antes de qualquer ciência:
"Dispomos, é verdade, a partir de Kant, de uma teoria do conhecimento que nos é própria, e, por outro lado, há bem aí a psicologia, que, em suas pretensões de atingir a exatidão das ciências da natureza, gostaria muito de ser a ciência universal e fundamental da mente. No entanto, nossa esperança em uma racionalidade efetiva, em um efetivo esclarecimento neste domínio, se encontra, aqui como em toda parte, frustrada. [...]Pelo objetivismo que é o seu, a psicologia não saberia receber por tema a alma, isto é, simplesmente, o eu, aquele que age e sente, em todo o sentido que é propriamente e essencialmente o seu. [...] É ainda a mente que é capaz de exercer o conhecimento de si mesmo, e enquanto espírito científico, um conhecimento científico de si mesmo." (Husserl, E."La crise des sciences européennes et l’esprit de la philosophie" in La crise des sciences européennes et la phénoménologie transcendentale. 1935-37. p. 342-346.)
Husserl propõe assim um retorno a Descartes como resposta às questões kantianas: os limites da filosofia estão no ego, na consciência, é nela que se encontra a essência ideal, eidética (de ?????, idéia), das coisas. Fenômeno é portanto tudo aquilo que se dá, não ao sujeito transcendental kantiano, mas à consciência, ao ego cogito, ao eu transcendental. Acredita que há uma correlação, uma imanência da consciência e das coisas, de modo que não há coisas sem consciência nem consciência sem coisa — toda consciência é consciência de alguma coisa, o que define o que Husserl chamou de intencionalidade: a experiência do mundo se dá no interior da consciência do sujeito transcendental husserliano, concebido como ego absoluto.
3. Wittgenstein: a lógica da filosofia
Diante da mesma questão crítica kantiana, a resposta de Wittgenstein fora bem outra. Wittgenstein buscou um limite para a filosofia. Porém, não mais um limite para o conhecimento, mas sim "para a expressão dos pensamentos", concluindo que este limite "só poderá ser traçado na linguagem" (prefácio ao Tractatus logico-philosophicus).
Wittgenstein deseja afastar qualquer tipo de subjetivismo. Esta fora, decerto, a mesma intenção de Descartes, cujo psicologismo fora denunciado por Kant, que buscou pensar categorias subjetivas a priori ao sujeito empírico, isto é, categorias pertencentes ao sujeito transcendental, logo, objetivas. Wittgenstein vira, no entanto, nas faculdades subjetivas do conhecimento kantiano, ainda demasiado subjetivismo ("a teoria do conhecimento é a teoria da psicologia". Tractatus logico-philosophicus, §4.1121). Uma objetividade capaz de dar à filosofia a neutralidade e o rigor de uma ciência, só seria possível se ela tiver como tarefa ater-se à análise lógica das proposições. Tudo o mais seria psicologismo ou metafísica, para além de seus limites. Os limites da filosofia seriam dados então pelas condições lógicas de possibilidade de uma representação proposicional.
Kant criou a idéia de transcendental para responder à questão do conhecimento objetivo possível. Husserl manteve esta idéia, buscando porém na consciência a origem transcendental das idéias, em uma co-determinação entre idéia e consciência — enquanto que Kant dera às categorias do entendimento a precedência sobre tanto os objetos (a experiência) quanto o conhecimento que se possa ter destes (enquanto fenômenos). Já para Wittgenstein, o sujeito — quer seja o eu cartesiano, o sujeito transcendental kantiano, ou a consciência husserliana — não interessa para os fins filosóficos de estabelecimento das possibilidades, não mais portanto do conhecimento, mas da expressão dos pensamentos (o conhecimento cabendo então a outras disciplinas que não a filosofia): o transcendental, para Wittgenstein, é ainda tão metafísico e tão dissimuladamente psicológico, quanto sempre fora toda a tradição filosófica criticada pelo racionalismo transcendental de Kant (mas a denúncia se estende também a Descartes e a Husserl). "O objetivo da filosofia é o esclarecimento lógico dos pensamentos. [...] Cumpre à filosofia tornar claros e delimitar precisamente os pensamentos, antes como que turvos e indistintos" (§4.112). Nem idéias inatas — seriam "conteúdos", sendo que "na proposição está contida a forma de seu sentido, mas não o conteúdo" (§3.13) —, nem categorias do entendimento; o único a priori para Wittgenstein é a lógica. "A lógica ser a priori, consiste em que nada pode ser pensado ilogicamente" (§5.4731). Superar a metafísica seria então, para Wittgenstein, deixar de lado, como não concernentes à filosofia, tudo o que escapa à análise proposicional, à lógica formal, às "leis lógicas" (§3.032).
