sábado, 5 de julho de 2008
A Função da Linguagem e o Estatuto da Filosofia Segundo Wittgenstein e Heidegger
André Martins
Resumo
Exponho neste trabalho uma análise comparativa da função da linguagem e do estatuto da filosofia em Wittgenstein e Heidegger, apresentando suas propostas como diametralmente opostas, porém a partir de uma equivalente separação inicial - entre o que pode ser dito, ou a tentativa de desvelamento total do ser pela linguagem, e o que só pode ser mostrado, ou o que se desvela como velado. Em seu Tractatus Logico-Philosophicus (1922), Wittgenstein (1889-1951) apresenta sua proposta como a de "traçar um limite para a expressão dos pensamentos", inserindo-se assim na tradição crítica da filosofia moderna, e concluindo que este limite "só poderá ser traçado na linguagem", de modo que "o que estiver além do limite será simplesmente um contra-senso". O que está além desta linguagem passível de notação lógico-formal será, ainda segundo Wittgenstein, a ética, a estética e o místico. Heidegger (1889-1976) estabelece uma separação análoga, entre poesia e razão calculante, porém, contrariamente a Wittgenstein, associa à primeira, e não à segunda, o pensamento e a razão filosófica.
1. Kant: a tradição crítica da filosofia
Quais os limites da filosofia? Ao se propor a estabelecer estes limites, Kant quis mostrar que a filosofia teve, até então, a pretensão de conhecer objetos que, por serem metafísicos, escapavam aos limites da razão. O que se pode conhecer, quais as condições de possibilidade do conhecimento? Com estas questões, Kant inaugurava sua teoria crítica, visando ultrapassar a metafísica. A resposta que propusera fora que os limites da razão, e portanto do conhecimento e, assim, da filosofia, são dados pela experiência e pelo entendimento, ou, mais precisamente, pelas categorias a priori do entendimento que põem na experiência o que dela o sujeito pode então conhecer. Kant criou, assim, a idéia de um sujeito transcendental, o sujeito do conhecimento, transcendental pois que transcende o sujeito empírico, o sujeito "subjetivo", permitindo então a todo sujeito um conhecimento objetivo, verdadeiro, pois que puro, isto é, prévio ao indivíduo psicológico que conhece.
A teoria crítica kantiana gerou, entre outras filosofias, duas que, embora contem com esta origem comum, em muito diferem entre si: a fenomenologia e a filosofia analítica.
2. Husserl: fenomenologia transcendental
Husserl critica Kant por ter sucumbido ao ‘objetivismo’, desprezando a subjetividade originária das próprias fontes de sentido, que subsistem ao mundo antes de qualquer ciência:
"Dispomos, é verdade, a partir de Kant, de uma teoria do conhecimento que nos é própria, e, por outro lado, há bem aí a psicologia, que, em suas pretensões de atingir a exatidão das ciências da natureza, gostaria muito de ser a ciência universal e fundamental da mente. No entanto, nossa esperança em uma racionalidade efetiva, em um efetivo esclarecimento neste domínio, se encontra, aqui como em toda parte, frustrada. [...]Pelo objetivismo que é o seu, a psicologia não saberia receber por tema a alma, isto é, simplesmente, o eu, aquele que age e sente, em todo o sentido que é propriamente e essencialmente o seu. [...] É ainda a mente que é capaz de exercer o conhecimento de si mesmo, e enquanto espírito científico, um conhecimento científico de si mesmo." (Husserl, E."La crise des sciences européennes et l’esprit de la philosophie" in La crise des sciences européennes et la phénoménologie transcendentale. 1935-37. p. 342-346.)
Husserl propõe assim um retorno a Descartes como resposta às questões kantianas: os limites da filosofia estão no ego, na consciência, é nela que se encontra a essência ideal, eidética (de ?????, idéia), das coisas. Fenômeno é portanto tudo aquilo que se dá, não ao sujeito transcendental kantiano, mas à consciência, ao ego cogito, ao eu transcendental. Acredita que há uma correlação, uma imanência da consciência e das coisas, de modo que não há coisas sem consciência nem consciência sem coisa — toda consciência é consciência de alguma coisa, o que define o que Husserl chamou de intencionalidade: a experiência do mundo se dá no interior da consciência do sujeito transcendental husserliano, concebido como ego absoluto.
3. Wittgenstein: a lógica da filosofia
Diante da mesma questão crítica kantiana, a resposta de Wittgenstein fora bem outra. Wittgenstein buscou um limite para a filosofia. Porém, não mais um limite para o conhecimento, mas sim "para a expressão dos pensamentos", concluindo que este limite "só poderá ser traçado na linguagem" (prefácio ao Tractatus logico-philosophicus).
Wittgenstein deseja afastar qualquer tipo de subjetivismo. Esta fora, decerto, a mesma intenção de Descartes, cujo psicologismo fora denunciado por Kant, que buscou pensar categorias subjetivas a priori ao sujeito empírico, isto é, categorias pertencentes ao sujeito transcendental, logo, objetivas. Wittgenstein vira, no entanto, nas faculdades subjetivas do conhecimento kantiano, ainda demasiado subjetivismo ("a teoria do conhecimento é a teoria da psicologia". Tractatus logico-philosophicus, §4.1121). Uma objetividade capaz de dar à filosofia a neutralidade e o rigor de uma ciência, só seria possível se ela tiver como tarefa ater-se à análise lógica das proposições. Tudo o mais seria psicologismo ou metafísica, para além de seus limites. Os limites da filosofia seriam dados então pelas condições lógicas de possibilidade de uma representação proposicional.
Kant criou a idéia de transcendental para responder à questão do conhecimento objetivo possível. Husserl manteve esta idéia, buscando porém na consciência a origem transcendental das idéias, em uma co-determinação entre idéia e consciência — enquanto que Kant dera às categorias do entendimento a precedência sobre tanto os objetos (a experiência) quanto o conhecimento que se possa ter destes (enquanto fenômenos). Já para Wittgenstein, o sujeito — quer seja o eu cartesiano, o sujeito transcendental kantiano, ou a consciência husserliana — não interessa para os fins filosóficos de estabelecimento das possibilidades, não mais portanto do conhecimento, mas da expressão dos pensamentos (o conhecimento cabendo então a outras disciplinas que não a filosofia): o transcendental, para Wittgenstein, é ainda tão metafísico e tão dissimuladamente psicológico, quanto sempre fora toda a tradição filosófica criticada pelo racionalismo transcendental de Kant (mas a denúncia se estende também a Descartes e a Husserl). "O objetivo da filosofia é o esclarecimento lógico dos pensamentos. [...] Cumpre à filosofia tornar claros e delimitar precisamente os pensamentos, antes como que turvos e indistintos" (§4.112). Nem idéias inatas — seriam "conteúdos", sendo que "na proposição está contida a forma de seu sentido, mas não o conteúdo" (§3.13) —, nem categorias do entendimento; o único a priori para Wittgenstein é a lógica. "A lógica ser a priori, consiste em que nada pode ser pensado ilogicamente" (§5.4731). Superar a metafísica seria então, para Wittgenstein, deixar de lado, como não concernentes à filosofia, tudo o que escapa à análise proposicional, à lógica formal, às "leis lógicas" (§3.032).
Wittgenstein estabelece então que a filosofia deve delimitar o pensável, que corresponde ao dizível, e com isso delimitar o que não se pode pensar, e portanto não se pode dizer (§4.114 e4.115). O pensável e o dizível correspondem ao que pode ser expresso logicamente, segundo o formalismo lógico. O que a este escapa, o que do mundo escapa ao formalismo proposicional — a saber: a ética, a estética e o Místico –, não pode ser pensado nem dito corretamente. As proposições que concernem à vida e seus problemas — éticos, estéticos e místicos — serão necessariamente ilógicas, não devendo portanto incluirem-se no campo de objetos da filosofia. São questões irrelevantes para a filosofia (§4.1121). Podem ser mostradas, mas não podem ser ditas: "o que pode ser mostrado não pode ser dito" (§4.1212).
Entenda-se: não podem ser ditas por meio de símbolos, sinais, funções e operações lógicas, na proposição, na forma lógica da representação (§4.1212). "É a marca característica particular das proposições lógicas que sua verdade se possa reconhecer no símbolo tão somente, e esse fato contém em si toda a filosofia da lógica" (§6.113), ou ainda: "[...] sem nos preocuparmos com um sentido e um significado, constituímos a proposição lógica a partir de outras segundo meras regras notacionais" (§6.126).