Wittgenstein estabelece então que a filosofia deve delimitar o pensável, que corresponde ao dizível, e com isso delimitar o que não se pode pensar, e portanto não se pode dizer (§4.114 e4.115). O pensável e o dizível correspondem ao que pode ser expresso logicamente, segundo o formalismo lógico. O que a este escapa, o que do mundo escapa ao formalismo proposicional — a saber: a ética, a estética e o Místico –, não pode ser pensado nem dito corretamente. As proposições que concernem à vida e seus problemas — éticos, estéticos e místicos — serão necessariamente ilógicas, não devendo portanto incluirem-se no campo de objetos da filosofia. São questões irrelevantes para a filosofia (§4.1121). Podem ser mostradas, mas não podem ser ditas: "o que pode ser mostrado não pode ser dito" (§4.1212).
Entenda-se: não podem ser ditas por meio de símbolos, sinais, funções e operações lógicas, na proposição, na forma lógica da representação (§4.1212). "É a marca característica particular das proposições lógicas que sua verdade se possa reconhecer no símbolo tão somente, e esse fato contém em si toda a filosofia da lógica" (§6.113), ou ainda: "[...] sem nos preocuparmos com um sentido e um significado, constituímos a proposição lógica a partir de outras segundo meras regras notacionais" (§6.126).
A filosofia deve se ocupar de leis, e estas se enquadram necessariamente na lógica. "E fora da lógica é tudo um acaso" (§6.3). "[...] Todo acontecer e ser-assim é casual. O que o faz não-casual não pode estar no mundo" (§6.41). Todo acontecer é casual, o mundo independe de minha vontade (§6.373). O mundo em seu acontecer é casual, mas a lógica que expressa os fatos é necessária. A ética, os valores, estão fora do mundo da lógica e ao mesmo tempo inserem-se no mundo do acontecer, são intrínsecos às próprias ações (§6.422). As leis éticas são transcendentais como a lógica – trata-se de leis, e o acontecer é casual. Porém, a ética como o que é imanente às próprias ações, escapa às leis, tanto às da lógica quanto às da própria ética. De modo que a ética não se deixa exprimir duplamente: por transcender tanto o mundo em seu acontecer (não há valor no acontecer), quanto o mundo lógico (não há valor na lógica).
Ou seja, o acontecer é casual, não necessário. A lógica é necessária. "É por isso que tampouco pode haver proposições na ética", ou ainda: é por isso que "proposições não podem exprimir nada de mais alto" (§6.42): tudo o que há de mais alto escapa aos fatos e à lógica, ou ainda: escapa à lógica expressável dos fatos. E no entanto pertence à vida.
Assim, "é claro que a ética não se deixa exprimir [...] (Ética e estética são uma só)" (§6.421). Não se deixar exprimir significa, para Wittgenstein, o mesmo que não se deixar exprimir logicamente. E é neste sentido que "mesmo que todas as questões científicas possíveis [isto é, lógicas] tenham obtido resposta, nossos problemas de vida não terão sido sequer tocados" (§6.52).
Os problemas da vida – o que há de alto na vida – não se deixam exprimir logicamente. Não podemos dizê-los por meio da linguagem lógica, apenas mostrá-los, por meio de algum outro tipo de linguagem. A ética, que é segundo Wittgenstein o mesmo que a estética, assim como o Místico — "Há por certo o inefável. Isto se mostra, é o Místico."(§6.522) —, embora constituam os problemas da vida, o que nela há de mais alto, não concernem à filosofia.
"O método correto da filosofia seria propriamente este: nada dizer, senão o que se pode dizer [logicamente]; e então, sempre que alguém pretendesse dizer algo de metafísico, mostrar-lhe que não conferiu significado a certos sinais em suas proposições" (§6.53). A ética, a estética e o Místico, se apresentam assim como questões metafísicas, dizem respeito ao que é casual, transcendem ao mesmo tempo o acontecer e a lógica. Escapam ao que se pode dizer segundo o método lógico, "o único rigorosamente correto" (§6.53).
Opõem-se assim, em Wittgenstein como, aliás, em toda a tradição filosófica dita racionalista, o que concerne à vida, por um lado, e o que se considera formal e logicamente correto, por outro.
Wittgenstein fecha seu Tractatus com duas proposições enigmáticas:
" Minhas proposições são elucidativas pelo fato de que aquele que me entende acaba por reconhecê-las como contra-sensos, após ter se alçado através delas – por elas – para além delas. (Deve-se, por assim dizer, jogar fora a escada após ter-se subido por ela.) Deve-se superar essas proposições, e então se verá o mundo corretamente. (§6.54)
"Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar." (§7)
Sobre aquilo de que não se pode falar logicamente, deve-se calar. Calar para não falar da vida como se ela se submetesse às leis da enunciação lógica. Calar após ter-se jogado fora a lógica e com ela a tentativa inviável de exprimir-se a metafísica.
Assim como Kant, Wittgenstein estabelece, agora na linguagem, os limites da razão, do pensar e do dizer, para libertar, não mais a crença, mas a linguagem, para que possa "mostrar" (liberta das exigências de seus pressupostos logico-científicos) a ética, a estética, o inefável e o Místico.
Mas ao mesmo tempo, mostrar o acontecer, tomado então como puro acaso: se as coisas simplesmente são, devo calar-me diante delas. Apenas, isto não será mais filosofia. Devo "dizer" apenas a verdade científica, segundo os rigores do método lógico – e esta é a função e os limites da filosofia. Em Kant, tratou-se de determinar os limites da razão pura, sendo que os da filosofia eram ainda os de estabelecer uma razão prática e um juízo estético e teleológico; com Wittgenstein, os limites da filosofia são apenas os da razão científica: quanto à ética, à estética e à crença, que podem apenas ser mostrados (por algum tipo de linguagem não proposicional, mas não pela filosofia, cuja linguagem deve ser lógica), é preciso calar.
Enquanto Kant propôs um Tu-deves categórico para a ação moral, categorias para o conhecimento e uma teleologia estética, Wittgenstein afirmou o acaso do mundo, sua leitura possível pela lógica, transcendental ao mundo do acaso e do acontecer, uma ética e uma estética intrínsecas ao acontecer, negando a existência de um sujeito do conhecimento. O transcendental, para Wittgenstein, indica, não mais a razão que determina o conhecimento, se impõe à moral e guia o juízo estético, mas simplesmente o fato de, por um lado a lógica, por outro lado a ética, a estética e o místico, estarem para além do acontecer, que simplesmente se dá, sem teleologia alguma.
No entanto, tal qual Kant, Wittgenstein mantém a separação entre o que se pode pensar e dizer (em Kant, o que se pode conhecer), e o que se mantém como questão inefável, a saber, a vida do dia-a-dia, onde se misturam misticismo, crença, e simples acontecer. A filosofia, assim, abre mão de qualquer conhecimento da vida, e se limita a analisar proposições lógicas, às quais escapa simplesmente a vida, seus problemas e o que há nela de mais alto. Por um lado, quanto à vida, resta vivê-la em silêncio; por outro, à filosofia, legislar, analisar, dizer o verdadeiro e o falso. Uma vida, enfim, cindida em dois, entre uma filosofia "científica" e uma prática místico-casual inefável, sem leis e sem lógica.
A intenção de Wittgenstein fora a de buscar a verdade ascética, pretensamente procurada pela metafísica, no único lugar e da única maneira que ela pode ser encontrada: na linguagem, sob a forma lógica. Pois, afinal, somente aí ela se apresentaria distante o bastante do empírico; somente na linguagem a verdade poderia se apresentar de maneira incondicional e absoluta, seguindo leis fixas, rigorosa e invariável. Se foram estas as metas da filosofia através da metafísica, de buscar estes ideais ascéticos, então na linguagem, somente na linguagem, e não na metafísica, a filosofia poderá obtê-la. Verdade, certeza, clareza, não paradoxo, não equivocidade, não tempo – não encontraremos nunca estes fatores, objetos de desejo da filosofia, no mundo, nem tampouco no humano. Mas sim na linguagem, ascese até mesmo da própria mente humana. Se é na linguagem lógica que a filosofia encontra suas condições de possibilidade de realizar seu ideal de perfeição, suas metas por tanto tempo buscadas de forma vã na metafísica ou no sujeito, a filosofia deve portanto limitar-se ao estudo lógico da linguagem. Não se dobram à lógica nem a ética (ou a estética; são um só) em seu sentido imanente ao mundo do acontecer, puro acaso, nem a ética em seu sentido, subjetivo, de valoração; nem tampouco o místico. Em suma, nem a vida – casual –, nem os valores – subjetivos –, nem o místico – inefável. De modo que à filosofia cabe, unicamente, o que se limita à verdade da análise lógica em seu sentido formal.