A filosofia deve se ocupar de leis, e estas se enquadram necessariamente na lógica. "E fora da lógica é tudo um acaso" (§6.3). "[...] Todo acontecer e ser-assim é casual. O que o faz não-casual não pode estar no mundo" (§6.41). Todo acontecer é casual, o mundo independe de minha vontade (§6.373). O mundo em seu acontecer é casual, mas a lógica que expressa os fatos é necessária. A ética, os valores, estão fora do mundo da lógica e ao mesmo tempo inserem-se no mundo do acontecer, são intrínsecos às próprias ações (§6.422). As leis éticas são transcendentais como a lógica – trata-se de leis, e o acontecer é casual. Porém, a ética como o que é imanente às próprias ações, escapa às leis, tanto às da lógica quanto às da própria ética. De modo que a ética não se deixa exprimir duplamente: por transcender tanto o mundo em seu acontecer (não há valor no acontecer), quanto o mundo lógico (não há valor na lógica).
Ou seja, o acontecer é casual, não necessário. A lógica é necessária. "É por isso que tampouco pode haver proposições na ética", ou ainda: é por isso que "proposições não podem exprimir nada de mais alto" (§6.42): tudo o que há de mais alto escapa aos fatos e à lógica, ou ainda: escapa à lógica expressável dos fatos. E no entanto pertence à vida.
Assim, "é claro que a ética não se deixa exprimir [...] (Ética e estética são uma só)" (§6.421). Não se deixar exprimir significa, para Wittgenstein, o mesmo que não se deixar exprimir logicamente. E é neste sentido que "mesmo que todas as questões científicas possíveis [isto é, lógicas] tenham obtido resposta, nossos problemas de vida não terão sido sequer tocados" (§6.52).
Os problemas da vida – o que há de alto na vida – não se deixam exprimir logicamente. Não podemos dizê-los por meio da linguagem lógica, apenas mostrá-los, por meio de algum outro tipo de linguagem. A ética, que é segundo Wittgenstein o mesmo que a estética, assim como o Místico — "Há por certo o inefável. Isto se mostra, é o Místico."(§6.522) —, embora constituam os problemas da vida, o que nela há de mais alto, não concernem à filosofia.
"O método correto da filosofia seria propriamente este: nada dizer, senão o que se pode dizer [logicamente]; e então, sempre que alguém pretendesse dizer algo de metafísico, mostrar-lhe que não conferiu significado a certos sinais em suas proposições" (§6.53). A ética, a estética e o Místico, se apresentam assim como questões metafísicas, dizem respeito ao que é casual, transcendem ao mesmo tempo o acontecer e a lógica. Escapam ao que se pode dizer segundo o método lógico, "o único rigorosamente correto" (§6.53).
Opõem-se assim, em Wittgenstein como, aliás, em toda a tradição filosófica dita racionalista, o que concerne à vida, por um lado, e o que se considera formal e logicamente correto, por outro.
Wittgenstein fecha seu Tractatus com duas proposições enigmáticas:
" Minhas proposições são elucidativas pelo fato de que aquele que me entende acaba por reconhecê-las como contra-sensos, após ter se alçado através delas – por elas – para além delas. (Deve-se, por assim dizer, jogar fora a escada após ter-se subido por ela.) Deve-se superar essas proposições, e então se verá o mundo corretamente. (§6.54)
"Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar." (§7)
Sobre aquilo de que não se pode falar logicamente, deve-se calar. Calar para não falar da vida como se ela se submetesse às leis da enunciação lógica. Calar após ter-se jogado fora a lógica e com ela a tentativa inviável de exprimir-se a metafísica.
Assim como Kant, Wittgenstein estabelece, agora na linguagem, os limites da razão, do pensar e do dizer, para libertar, não mais a crença, mas a linguagem, para que possa "mostrar" (liberta das exigências de seus pressupostos logico-científicos) a ética, a estética, o inefável e o Místico.
Mas ao mesmo tempo, mostrar o acontecer, tomado então como puro acaso: se as coisas simplesmente são, devo calar-me diante delas. Apenas, isto não será mais filosofia. Devo "dizer" apenas a verdade científica, segundo os rigores do método lógico – e esta é a função e os limites da filosofia. Em Kant, tratou-se de determinar os limites da razão pura, sendo que os da filosofia eram ainda os de estabelecer uma razão prática e um juízo estético e teleológico; com Wittgenstein, os limites da filosofia são apenas os da razão científica: quanto à ética, à estética e à crença, que podem apenas ser mostrados (por algum tipo de linguagem não proposicional, mas não pela filosofia, cuja linguagem deve ser lógica), é preciso calar.
Enquanto Kant propôs um Tu-deves categórico para a ação moral, categorias para o conhecimento e uma teleologia estética, Wittgenstein afirmou o acaso do mundo, sua leitura possível pela lógica, transcendental ao mundo do acaso e do acontecer, uma ética e uma estética intrínsecas ao acontecer, negando a existência de um sujeito do conhecimento. O transcendental, para Wittgenstein, indica, não mais a razão que determina o conhecimento, se impõe à moral e guia o juízo estético, mas simplesmente o fato de, por um lado a lógica, por outro lado a ética, a estética e o místico, estarem para além do acontecer, que simplesmente se dá, sem teleologia alguma.
No entanto, tal qual Kant, Wittgenstein mantém a separação entre o que se pode pensar e dizer (em Kant, o que se pode conhecer), e o que se mantém como questão inefável, a saber, a vida do dia-a-dia, onde se misturam misticismo, crença, e simples acontecer. A filosofia, assim, abre mão de qualquer conhecimento da vida, e se limita a analisar proposições lógicas, às quais escapa simplesmente a vida, seus problemas e o que há nela de mais alto. Por um lado, quanto à vida, resta vivê-la em silêncio; por outro, à filosofia, legislar, analisar, dizer o verdadeiro e o falso. Uma vida, enfim, cindida em dois, entre uma filosofia "científica" e uma prática místico-casual inefável, sem leis e sem lógica.
A intenção de Wittgenstein fora a de buscar a verdade ascética, pretensamente procurada pela metafísica, no único lugar e da única maneira que ela pode ser encontrada: na linguagem, sob a forma lógica. Pois, afinal, somente aí ela se apresentaria distante o bastante do empírico; somente na linguagem a verdade poderia se apresentar de maneira incondicional e absoluta, seguindo leis fixas, rigorosa e invariável. Se foram estas as metas da filosofia através da metafísica, de buscar estes ideais ascéticos, então na linguagem, somente na linguagem, e não na metafísica, a filosofia poderá obtê-la. Verdade, certeza, clareza, não paradoxo, não equivocidade, não tempo – não encontraremos nunca estes fatores, objetos de desejo da filosofia, no mundo, nem tampouco no humano. Mas sim na linguagem, ascese até mesmo da própria mente humana. Se é na linguagem lógica que a filosofia encontra suas condições de possibilidade de realizar seu ideal de perfeição, suas metas por tanto tempo buscadas de forma vã na metafísica ou no sujeito, a filosofia deve portanto limitar-se ao estudo lógico da linguagem. Não se dobram à lógica nem a ética (ou a estética; são um só) em seu sentido imanente ao mundo do acontecer, puro acaso, nem a ética em seu sentido, subjetivo, de valoração; nem tampouco o místico. Em suma, nem a vida – casual –, nem os valores – subjetivos –, nem o místico – inefável. De modo que à filosofia cabe, unicamente, o que se limita à verdade da análise lógica em seu sentido formal.
4. Heidegger: do transcendental ao imanente
Em Meu caminho de pensamento e a fenomenologia, Heidegger descreve como e por quê se afastou da fenomenologia, a partir de um incômodo gerado por uma contradição interna da obra Pesquisas lógicas de seu então futuro mestre Husserl. O primeiro argumento do livro (em seu tomo I, de 1900) afirma que uma teoria do pensamento e do conhecimento não pode se fundar sobre a psicologia, mas sim sobre a lógica – neste ponto, em acordo com Kant e ainda mais com Wittgenstein. No segundo argumento (tomo II da obra, de 1901), no entanto, descreve os atos essenciais da consciência na edificação do conhecimento, logo, escreve Heidegger, retornando, num certo sentido e apesar de tudo, à psicologia, perguntando-se: "em que consiste o próprio da fenomenologia, posto que ela não é nem uma lógica, nem uma psicologia?" E responde: a "subjetividade transcendental" (que Husserl preconizava, em prosseguimento à filosofia kantiana) busca explicar "a estrutura dos atos vividos", assim como "os objetos vividos nos atos de consciência, do ponto de vista de sua objetividade" determinada pela própria consciência (objetividade "transcendental", determinada pelo sujeito do conhecimento, ou, pela fenomenologia, pela consciência). Concluindo, por fim, dezenove anos mais tarde: "o que, para a fenomenologia dos atos de consciência, se realiza pelo manifestar do fenômeno, é pensado por Aristóteles e em todo o pensamento dos gregos como ???????, como o aberto sem retraimento da presença, seu desvelamento, seu se mostrar." (p.332) E sendo assim, continua Heidegger, como e de onde se determina a questão própria da filosofia? "Trata-se da consciência e de sua objetividade, ou do ser do ente em seu não retraimento e em seu retraimento?"