4. Heidegger: do transcendental ao imanente
Em Meu caminho de pensamento e a fenomenologia, Heidegger descreve como e por quê se afastou da fenomenologia, a partir de um incômodo gerado por uma contradição interna da obra Pesquisas lógicas de seu então futuro mestre Husserl. O primeiro argumento do livro (em seu tomo I, de 1900) afirma que uma teoria do pensamento e do conhecimento não pode se fundar sobre a psicologia, mas sim sobre a lógica – neste ponto, em acordo com Kant e ainda mais com Wittgenstein. No segundo argumento (tomo II da obra, de 1901), no entanto, descreve os atos essenciais da consciência na edificação do conhecimento, logo, escreve Heidegger, retornando, num certo sentido e apesar de tudo, à psicologia, perguntando-se: "em que consiste o próprio da fenomenologia, posto que ela não é nem uma lógica, nem uma psicologia?" E responde: a "subjetividade transcendental" (que Husserl preconizava, em prosseguimento à filosofia kantiana) busca explicar "a estrutura dos atos vividos", assim como "os objetos vividos nos atos de consciência, do ponto de vista de sua objetividade" determinada pela própria consciência (objetividade "transcendental", determinada pelo sujeito do conhecimento, ou, pela fenomenologia, pela consciência). Concluindo, por fim, dezenove anos mais tarde: "o que, para a fenomenologia dos atos de consciência, se realiza pelo manifestar do fenômeno, é pensado por Aristóteles e em todo o pensamento dos gregos como ???????, como o aberto sem retraimento da presença, seu desvelamento, seu se mostrar." (p.332) E sendo assim, continua Heidegger, como e de onde se determina a questão própria da filosofia? "Trata-se da consciência e de sua objetividade, ou do ser do ente em seu não retraimento e em seu retraimento?"
Heidegger enfatizou assim a questão do ser e de seu aparecer ôntico (como ente), mais que a da "cientificidade lógica" de uma pretensa filosofia universal. E transformou então o não-psicologismo da consciência transcendental (ou do sujeito transcendental) no Dasein: o ser se dá, em seu retraimento e em seu não retraimento, para a, na, pre-sença do ser do homem.
Mas algo de mais fundamental mudou na passagem da consciência para o Dasein: precisamente a questão da pretensão ou do desejo de universalidade, de assepsia do pensamento, de ascese mental, de busca da verdade contra o corpóreo, o material, o temporal. Pois o Dasein heideggeriano incorpora justamente o tempo: não há ser, nem tampouco expressão do ser, que não seja no tempo. "A questão diretriz da filosofia se manteve, em todos os tempos, sob as figuras mais diversas, como a questão do ser do ente", nota, observando que a fenomenologia estancou-se em uma posição filosófica determinada, "aquela que se desenhava desde Descartes, Kant e Fichte. A historicidade do pensamento se lhe manteve estranha (ver o tratado de Husserl A filosofia como ciência rigorosa, de 1911)" (Carta a Richardson, p.344).
Em suma, a crítica de Heidegger à fenomenologia versa sobre a separação que esta intenta operar, em prosseguimento às filosofias de Descartes e Kant, entre um mundo verdadeiro da ciência, concebida como universal e portanto a-histórica; e o mundo real, da vida, do tempo, da historicidade do ser, isto é, do desenrolar do ser em suas múltiplas versões ônticas. Ou seja, a crítica consiste em que Descartes, Kant e Husserl, ao deixarem de lado o Tempo e a historicidade, em busca de uma verdade imutável e fixa, afastaram-se da verdade, no sentido que afastaram-se do ser, optando por substituir este por uma de suas multiplamente possíveis versões. Cada filósofo apresentava sua versão, ôntica pois fixava num pretenso desvelar "científico" o que é na verdade eclodir, contínuo desabrochar, contínua imanência criadora – desvelamento interminável e não constituído por partes pois todo desvelar mantém o velamento do desvelado. Todo desvelamento positivo, analítico, não é senão, ou bem equívoco e ilusão (pois se pensou desvelar o que não se desvela, por ser no tempo, por ser origem e gênese imanente do tempo, abertura ao tempo e ao espaço), ou bem limitado a uma técnica que ignora, deliberadamente ou não, o que importa compreender: o ser, no qual e a partir do qual todo ente, e portanto nós próprios e o próprio pensar, somos. A vida. O mundo do acontecer.
No lugar do transcendental, que dizia o "puro", depurado da matéria, Heidegger pôs o ser, que só é ser dos entes e do ente em geral, correspondendo portanto a um sentido (uma destinação, um viver) do que é necessariamente material. Não se trata mais, portanto, de um subjetivo universal e "puro" determinando a objetividade do conhecimento, mas de um ser (verbal) que inclui o indivíduo e as coisas e possibilita (justamente por incluir tanto um quanto o outro) o próprio conhecimento.
À filosofia, segundo Heidegger, caberá então a questão da verdade do ser; não mais do sujeito ou das coisas: estes, entes, têm sua verdade no ser, pois que são. A verdade do que é aparentemente imutável – o ente em sua aparência inteligível – não se encontra nesta objetivação subjetiva (ou em alguma subjetivação objetivante), mas no inefável do ser, que se expressa pelo ente, se nele estamos à escuta do ser, abertos a esta compreensão. A verdade, portanto, escapará sempre à técnica e à lógica, que pretendem fixar idealmente o ser, torná-lo ente, ontificá-lo, reduzi-lo. Mais, esta segurança que a técnica e a lógica obtêm mostra-se ilusória, pois que tanto uma quanto a outra existem a partir do ser, de modo que procurar dissociar-se dele, na intenção de desvelar inteiramente sua verdade, ainda que por meio de um puro formalismo, se configura em uma tentativa necessariamente frustrada.
"A verdade é o combate originário onde se conquista o aberto no qual se mantém em retraimento tudo o que se mostra e se erige como ente" (A origem da obra de arte, p.67). O que transcende o ôntico expressa o ser. Transcende o ente pelo fato de expressar o ser. Dar sentido, dar valor; a ética, a estética, o místico; não são postos pelo homem no mundo; não determinam o ser, mas sim nele se inserem: são maneiras de se abrir ao ser, de compreendê-lo, de favorecer a sua eclosão. A metafísica, portanto, segundo Heidegger, consiste no esquecimento do ser, que se dá quando tomamos um ente pelo ser, uma verdade ôntica pela verdade ontológica. Metafísicas, portanto, são a técnica e a lógica; não ética, nem a estética, nem o místico. A terra, morada dos mortais, indica a transcendência do homem; o céu, morada das divindades, indica o ser – eterno, pois que é eterno eclodir – que se expressa no homem e no ente em geral.
A linguagem, então, não servirá mais para enunciar (ou determinar) uma verdade "pura", externa ou bem ao sujeito ou bem às coisas. Ao contrário, ela serve para auxiliar e promover a compreensão do desabrochar contínuo do ser, do pôr-se em movimento junto a ele. A linguagem privilegiadamente filosófica será, assim, a que se aproxima da poesia – ou a que aproxima o homem da poesia –, pois ao ‘sugerir’ nos envia ao âmago do ser e do tempo que nos atravessa, para além dos significados que congelam o que é contínuo aparecer (pôr-se em presença). "A essência da língua não se esgota na significação" (Por quê os poetas?, p. 373) – "a poesia é a potência fundamental da habitação humana" (O homem habita como poeta, p.244).
Para compreender a essência do ser, é preciso e-mocionar-se, co-mover-se, mover-se, pôr-se em movimento, junto à vida, junto ao ser. "A auto-imposição da objetivação técnica é a constante negação da morte" (Por quê os poetas?, p.364); busca-se o positivismo para se negar a morte, e "por esta negação, a morte se torna ela própria algo de negativo" (idem). Mata-se o movimento, o viver, para, na aparente eternidade das leis lógicas, negar-se a morte. Morre-se, para negar a morte; deixa-se de compreender a vida, para se consolar com a perpetuidade de uma técnica infalível, de uma verdade desvelada para sempre, imutável, imperecível.