Heidegger enfatizou assim a questão do ser e de seu aparecer ôntico (como ente), mais que a da "cientificidade lógica" de uma pretensa filosofia universal. E transformou então o não-psicologismo da consciência transcendental (ou do sujeito transcendental) no Dasein: o ser se dá, em seu retraimento e em seu não retraimento, para a, na, pre-sença do ser do homem.
Mas algo de mais fundamental mudou na passagem da consciência para o Dasein: precisamente a questão da pretensão ou do desejo de universalidade, de assepsia do pensamento, de ascese mental, de busca da verdade contra o corpóreo, o material, o temporal. Pois o Dasein heideggeriano incorpora justamente o tempo: não há ser, nem tampouco expressão do ser, que não seja no tempo. "A questão diretriz da filosofia se manteve, em todos os tempos, sob as figuras mais diversas, como a questão do ser do ente", nota, observando que a fenomenologia estancou-se em uma posição filosófica determinada, "aquela que se desenhava desde Descartes, Kant e Fichte. A historicidade do pensamento se lhe manteve estranha (ver o tratado de Husserl A filosofia como ciência rigorosa, de 1911)" (Carta a Richardson, p.344).
Em suma, a crítica de Heidegger à fenomenologia versa sobre a separação que esta intenta operar, em prosseguimento às filosofias de Descartes e Kant, entre um mundo verdadeiro da ciência, concebida como universal e portanto a-histórica; e o mundo real, da vida, do tempo, da historicidade do ser, isto é, do desenrolar do ser em suas múltiplas versões ônticas. Ou seja, a crítica consiste em que Descartes, Kant e Husserl, ao deixarem de lado o Tempo e a historicidade, em busca de uma verdade imutável e fixa, afastaram-se da verdade, no sentido que afastaram-se do ser, optando por substituir este por uma de suas multiplamente possíveis versões. Cada filósofo apresentava sua versão, ôntica pois fixava num pretenso desvelar "científico" o que é na verdade eclodir, contínuo desabrochar, contínua imanência criadora – desvelamento interminável e não constituído por partes pois todo desvelar mantém o velamento do desvelado. Todo desvelamento positivo, analítico, não é senão, ou bem equívoco e ilusão (pois se pensou desvelar o que não se desvela, por ser no tempo, por ser origem e gênese imanente do tempo, abertura ao tempo e ao espaço), ou bem limitado a uma técnica que ignora, deliberadamente ou não, o que importa compreender: o ser, no qual e a partir do qual todo ente, e portanto nós próprios e o próprio pensar, somos. A vida. O mundo do acontecer.
No lugar do transcendental, que dizia o "puro", depurado da matéria, Heidegger pôs o ser, que só é ser dos entes e do ente em geral, correspondendo portanto a um sentido (uma destinação, um viver) do que é necessariamente material. Não se trata mais, portanto, de um subjetivo universal e "puro" determinando a objetividade do conhecimento, mas de um ser (verbal) que inclui o indivíduo e as coisas e possibilita (justamente por incluir tanto um quanto o outro) o próprio conhecimento.
À filosofia, segundo Heidegger, caberá então a questão da verdade do ser; não mais do sujeito ou das coisas: estes, entes, têm sua verdade no ser, pois que são. A verdade do que é aparentemente imutável – o ente em sua aparência inteligível – não se encontra nesta objetivação subjetiva (ou em alguma subjetivação objetivante), mas no inefável do ser, que se expressa pelo ente, se nele estamos à escuta do ser, abertos a esta compreensão. A verdade, portanto, escapará sempre à técnica e à lógica, que pretendem fixar idealmente o ser, torná-lo ente, ontificá-lo, reduzi-lo. Mais, esta segurança que a técnica e a lógica obtêm mostra-se ilusória, pois que tanto uma quanto a outra existem a partir do ser, de modo que procurar dissociar-se dele, na intenção de desvelar inteiramente sua verdade, ainda que por meio de um puro formalismo, se configura em uma tentativa necessariamente frustrada.
"A verdade é o combate originário onde se conquista o aberto no qual se mantém em retraimento tudo o que se mostra e se erige como ente" (A origem da obra de arte, p.67). O que transcende o ôntico expressa o ser. Transcende o ente pelo fato de expressar o ser. Dar sentido, dar valor; a ética, a estética, o místico; não são postos pelo homem no mundo; não determinam o ser, mas sim nele se inserem: são maneiras de se abrir ao ser, de compreendê-lo, de favorecer a sua eclosão. A metafísica, portanto, segundo Heidegger, consiste no esquecimento do ser, que se dá quando tomamos um ente pelo ser, uma verdade ôntica pela verdade ontológica. Metafísicas, portanto, são a técnica e a lógica; não ética, nem a estética, nem o místico. A terra, morada dos mortais, indica a transcendência do homem; o céu, morada das divindades, indica o ser – eterno, pois que é eterno eclodir – que se expressa no homem e no ente em geral.
A linguagem, então, não servirá mais para enunciar (ou determinar) uma verdade "pura", externa ou bem ao sujeito ou bem às coisas. Ao contrário, ela serve para auxiliar e promover a compreensão do desabrochar contínuo do ser, do pôr-se em movimento junto a ele. A linguagem privilegiadamente filosófica será, assim, a que se aproxima da poesia – ou a que aproxima o homem da poesia –, pois ao ‘sugerir’ nos envia ao âmago do ser e do tempo que nos atravessa, para além dos significados que congelam o que é contínuo aparecer (pôr-se em presença). "A essência da língua não se esgota na significação" (Por quê os poetas?, p. 373) – "a poesia é a potência fundamental da habitação humana" (O homem habita como poeta, p.244).
Para compreender a essência do ser, é preciso e-mocionar-se, co-mover-se, mover-se, pôr-se em movimento, junto à vida, junto ao ser. "A auto-imposição da objetivação técnica é a constante negação da morte" (Por quê os poetas?, p.364); busca-se o positivismo para se negar a morte, e "por esta negação, a morte se torna ela própria algo de negativo" (idem). Mata-se o movimento, o viver, para, na aparente eternidade das leis lógicas, negar-se a morte. Morre-se, para negar a morte; deixa-se de compreender a vida, para se consolar com a perpetuidade de uma técnica infalível, de uma verdade desvelada para sempre, imutável, imperecível.
5. A linguagem como problema filosófico e o papel da filosofia: dizer e mostrar/calar x desvelar e desvelar/velar.
Wittgenstein e Heidegger, nascidos no mesmo ano (1889), têm na teoria crítica kantiana a origem de suas respectivas filosofias. Ambos procuraram, assim como Kant, ultrapassar a tradição metafísica da filosofia. Para isto, um e outro definiram uma meta para a filosofia e estabeleceram seu estatuto e seus limites; assim como estabeleceram a função da linguagem como instrumento de expressão filosófica frente a estes limites e a esta meta. E se opuseram em cada um destes fatores, diametralmente, ponto a ponto.
Tanto Heidegger quanto Wittgenstein, assim como Kant, viram a pretensão filosófica de enunciar a verdade do mundo, do indivíduo, de Deus, como extrapolando os limites da filosofia. Ambos, no entanto, mantiveram para a filosofia a função de dizer a verdade.
Porém Wittgenstein, seguindo Kant, continuou atribuindo à filosofia a tarefa de dizer a verdade de modo positivo, objetivado, segundo uma certeza racional, puramente intelectual, "puro" no sentido de purificado das sensações, dos afetos, do corpo, do tempo e da vida, associando assim a verdade à lógica formal e à técnica. Como Kant, resolveu então cindir o mundo em dois: um, o da lógica, e outro, o da prática e do valor – do acontecer, da ética, da estética e do místico. Visou, assim, separar a metafísica da filosofia, tomando portanto como metafísico tudo o que foge à lógica formal. Associou o dizer ao dizer lógico, e a estes a filosofia. Delimitou o estatuto da filosofia como sendo o da lógica; e estabeleceu então a linguagem filosófica como a da lógica formal, e sua função a de dizer a verdade da lógica. Para além, portanto, do que, em Kant, apesar dos esforços deste, seria ainda um psicologismo. Não há verdade não só do mundo do acontecer, da ética, da estética e do místico, como tampouco do sujeito – todos estes ilógicos e paradoxais. A única verdade possível é a do formalismo lógico; eis a única possibilidade de se pensar corretamente, certeiramente. Enfim a verdade que escapa ao tempo e à morte, à vida e ao acaso. Esta, verdade proposicional, a linguagem pode e deve dizer. O acontecer, a ética, a estética e o místico, a linguagem, não mais lógica, não mais filosófica (não mais filosofia, pois que não mais verdadeira), pode apenas mostrar, não mais dizer. A respeito destes, portanto, a filosofia deve calar. Ou ainda: caso não cale, não somente tratar-se-á de metafísica, como também e sobretudo, legisla Wittgenstein, não se tratará simplesmente mais de filosofia.