5. A linguagem como problema filosófico e o papel da filosofia: dizer e mostrar/calar x desvelar e desvelar/velar.
Wittgenstein e Heidegger, nascidos no mesmo ano (1889), têm na teoria crítica kantiana a origem de suas respectivas filosofias. Ambos procuraram, assim como Kant, ultrapassar a tradição metafísica da filosofia. Para isto, um e outro definiram uma meta para a filosofia e estabeleceram seu estatuto e seus limites; assim como estabeleceram a função da linguagem como instrumento de expressão filosófica frente a estes limites e a esta meta. E se opuseram em cada um destes fatores, diametralmente, ponto a ponto.
Tanto Heidegger quanto Wittgenstein, assim como Kant, viram a pretensão filosófica de enunciar a verdade do mundo, do indivíduo, de Deus, como extrapolando os limites da filosofia. Ambos, no entanto, mantiveram para a filosofia a função de dizer a verdade.
Porém Wittgenstein, seguindo Kant, continuou atribuindo à filosofia a tarefa de dizer a verdade de modo positivo, objetivado, segundo uma certeza racional, puramente intelectual, "puro" no sentido de purificado das sensações, dos afetos, do corpo, do tempo e da vida, associando assim a verdade à lógica formal e à técnica. Como Kant, resolveu então cindir o mundo em dois: um, o da lógica, e outro, o da prática e do valor – do acontecer, da ética, da estética e do místico. Visou, assim, separar a metafísica da filosofia, tomando portanto como metafísico tudo o que foge à lógica formal. Associou o dizer ao dizer lógico, e a estes a filosofia. Delimitou o estatuto da filosofia como sendo o da lógica; e estabeleceu então a linguagem filosófica como a da lógica formal, e sua função a de dizer a verdade da lógica. Para além, portanto, do que, em Kant, apesar dos esforços deste, seria ainda um psicologismo. Não há verdade não só do mundo do acontecer, da ética, da estética e do místico, como tampouco do sujeito – todos estes ilógicos e paradoxais. A única verdade possível é a do formalismo lógico; eis a única possibilidade de se pensar corretamente, certeiramente. Enfim a verdade que escapa ao tempo e à morte, à vida e ao acaso. Esta, verdade proposicional, a linguagem pode e deve dizer. O acontecer, a ética, a estética e o místico, a linguagem, não mais lógica, não mais filosófica (não mais filosofia, pois que não mais verdadeira), pode apenas mostrar, não mais dizer. A respeito destes, portanto, a filosofia deve calar. Ou ainda: caso não cale, não somente tratar-se-á de metafísica, como também e sobretudo, legisla Wittgenstein, não se tratará simplesmente mais de filosofia.
Já para Heidegger – se distanciando de Husserl e, através deste, de Kant –, a verdade não é mais a verdade do sujeito, do conhecimento ou da consciência, nem tampouco das coisas, do mundo ou do acontecer. É, porém, o próprio acontecer, o próprio vir à presença – no mundo, no indivíduo, nas coisas. A certeza, a objetivação, a técnica, portanto, se constituem em tentativas de fixar o que não se fixa, de congelar o que é em fluxo: o próprio aparecer. O ser. O ato e o fato de que as coisas são – no sentido verbal do termo. O que para Wittgenstein – e antes dele Descartes e Kant – era visto como verdade, para Heidegger é uma onticização da verdade, isto é, uma tentativa de separar do mundo e da vida (separar do ser) o que se constitui em um desabrochar contínuo. Em seus termos: uma tentativa (necessariamente frustrada) de desvelamento total e totalizante da verdade. Esta, porém, somente existe em seu contínuo eclodir, no tempo, se desvelando enquanto velada; se desvelando no ente como ser, que o ente é. Metafísica é então a pretensão (cientificista) de desvelamento absoluto, positivo, do ser. São metafísicas a lógica e a moral, mas não a ética, a estética e o místico, se estes não se subordinam à luz ontificadora da razão objetivadora, calculante.
A filosofia se desenha então para Heidegger como o pensamento da verdade do ser, um abrir-se reflexivamente ao ser. A linguagem tem aí a função de favorecer ao leitor, ao ouvinte, a eclosão do ser em seu pensamento e em seu viver. A função poética, de poiesis, criação: a expressão do ser na própria linguagem e por conseguinte no indivíduo e nas coisas. A expressão do ser no ente.
Para Wittgenstein, a verdade está no transcendental lógico, na pureza das operações intelectivas; no controle e na fuga do acaso, que a linguagem lógico-formal pode propiciar. A linguagem filosófica é lógica; e sobre o que a lógica não consegue impor o seu domínio – os problemas da vida, o acontecer, a ética, a estética e o místico –, esta deve se calar. Estes não são portanto tomados como problemas filosóficos (cabendo à filosofia apenas a análise proposicional). A linguagem que aborde estes temas não será lógica, e portanto, segundo a lei wittgensteiniana, não merecerá o estatuto de filosofia.
Para Heidegger, a verdade está no ser, e portanto no ente, no que este é (no sentido verbal). A metafísica tem como meta conhecer a verdade, mas apenas desvela ilusoriamente o ente (a verdade é a do ser). No entanto, a metafísica, na compreensão heideggeriana, não perde o estatuto de filosofia; apenas é uma filosofia que errou seu alvo: buscou o ser, o aparecer do fenômeno, mas apenas encontrou o ente, a aparência do fenômeno. Na intenção de fixar o ontológico, que é no tempo, apenas perpetuou o ôntico.
Ambos, Wittgenstein e Heidegger, falam da verdade. Para aquele, pura clareza, desvelamento absoluto; para este, um desvelar que guarda em si o velar, mesmo em seu próprio desvelamento.
Wittgenstein toma assim a verdade como excludente, descreditando a filosofia de linguagem não lógico-formal como não filosofia, interditando a filosofia de tratar senão do que disser respeito à análise proposicional; enfim, de dizer senão o que ele, Wittgenstein, determinou. Pois caso contrário, estar-se-á fora da verdade. Fora da lei. Não diga; mostre; mas saiba que não será filosofia.
Heidegger inclui também o que considera ôntico no ser. Todo esquecimento do ser se dá no ser. Não há um fora da verdade. A verdade não é excludente, nem tampouco tem a ilusão – ôntica –, ou a pretensão – negadora da morte e portanto da vida –, de ser lei. Analisa as demais filosofias e expõe sua crítica, sem no entanto excluí-las, sem a presunção de retirar-lhes o estatuto de filosofia. Sem o medo (e o incômodo) da diferença e da pluralidade, do diferente, do tempo e do devir, do perecimento e da transformação; medo que leva ao desejo (por reatividade e defesa) de legislar – no fim das contas, porém, contra a compreensão (racional – uma razão espinosiana) da própria vida onde, queiramos ou não, somos e vivemos, na matéria e no tempo. Medo do desamparo, gerando uma nova crença, um novo totalitarismo, e uma nova nova interdição ao pensar livre e à pluralidade.
Autor: André Martins - Doutor em Filosofia pela Université de Nice, França. Professor Adjunto da UFRJ.
Artigo apresentado no VIII Encontro Nacional da Anpof, realizado em Caxambú, MG, de 26 a 29 de setembro de 1998. Publicado na Revista Ethica, v.5, n.2. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Filosofia Universidade Gama Filho 1998 p. 41-58.
E-mail - andremar@nesc.ufrj.br
Fonte: http://www.saude.inf.br/filosofia/funcaodalinguagem.htm
Bibliografia
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–––––. "L’homme habite en poète" (1954) in Essais et conférences. Trad. André Préau. Paris: Gallimard, 1980.
–––––. "L’origine d’oeuvre d’art" e "Pourquoi des poètes?" (1949) in Chemins qui ne mènent nulle part. Trad. Wolfgang Brokmeier. Paris: Gallimard, 1988.
Husserl, E. (1859-1938) La crise des sciences européennes et la phénoménologie transcendantale. (1937) Trad. Gérard Guest.
Kant, I. (1724-1804) Critique de la raison pure. (1781) Trad. A. Delamare e F. Marty. Paris: Gallimard, 1992.
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––––––. Critique de la faculté de juger. (1790) Trad. A. Philonenko. Paris: J.Vrin, 1989.
Martins, A. Le réel et l’illusion: pour une ontologie non métaphysique. Lille: ANRT, 1996.
Wittgenstein, L. (1889-1951) Tractatus logico-philosophicus. (1922) Trad. Luis Henrique Lopes dos Santos. 2a ed. São Paulo: Edusp, 1994; Tratado lógico-filosófico. Trad. M.S. Lourenço. 2a ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.
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