Já para Heidegger – se distanciando de Husserl e, através deste, de Kant –, a verdade não é mais a verdade do sujeito, do conhecimento ou da consciência, nem tampouco das coisas, do mundo ou do acontecer. É, porém, o próprio acontecer, o próprio vir à presença – no mundo, no indivíduo, nas coisas. A certeza, a objetivação, a técnica, portanto, se constituem em tentativas de fixar o que não se fixa, de congelar o que é em fluxo: o próprio aparecer. O ser. O ato e o fato de que as coisas são – no sentido verbal do termo. O que para Wittgenstein – e antes dele Descartes e Kant – era visto como verdade, para Heidegger é uma onticização da verdade, isto é, uma tentativa de separar do mundo e da vida (separar do ser) o que se constitui em um desabrochar contínuo. Em seus termos: uma tentativa (necessariamente frustrada) de desvelamento total e totalizante da verdade. Esta, porém, somente existe em seu contínuo eclodir, no tempo, se desvelando enquanto velada; se desvelando no ente como ser, que o ente é. Metafísica é então a pretensão (cientificista) de desvelamento absoluto, positivo, do ser. São metafísicas a lógica e a moral, mas não a ética, a estética e o místico, se estes não se subordinam à luz ontificadora da razão objetivadora, calculante.
A filosofia se desenha então para Heidegger como o pensamento da verdade do ser, um abrir-se reflexivamente ao ser. A linguagem tem aí a função de favorecer ao leitor, ao ouvinte, a eclosão do ser em seu pensamento e em seu viver. A função poética, de poiesis, criação: a expressão do ser na própria linguagem e por conseguinte no indivíduo e nas coisas. A expressão do ser no ente.
Para Wittgenstein, a verdade está no transcendental lógico, na pureza das operações intelectivas; no controle e na fuga do acaso, que a linguagem lógico-formal pode propiciar. A linguagem filosófica é lógica; e sobre o que a lógica não consegue impor o seu domínio – os problemas da vida, o acontecer, a ética, a estética e o místico –, esta deve se calar. Estes não são portanto tomados como problemas filosóficos (cabendo à filosofia apenas a análise proposicional). A linguagem que aborde estes temas não será lógica, e portanto, segundo a lei wittgensteiniana, não merecerá o estatuto de filosofia.
Para Heidegger, a verdade está no ser, e portanto no ente, no que este é (no sentido verbal). A metafísica tem como meta conhecer a verdade, mas apenas desvela ilusoriamente o ente (a verdade é a do ser). No entanto, a metafísica, na compreensão heideggeriana, não perde o estatuto de filosofia; apenas é uma filosofia que errou seu alvo: buscou o ser, o aparecer do fenômeno, mas apenas encontrou o ente, a aparência do fenômeno. Na intenção de fixar o ontológico, que é no tempo, apenas perpetuou o ôntico.
Ambos, Wittgenstein e Heidegger, falam da verdade. Para aquele, pura clareza, desvelamento absoluto; para este, um desvelar que guarda em si o velar, mesmo em seu próprio desvelamento.
Wittgenstein toma assim a verdade como excludente, descreditando a filosofia de linguagem não lógico-formal como não filosofia, interditando a filosofia de tratar senão do que disser respeito à análise proposicional; enfim, de dizer senão o que ele, Wittgenstein, determinou. Pois caso contrário, estar-se-á fora da verdade. Fora da lei. Não diga; mostre; mas saiba que não será filosofia.
Heidegger inclui também o que considera ôntico no ser. Todo esquecimento do ser se dá no ser. Não há um fora da verdade. A verdade não é excludente, nem tampouco tem a ilusão – ôntica –, ou a pretensão – negadora da morte e portanto da vida –, de ser lei. Analisa as demais filosofias e expõe sua crítica, sem no entanto excluí-las, sem a presunção de retirar-lhes o estatuto de filosofia. Sem o medo (e o incômodo) da diferença e da pluralidade, do diferente, do tempo e do devir, do perecimento e da transformação; medo que leva ao desejo (por reatividade e defesa) de legislar – no fim das contas, porém, contra a compreensão (racional – uma razão espinosiana) da própria vida onde, queiramos ou não, somos e vivemos, na matéria e no tempo. Medo do desamparo, gerando uma nova crença, um novo totalitarismo, e uma nova nova interdição ao pensar livre e à pluralidade.
Autor: André Martins - Doutor em Filosofia pela Université de Nice, França. Professor Adjunto da UFRJ.
Artigo apresentado no VIII Encontro Nacional da Anpof, realizado em Caxambú, MG, de 26 a 29 de setembro de 1998. Publicado na Revista Ethica, v.5, n.2. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Filosofia Universidade Gama Filho 1998 p. 41-58.
E-mail - andremar@nesc.ufrj.br
Fonte: http://www.saude.inf.br/filosofia/funcaodalinguagem.htm
Bibliografia
Heidegger, M. (1889-1976) "Mon chemin de pensée et la phénoménologie", seguido de "Lettre à Richardson" (1969) in Questions IV. Trad. Jean Lauxerois e Claude Roëls. Paris: Gallimard, 1990.
–––––. "L’homme habite en poète" (1954) in Essais et conférences. Trad. André Préau. Paris: Gallimard, 1980.
–––––. "L’origine d’oeuvre d’art" e "Pourquoi des poètes?" (1949) in Chemins qui ne mènent nulle part. Trad. Wolfgang Brokmeier. Paris: Gallimard, 1988.
Husserl, E. (1859-1938) La crise des sciences européennes et la phénoménologie transcendantale. (1937) Trad. Gérard Guest.
Kant, I. (1724-1804) Critique de la raison pure. (1781) Trad. A. Delamare e F. Marty. Paris: Gallimard, 1992.
––––––. Critique de la raison pratique. (1788) Trad. L. Férry e H. Wissmann. Paris: Gallimard, 1992
––––––. Critique de la faculté de juger. (1790) Trad. A. Philonenko. Paris: J.Vrin, 1989.
Martins, A. Le réel et l’illusion: pour une ontologie non métaphysique. Lille: ANRT, 1996.
Wittgenstein, L. (1889-1951) Tractatus logico-philosophicus. (1922) Trad. Luis Henrique Lopes dos Santos. 2a ed. São Paulo: Edusp, 1994; Tratado lógico-filosófico. Trad. M.S. Lourenço. 2a ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.
quinta-feira, 3 de julho de 2008
SOREN KIERKEGAARDEN
Soren Kierkegaard, nasceu na capital da Dinamarca, Copenhague, em 06/05/1813. Faleceu em 11/10/1855. Durante esse período viveu uma vida angustiada e de elucubrações altamente produtiva. Combateu Hegel e as formas institucionalizadas de religião. Afirmou ser, antes de tudo, um poeta. Adotou vários pseudônimos, afastando de si a sua obra, da mesma forma que afastou o pastorado e a noiva. Desta última ele justificou seu afastamento alegando que apesar do seu amor era necessário para o bem dela que se afastasse. Alega um acontecimento, um terremoto em sua vida. Fala de um espinho na carne que, embora seus biógrafos nunca tenham conseguido esclarecer, supõe-se que seja o fato de viver como seu próprio personagem em “Conceito de Angústia”, a impossibilidade de fazer escolhas. Ele viveu sempre no ponto zero entre duas opções, sentindo-se um nada. Para Kierkegaard todas as possibilidades-de-sim, constituem possibilidades-de-não, trazendo a ameaça do nada. É possível assim, pressentir um reflexo de sua vida, de sua angústia na sua obra cujo teor psico-filosófico e religioso é incontestável. No seu combate ao sistema hegeliano, sustenta que só Deus tem conhecimento de tudo. A realidade é um sistema de Deus. O homem não pode formular um sistema completo da realidade por que o seu modo de ser é a existência significa processo do devir, a mutabilidade, a contingência. Em constante processo de construção, o homem passa por três estágios: o Estético é o mais básico e está relacionado a uma vida efêmera, exterior sem objetivos maiores. É um estágio difícil de caracterizar pela variedade de traços, mas tem no desejo o elemento chave. A figura que melhor o representa é D.Juan, com sua volúpia e extravagância de vida. Observa-se neste estágio, em função da falta de clareza ou objetividade, a não satisfação dos desejos e consequentemente, o aparecimento do vazio; o Ético ou Moral é marcado por uma vida coerente. Governada por normas morais. O casamento feliz seria sua concretização. No entanto, a mulher é o grande obstáculo deste estágio em função de viver no estágio anterior. Desta forma cabe ao homem um heroísmo moral para guiá-la evitando que se desvie, garantido a estabilidade do casamento. Segundo Kierkegaarden, a mulher só se tornará plena no Estágio Religioso, que é também, a outra opção para aqueles que não têm vocação para a vida conjugal. Este é um estágio conseqüente uma vez que são os fracassos em se realizar nos estágios anteriores que conduzem à busca de Deus. Este estágio, superior, impõe um seguimento da fé no seu mais alto grau. Para representá-lo elegeu Abraão, homem que se predispôs a oferecer seu único filho em sacrifício à Deus. Crer em Deus é comprometer-se com o absurdo, sem depender de provas, de certezas, por que a fé é um salto no escuro. A fé reúne a reflexão e o êxtase, a busca do infindável e visão instantânea da Verdade. A fé é a via de salvação, um caminho seguro que o homem tem para se furtar da angústia e instaurar uma relação com Deus. Homem de profundo sentimento religioso, não se uniu a nenhuma religião. Buscou Deus na própria subjetividade. Seus últimos anos de vida foram marcados pelos conflitos em que se envolveu com os representantes de instituições religiosas. Morreu após passar mal na rua e ser levado a um hospital. Sua obra: O primeiro trabalho foi uma tese de doutoramento em Teologia onde escreveu o Conceito de Ironia de Sócrates. Em 1843 publicou Temor e Tremor e a Repetição. Em 1844 escreveu As Migalhas Filosóficas e Conceito de Angustia. No ano seguinte publicou Os estágios sobre os Caminhos da Vida. Em 1846 Post-Scriptum às Migalhas Filosóficas. Em 1849 O Tratado do Desespero que foi traduzido como A Doença Mental. Seu último livro A Escola do Cristianismo é uma crítica à Igreja. Em maio de 1855 fundou um jornal: O Instante. Todas estas obras foram publicadas, como já foi dito, sob pseudônimos. Escreveu também vários discursos e assinou com seu próprio nome.
Embora ele confesse a sua impossibilidade de fazer escolhas, de estar sempre no ponto zero entre duas opções, sua vida e sua obra refletem uma escolha que privilegiou o mundo. Sua contribuição filosófica chegou à modernidade como um alerta para o homem pensar e pesar sua relação com Deus e com a vida, independentemente de religião. Suely monteiro.
Embora ele confesse a sua impossibilidade de fazer escolhas, de estar sempre no ponto zero entre duas opções, sua vida e sua obra refletem uma escolha que privilegiou o mundo. Sua contribuição filosófica chegou à modernidade como um alerta para o homem pensar e pesar sua relação com Deus e com a vida, independentemente de religião. Suely monteiro.
quarta-feira, 2 de julho de 2008
FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA E O CONCEITO DE ESTADO
1. O Estado Moderno
Em uma pesquisa antropológica visando encontrar as condições de formação do Estado, buscando suas relações intrínsecas e extrínsecas com a organização humana, assim Lawrence Krader define essa instituição política:
"Na organização do Estado, o homem concentra seu poder sobre o homem em um único cargo oficial. O monopólio da foça física de que goza esse cargo é absoluto. Pode, sem dúvida, canalizar seu poder mediante delegação específica; nos demais casos, e desde que o Estado não seja derrubado, esse poder continua a disposição da autoridade central.
Em mãos do Estado o poder adota diversas formas e no uso de suas atribuições pode proibir, matar, encarcerar, escravizar, multar. Mas as forças do Estado não têm projeções meramente negativas. O Estado se apóia nas forças integradoras da sociedade: o amor, a lealdade, a dependência recíproca, a fé religiosa, a tradição e a força do costume.
"Além disso, o Estado é uma autoridade central (monarca, presidente) com poder sobre uma população que vive dentro de um território determinado; mas é mais que uma unidade física, territorial ou legal; o poder político central transforma a unidade nacional, a representação, a defesa e o controle dessa unidade em uma ideologia. A invasão do território de um Estado supõe uma dupla ameaça: de um lado a invasão diminui a área geográfica do Estado, e de outro, diminui o âmbito da autoridade central e, portanto, o poder de que desfruta. Quando está em perigo a extensão geográfica de um Estado, se vê igualmente ameaçada a ideologia da unidade do Estado, o território do Estado e o povo. A lealdade ao Estado se baseia, em parte, na aceitação de seu poder e na fé neste poder. A debilidade pode ser uma ameaça para essa fé ou, pelo contrário, pode ser que a debilidade do poder atraia para ele mais adesão do que nunca. Mas, em qualquer caso, o povo reage ao Estado e ao seu destino, e não apenas à mera perda de população, território ou riqueza." 1
Podemos perceber, assim, que a institucionalização do Estado baseia-se em características básicas do homem enquanto indivíduo, para fazer dele membro efetivo de uma comunidade. Tal abertura política faz-se de tal maneira, que o membro de uma comunidade centralizada em um Estado é capaz de abdicar de si mesmo para defender não apenas as realidades que este Estado representa (o território, a riqueza ou a população) mas também a própria abstração da potência de todos centralizada em um
único aparato político, o Estado enquanto tal.
Historicamente, vemos que o Estado, se não esteve sempre presente na organização humana 2, é uma constante à medida em que cresce o grau de abrangência populacional e conseqüente complexidade das organizações. Claro que assume as mais variadas formas, de acordo com as condições de cada tempo e lugar, dos Estados teocráticos e centralizados da antiguidade oriental aos Estados democráticos e mesmo totalitários de nossos dias. O fato é que o Estado tal qual conhecemos hoje, embora guarde profundas semelhanças com instituições políticas antigas, é fruto de um processo de formação que se inicia no final da Idade Média, com a dissolução do Estado teocrático feudal. Daremos ênfase aqui, muito mais conceitual do que histórica, àquele que convencionou-se chamar de
Estado Moderno.
Entretanto, mesmo o Estado moderno apresenta variações, e o que conhecemos hoje é resultado de um processo de desenvolvimento ao longo dos séculos. O historiador alemão Werner Naef identifica três grandes tipologias no processo de desenvolvimento do Estado moderno: a primeira delas seria o Estado estamental, predominante durante os séculos XV e XVI, responsável pela concentração dos poderes políticos; a segunda seria caracterizada pelo Estado monárquico absoluto, que predomina nos séculos XVII e XVIII e representa uma segunda onda de centralização do poder, agora unicamente nas mãos do monarca; a terceira grande tipologia do Estado moderno é representada pelo Estado democrático, que começa a surgir com a Revolução Francesa e consolida-se com a fixação dos direitos do homem e do cidadão 3.
No aspecto conceitual que nos interessa mais diretamente, o Estado moderno dominou as preocupações filosóficas durante séculos, sensibilizando pensadores do calibre de Maquiavel e de Marx, por exemplo. De acordo com Norberto Bobbio, a filosofia política moderna e suas concepções de Estado e sociedade podem ser agrupadas em duas grandes vertentes, o modelo jusnaturalista e o modelo hegelo-marxiano, que se contrapõem um ao outro.
O jusnaturalismo abarca de Hobbes a Rousseau, passando por Locke, Spinoza e Kant; o modelo hegelo-marxiano, por sua vez, como já acena o próprio nome, abarca duas perspectivas que, mesmo sendo a segunda uma inversão da primeira, guardam entre si a identidade estrutural.
O que caracteriza o modelo jusnaturalista é, antes de tudo, o seu objetivo de desenvolver uma teoria racional do Estado; se o modelo tradicional de concepção política que remonta a Aristóteles explicava o Estado como uma construção histórica, partindo de círculos menores (família, aldeia) para círculos cada vez mais abrangentes (a Pólis) que culminam no Estado, que é a forma mais perfeita de organização, os jusnaturalistas vão se dedicar a uma reconstrução racional, buscando hipóteses de trabalho que permitam a percepção do sentido do Estado. Assim, ele aparece como a reunião de
muitos indivíduos que formam um indivíduo único, com uma única vontade, expressão da vontade geral:
"O Estado não é como uma família ampliada, mas como um grande indivíduo, do qual são partes indissociáveis os pequenos indivíduos que lhe dão vida: basta pensar na figura posta no frontispício do Leviatã, na qual se vê um homem gigantesco (com a coroa na cabeça e, nas duas mãos, a espada e o báculo, símbolo dos dois poderes), cujo corpo é composto de vários homens pequenos. Rousseau expressa o mesmo conceito ao definir o Estado como o 'eu comum', imagem muito diversa da de 'pai comum'. Na base desse modelo, portanto, está uma concepção individualista do Estado, por um lado, e, por outro, uma concepção estatista (que significa racionalizada) da sociedade. Ou os indivíduos sem Estado, ou o Estado composto apenas de indivíduos. Entre os indivíduos e o Estado, não há lugar para intermediários. E também essa é uma extrema simplificação dos termos do problema, à qual conduz inevitavelmente uma constituição que quer ser racional e, enquanto tal, sacrifica em nome da unidade as várias e diferentes instituições produzidas pela irracionalidade da história; mas é também, ao mesmo tempo, o reflexo do processo de concentração do poder que marca o desenvolvimento do Estado moderno. Uma vez constituído o Estado, toda outra forma de associação, incluída a Igreja, para não falar das corporações ou dos partidos ou da própria família, das sociedades parciais, deixa de ter qualquer valor de ordenamento jurídico autônomo." 5
O ponto chave do modelo jusnaturalista é o da legitimidade do poder político do qual é detentor o Estado; se no modelo aristotélico tradicional a legitimidade vem da natureza (sendo o Estado resultado do crescimento de esferas sociais menores, desde a família, a legitimidade é dada pelo pátrio poder: o soberano assume para os súditos a figura de pai) agora isso já não é mais possível. Se a legitimidade não é natural, é necessário que se encontre uma forma pela qual ela seja aceita por aqueles que se submetem. Em outras palavras, é necessário que haja um consentimento dos súditos para com a autoridade do Estado:
"Isso significa dizer que o governante, ao contrário do pai e do dono de escravos, necessita que sua própria autoridade obtenha consentimento para que seja considerada como legítima. Em princípio, um soberano que governa como um pai, segundo o modelo do Estado paternalista, ou, pior ainda, como um senhor de escravos segundo o modelo do Estado despótico, não é um governo legítimo e os súditos não são obrigados a lhe
obedecer." 6
A hipótese racional encontrada pelos filósofos deste modelo está na noção de pacto ou contrato social 7. A idéia do pacto entre os indivíduos para constituir o Estado, cada um deles delegando e abdicando de sua própria autoridade em nome da autoridade única do soberano que é, ele próprio, um indivíduo, é o centro das teorias contratualistas do jusnaturalismo. O contrato social marca, fora do tempo e do espaço, a transição do estado de natureza para o estado civil; o contrato social é o pacto civilizador
que faz a ponte conceitual entre a barbárie e a civilização.
Antes do Estado não há sociedade 8 ; no estado de natureza os homens não passam de indivíduos, não constituem uma comunidade. Em guerra de todos contra todos (Hobbes) ou não (Rousseau), no estado de natureza a articulação social não é possível. Já no estado civil - ou seja, com a instituição do Estado - os homens passam a viver em comunidade, na qual adquirem certos direitos, desde que cumpram seus deveres para com os outros e para com o Estado. Estado de natureza e estado civil são antagônicos e mutuamente excludentes:
"Entre os dois estados, há uma relação de contraposição: o estado natural é o estado não político, e o estado político é o estado não natural. Em outras palavras, o estado político surge como antítese do estado natural, do qual tem a função de eliminar os defeitos, e o estado natural ressurge como antítese do estado político, quando este deixa de cumprir a finalidade para a qual foi instituído. A contraposição entre os dois estados consiste no fato de serem os elementos constitutivos do primeiro indivíduos singulares, isolados, não associados, embora associáveis, que atuam de fato seguindo não a razão (que permanece oculta ou impotente), mas as paixões, os instintos ou os interesses; o elemento constitutivo do segundo é a união dos indivíduos isolados e dispersos numa sociedade perpétua e exclusiva, que é a única a permitir a realização de uma vida conforma a razão. Precisamente porque estado de natureza e estado civil são concebidos como dois momentos antitéticos, a passagem de um para outro não ocorre necessariamente pela força das coisas, mas por meio de uma ou mais convenções, ou seja, por meio de um ou mais atos voluntários dos próprios indivíduos interessados em sair do estado de natureza, ou seja, em viverem conforme a razão." 9
O que fundamenta o Estado é, pois, na visão dos jusnaturalistas, o desejo dos indivíduos de viverem de acordo com a razão - o que vai de encontro com sua perspectiva de produzir uma teoria racional do Estado - e não mais de acordo com os instintos, paixões e interesses puramente individuais e egoístas. Acontece que a instituição do Estado traz um sério problema: como conciliar o bem individual da liberdade com a necessária obediência que cada um dos indivíduos deve prestar ao Estado? 10
Vejamos, brevemente, algumas considerações dos principais filósofos jusnaturalistas sobre a questão.
Hobbes: O Estado como segurança
Para Thomas Hobbes, o primeiro grande filósofo contratualista, essa questão não se coloca: o indivíduo assume uma renúncia quase total11 , prestando obediência ao soberano instituído pelo pacto em nome de sua segurança. Tal abdicação da liberdade deve-se à concepção de Hobbes do estado de natureza: a guerra total, a luta generalizada (bellum omnium contra omnes), que dá-se por ser o homem, naturalmente, o lobo do homem (homo homini lupus).
A reflexão do filósofo é bastante curiosa: por natureza, todos os homens são absolutamente iguais, nada há que os diferencie e, portanto, um jamais poderá ter poderes sobre os outros12 : dessa igualdade total advém a desconfiança e, dela, a guerra. A guerra decorre do fato de que um indivíduo precisa atacar o outro, seja para vencê-lo seja para evitar, de antemão, que seja por ele atacado. Numa tal situação, a guerra que, em princípio é racional, torna-se absurda, pois não há vencedor(es) possível(eis). Numa tal guerra não existem também injustiças, posto que onde não impera a lei não é possível a definição do que é justo; ainda por outro lado, neste estado de natureza a propriedade tampouco é possível, pois não há como conseguir e defender coisas em meio a uma guerra de todos contra todos. Assim, determinadas paixões humanas fazem com que a razão institua o Estado13.
É no capítulo XVII do Leviatã que Hobbes define a constituição do Estado através de um pacto entre os indivíduos no qual eles consentem em abdicar de suas vontades e liberdade individuais em nome da vontade de um único, que garantirá a paz através da lei e a segurança de todos os súditos. O homem não é um animal naturalmente social; a sociedade entre nós é instituída artificialmente e precisa ser artificial e racionalmente mantida: o pacto precisa ser renovado e garantido a cada momento, para que
haja sociedade. Daí decorre que o poder político só pode ser mantido através da força. A esse monopólio da força que faz com que a multidão se una num único indivíduo, que garantirá a segurança de todos, Hobbes chama Estado.
"A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda sua força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade (...) Feito isso, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas." 14
Assim, o medo da morte e o desejo de posse fazem com que os indivíduos ajam racionalmente e instituam, através do pacto, um poder político que os submeterá a todos, mas garantirá o seu direito de posse e sua segurança física. Abdica-se da liberdade em nome da segurança; troca-se a liberdade pela vida, enfim.
Locke: o Estado como garantia da propriedade
John Locke também lança mão da hipótese do estado de natureza para a construção de sua filosofia política. Contrariamente a Hobbes, porém, não vê nesse estado uma guerra permanente; segundo este filósofo, o fato de os homens viverem na mais absoluta liberdade não implica em que vivessem sem leis. No estado de natureza os homens seriam governados pela lei natural da razão, sendo seu princípio básico a preservação da vida; não se sairia agredindo e matando os outros indistintamente, portanto,
apenas para tirar-lhes as propriedades ou evitar um possível ataque.
Já no estado de natureza os homens estão aptos a possuir bens; de acordo com Locke, todo indivíduo já nasce proprietário de seu corpo e de sua capacidade de trabalho. Tudo aquilo que produzir, retirando ou transformando a natureza, através de seu próprio trabalho, será de sua propriedade:
"O trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos, pode dizer-se, são propriamente dele. Seja o que for que ele retire do estado que a natureza lhe forneceu e no qual o deixou, fica-lhe misturado ao próprio trabalho, juntando-se-lhe algo que lhe pertence, e, por isso mesmo, tornando-o propriedade dele. Retirando-o do estado comum em que a natureza o colocou, anexou-lhe por esse trabalho algo que o exclui do direito comum de outros homens. Desde que o trabalho é propriedade exclusiva do trabalhador, nenhum outro homem pode ter direito ao que se juntou, pelo menos quando houver bastante e igualmente de boa qualidade em comum para terceiros." 15
Mas se em seu estado natural os homens, além de gozarem da plena e absoluta liberdade, podem ainda ter acesso quase ilimitado à propriedade, o que faz com que eles abandonem esse estado, instituindo a sociedade civil?
Acontece que o produto do trabalho humano e o acesso à propriedade vão se complexificando paulatinamente; chega um momento em que há a necessidade de se arbitrar sobre esse direito, dadas as disputas que começam a surgir. Se todos são iguais, quem é o verdadeiro proprietário? Se todos são iguais, quem pode arbitrar essa questão? Se todos são iguais, como pode ser feita a justiça?
Assim, os homens reúnem-se em comunidade com o objetivo de facilitar a fruição do direito de propriedade que, mesmo possível em estado natural é incerta e insegura. Afirma o filósofo que "o objetivo grande e principal, portanto, da união dos homens em comunidade, colocando-se eles sob
governo, é a preservação da propriedade." 16
O que institui a sociedade civil e o Estado para realizar a função do arbítrio e da defesa do direito à propriedade para todos é, como em Hobbes, um pacto entre os homens, entre os indivíduos que comporão a assim criada comunidade. O consentimento dos homens na instituição da comunidade,
porém, difere entre os dois filósofos britânicos: para Hobbes, o contrato é um pacto de submissão que visa a instaurar uma situação contrária àquela que vigorava no estado de natureza, preservando a segurança de suas vidas; para Locke, ao contrário, o contrato apresenta-se como um pacto de
consentimento em que os indivíduos, longe de submeterem-se todos a um poder comum, concordam em instituir leis que preservem e garantam tudo aquilo que eles já desfrutavam no estado de natureza. O contrato social é para Locke, a garantia dos direitos naturais, e não a criação de outros direitos 17.
Para falar sobre as características do contrato que institui a sociedade política, Locke ampara-se nas características de uma associação civil, como é o casamento 18. No casamento, dois indivíduos consentem na união e só por isso ela é possível. Também assim acontece com o Estado: ele só é possível através do consentimento de todos os indivíduos em sua instauração.
"Sendo os homens, conforme acima dissemos, por natureza, todos livres, iguais e independentes, ninguém pode ser expulso de sua propriedade e submetido ao poder político de outrem sem dar consentimento. A maneira única em virtude da qual uma pessoa qualquer renuncia à liberdade natural e se reveste dos laços da sociedade civil consiste em concordar com outras pessoas em juntar-se e unir-se em comunidade para viverem com segurança, conforto e paz umas com as outras, gozando garantidamente das propriedades que tiverem e desfrutando de maior proteção contra quem quer que não faça parte dela(...) Quando qualquer número de homens consentiu desse modo em constituir uma comunidade ou governo, ficam, de fato, a ela incorporados e formam um corpo político no qual a maioria tem o direito de agir e resolver por todos." 19
Sem deter-mo-nos aqui nas formas expostas por Locke pelas quais se dá esse governo da maioria, devemos reiterar que para ele não há, na verdade, renúncia à liberdade, mas sim a instauração de uma nova modalidade dela, a liberdade civil, que não se contrapõe à liberdade natural, mas a preserva e a alarga. Preservando os direitos naturais ao torná-los políticos, o Estado não é segundo esse filósofo, um "mal necessário", mas a realização dos direitos humanos através do arbítrio do direito de propriedade, fazendo de todos felizes possuidores.
Rousseau: o Estado como promotor da "vontade geral"
O filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau pode ser visto como um opositor de Hobbes. Enquanto o este concebia o estado natural como guerra e o estado social como fonte de segurança individual, Rousseau afirmava o estado natural como fonte da liberdade e da igualdade, sendo essencialmente bom, enquanto que a sociedade política era a fonte da guerra, posto que instaurava a desigualdade entre os homens.
Em seu famoso Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1754/55), esse filósofo identifica o estado de natureza com a "idade do ouro", quando os homens eram todos livres e iguais entre si, vivendo em paz e harmonia. A origem da propriedade é também a origem da desigualdade, pois as diferenças naturais não devem ser levadas em conta, mas apenas aquela que instaura uma desigualdade de fato, que é a desigualdade social que aí se origina. A origem da propriedade é também a origem da sociedade, pois "o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo." 20
Com a propriedade, vem também o processo de acumulação de bens e, se uns acumulam, isso implica em que outros deixem de acumular. A propriedade é fonte das desigualdades, fonte da escravidão, da ganância e da violência e também é fonte da civilização. O contrato social que institui o Estado é visto por Rousseau não como resultado da ação de todos os indivíduos, como o viam Locke e Hobbes, mas como a ação dos indivíduos ricos coagindo aos mais pobres, na tentativa de garantir para si as benesses da propriedade 21.
Rousseau antecipa, assim, a visão do Estado como um instrumento de classe que seria enunciada por Marx no século seguinte, como veremos mais adiante. Entretanto, o revolucionário filósofo não considera a instituição política como essencialmente má, defensora de interesses individuais; a sociedade não é contrária ao estado natural, como queria Hobbes e, portanto, o Estado poderia ser organizado de forma a preservar os direitos naturais e a igualdade entre os indivíduos - a que fatalmente chegaria Locke, não fosse sua defesa intransigente do direito de propriedade.
Encantado com a "idade de ouro" do estado natural, mas defensor da civilização, Rousseau dedica-se a encontrar as formas de organizar os indivíduos socialmente de modo que sejam preservados seus direitos e características naturais, de modo a que o homem não se corrompa como nessa sociedade essencialmente má, na qual, apesar de "nascer livre, encontra-se sempre a ferros". Esse processo civilizador será examinado em Do Contrato Social.
Para que possa ser garantia da igualdade, sem alienar a liberdade humana, o pacto social deve abranger a todos os indivíduos. Ninguém pode ficar de fora pois, nesse caso, estabelecer-se-ia já uma desigualdade que corromperia a sociedade assim instituída. Diferentemente de Hobbes, o conjunto dos indivíduos não abdica de sua liberdade em nome de um único indivíduo, ao qual se submete, mas entrega a si mesmo ao controle de um indivíduo coletivo que é formado pela união de todos os que pactuam ao firmar o contrato social.
"Enfim, cada um dando-se a todos não se dá a ninguém e, não existindo um associado sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo, ganha-se o equivalente a tudo que se perde, e maior força para conservar o que se tem.
"Se separar-se, pois, do pacto social aquilo que não pertence a sua essência, ver-se-á que ele se reduz aos seguintes termos: 'Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a direção suprema da vontade geral, e recebemos, enquanto corpo, cada membro como parte indivisível do todo´." 23
A celebração de tal pacto dá origem a um corpo social, o Estado, que nada mais é do que a união de todos os indivíduos pactuantes num único indivíduo social; soberano aqui, não é o monarca como em Hobbes, mas o próprio Estado enquanto união dos indivíduos. Isto é, o todo é soberano com relação a cada uma das partes, todas elas iguais entre si. O filósofo prossegue:
"Imediatamente, esse ato de associação produz, em lugar da pessoa particular de cada contratante, um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quanto são os votos da assembléia, e que, por esse mesmo ato, ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. Essa pessoa pública, que se forma, desse modo, pela união de todas as outras, tomava antigamente o nome de cidade e, hoje, o de república ou de corpo político, o qual é chamado por seus membros de Estado quando passivo, soberano quando ativo, e potência quando comparado a seus semelhantes." 24
Deste modo, não há, em Rousseau, abdicação da liberdade para a instituição do Estado, posto que este nada mais é do que a reunião do conjunto dos indivíduos e deve ser a expressão da vontade geral, isto
é, a resultante das vontades individuais no que diz respeito às questões comuns e coletivas. Como na perspectiva deste filósofo a soberania não é do governo - os ocupantes da máquina administrativa - mas do povo enquanto conjunto dos indivíduos pactuantes, não há nunca submissão individual, pois no Estado se realiza a igualdade política de cada indivíduo, assim como sua liberdade se realiza ao obedecer a leis criadas por ele mesmo que não são jamais leis de exceção impostas por outrem.
O Modelo Hegelo-Marxiano
Se o modelo jusnaturalista tinha em sua essência a oposição estado natural versus estado civil, este novo modelo, embora rompendo essa dicotomia, baseia-se numa outra oposição: sociedade civil versus
sociedade política 25. Norberto Bobbio afirma, entretanto, que Hegel deve ser visto como o coroamento do jusnaturalismo, pois se entendemos esse modelo como a busca da concepção do Estado-razão, é em Hegel que ele a encontra de forma mais elaborada. Por outro lado, ele é também o maior crítico do jusnaturalismo, recolocando a questão em novos termos.
"Com Hegel, o modelo jusnaturalista chegou à sua conclusão. Mas a filosofia de Hegel é não apenas uma antítese, mas também uma síntese. Tudo o que a filosofia política do jusnaturalismo criou não é expulso do seu sistema, mas incluído e superado (o mesmo ocorre com o conjunto dos conceitos herdados através do modelo aristotélico)." 26
O modelo hegelo-marxiano só se constituirá como verdadeira antítese ao jusnaturalismo ao incorporar, sobre a estrutura pensada por Hegel, as considerações levantadas mais tarde por Marx, que retoma a concepção de Rousseau do Estado como instrumento de dominação para a manutenção da riqueza de alguns em detrimento de muitos outros, mas tomando essa característica como essencial e inerente ao conceito mesmo de Estado e não como uma corrupção contingente do conceito, como para o filósofo genebrino.
A primeira grande diferença de Hegel com os jusnaturalistas diz respeito à história: enquanto os filósofos que pensavam o Estado como resultado de um pacto social o estado natural era uma hipótese de trabalho que se colocava fora da história e para além de qualquer perspectiva histórica, o que equivale a afirmar que o Estado não tem história ou, pelo menos, que a história não é fundamental para sua elucidação conceitual, para o filósofo alemão o Estado só pode ser compreendido em sua perspectiva histórica, ela é a chave para sua apreensão. Numa das passagens da Filosofia do Direito, ele critica essa perspectiva de criticar a realidade através da concepção de um "Estado Ideal":
"(...) conquistando o poder, estas abstrações produziram por um lado o espetáculo mais grandioso jamais visto pela história humana: recomeçar a priori, e pelo pensamento, a constituição de um grande Estado real, subvertendo tudo o que existe e é dado, querendo dar-lhe como fundamento um sistema social imaginado; de outra parte, como não são senão abstrações sem Idéia, engendraram, nesta tentativa, os acontecimentos mais horríveis e os mais cruéis." 27
Contrariando a Rousseau e aos jusnaturalistas em geral, Hegel considera não que os indivíduos constituam o Estado, mas que, ao contrário, os indivíduos só são possíveis no e através do Estado:
"O Estado é 1) primeiramente a sua formação interna, como desenvolvimento que se refere a si mesmo - o direito interno dos Estados ou a Constituição. É depois 2) o indivíduo particular, e por conseguinte em relação com outros indivíduos particulares - o que dá lugar ao direito externo dos Estados. Mas 3) esses espíritos particulares são apenas momentos no desenvolvimento da idéia universal do espírito na sua realidade; e esta é a história do mundo, ou história universal."28
Percebe-se, pois, que para Hegel a racionalidade está no próprio Estado, que "é a substância ética consciente de si" 29 e condição da racionalidade dos indivíduos e não na decisão destes de abdicar do estado de natureza instituindo a sociedade política. Feitas estas considerações, podemos passar para a questão central deste modelo que é, como já foi dito, a oposição sociedade civil versus Estado (ou sociedade política).
Hegel é o primeiro filósofo da política a fazer esta distinção, na Filosofia do Direito, onde demonstra que uma coisa é a esfera social que trata dos interesses comunitários porém privados, outra é a esfera social que trata dos interesses comunitários e comuns a todos os indivíduos. Assim Gildo M. Brandão define essas duas esferas na perspectiva de Hegel:
"A sociedade civil (Bürgerliche Gesellschaft) é definida como um sistema de carecimentos, estrutura de dependências recíprocas onde os indivíduos satisfazem as suas necessidades através do trabalho, da divisão do trabalho e da troca; e asseguram a defesa de suas liberdades, propriedades e interesses através da administração da justiça e das corporações. Trata-se da esfera dos interesses privados, econômico-corporativos e antagônicos entre si.
"A ela se contrapõe o Estado político, isto é, a esfera dos interesses públicos e universais, na qual aquelas contradições estão mediatizadas e superadas. O Estado não é, assim, expressão ou reflexo do antagonismo social, a própria demonstração prática de que a contradição é irreconciliável, como dirá mais tarde Engels, mas é esta divisão superada, a unidade recomposta e reconciliada consigo mesma. A marca distintiva do Estado é esta unidade, que não é uma unidade qualquer, mas a unidade substancial que traz o indivíduo à sua realidade efetiva e corporifica a mais alta expressão da liberdade."30
A concepção marxiana desta oposição fundamental aparece de forma bastante clara no prefácio à obra que seria o germe de O Capital, a Contribuição à Crítica da Economia Política:
"Minha investigação desembocou no seguinte resultado: relações jurídicas, tais como formas de Estado, não podem ser compreendidas nem a partir de si mesmas, nem a partir do assim chamado desenvolvimento geral do espírito humano, mas, pelo contrário, elas se enraízam nas relações materiais de vida, cuja totalidade foi resumida por Hegel sob o nome de 'sociedade civil' (Bürgerliche Gesellschaft), seguindo os ingleses e franceses do século XVIII; mas que a anatomia da sociedade burguesa (Bürgerliche Gesellschaft) deve ser procurada na Economia Política (...): na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual." 31
Assim, a sociedade civil é anterior e determinante da estrutura do Estado: a política depende da economia de uma sociedade, na clássica formulação de Marx. Invertendo a concepção de Hegel, de que o Estado é determinante da história, Marx afirma que é a história da produção social dos homens, ao contrário, que determina a estrutura do Estado. Buscando na história da humanidade, Marx perceberá que em momento algum o Estado foi o representante dos interesses coletivos, nem tampouco o promotor de uma "vontade geral"; ao contrário, o Estado foi sempre aquilo que já havia denunciado Rousseau, um instrumento nas mãos de um determinado grupo social, usado para conquistar e manter determinados privilégios.
Esta concepção marca o divórcio da sociedade civil com o Estado: este está acima dela e, embora por ela determinado, tem um grau de independência que lhe permite fixar regras e leis de modo a perpetuar
essa mesma sociedade civil, mantendo os privilégios e infortúnios desta dada organização social. A liberdade é, pois, impossível dentro dos limites do Estado. Contrário a Rousseau e selando o rompimento com o jusnaturalismo, Marx vê no Estado uma forma necessária apenas para as
organizações sociais de exploração e afirma que apenas a extinção do Estado poderá dar origem à verdadeira história humana, o reino da liberdade sonhado por Rousseau. A realização da sociedade humana passa, pois, pela destruição do Estado, e não por sua instituição, como pensavam os filósofos jusnaturalistas.
Concluindo, o conceito de Estado moderno é resultado de um longo processo de elaboração filosófica que acompanha a constituição histórico-social do Estado-nação, da dissolução do Estado teológico medieval até o pretenso Estado democrático de nossos dias, passando pelas monarquias absolutas e pelas revoluções liberais. Da busca de um Estado-razão pelos jusnaturalistas à concepção marxiana de um Estado como superestrutura da organização econômica da sociedade, passou-se do conceito de um
Estado "instituidor-instituído" da sociedade para o conceito de um Estado que não se identifica diretamente com a sociedade, sendo mesmo um reflexo dela.
A relação dialética de mútua influência do Estado com a sociedade civil é exposta de forma muito simples e clara pelo economista Luis Carlos Bresser Pereira:
"Compreendido nestes termos, o Estado é, assim, um sistema de poder organizado que se relaciona dialeticamente com outro sistema de poder difuso mas efetivo - a sociedade civil. A sociedade civil é, em última análise, a forma pela qual a classe dominante (ou as classes dominantes) se organiza(m) fora do Estado para controlá-lo e pô-lo a seu serviço. A sociedade civil não se confunde portanto com a população ou com o povo. O Estado exerce seu poder sobre a sociedade civil e sobre o povo. Por outro lado, a sociedade civil é fonte de poder do Estado e ao mesmo tempo estabelece limites e condicionamentos para o exercício desse poder." 32
As relações de força no jogo de poder entre Estado e sociedade civil são melhor delimitadas mais adiante:
"O Estado se democratiza na medida em que a sociedade civil amplia suas bases e eventualmente inclui nelas os trabalhadores e portanto todo o povo. É também condição para a democratização do Estado que este fique sob controle da sociedade civil assim ampliada e não vice-versa. Na realidade ocorrerá um processo dialético entre a sociedade civil e o Estado, um controlando o outro e vice-versa. Ao mesmo tempo em que nas sociedades capitalistas modernas amplia-se a base da sociedade civil, com uma participação crescente, ainda que nitidamente subordinada, dos trabalhadores, amplia-se também o próprio aparelho do Estado. E ao ampliar-se o aparelho do Estado, tende ele a ganhar ou pretender ganhar autonomia em relação à sociedade civil." 33
2. O Estado Capitalista
O Estado moderno, cuja conceituação vimos explanando, cristaliza-se historicamente no Estado capitalista; não seria exagero afirmar que a busca iniciada por Maquiavel de descrever a política como ela realmente é, em oposição às utopias normativas clássicas que remontam à Aristóteles e a Platão, são esforços no sentido de conceituar esse Estado nascente que se desenvolve paulatinamente. Boa parte desta busca seria sistematizada por Marx no século dezenove com suas análises econômicas e políticas do capitalismo. Como as conceituações filosófico-políticas não são construídas no vazio das abstrações puras, mas em relação direta com as condições materiais experimentadas, traçaremos agora algumas das características que o Estado capitalista assume ao longo da história.
O Estado capitalista, desde suas formas mais arcaicas, constitui-se a partir e através da derrocada do Estado feudal. Como fruto e instrumento de uma nova organização sócio-econômica, abandona e mesmo contrapõe-se a muitas das características daquela estrutura política que ele vem a substituir; por outro lado, muitas das características dos antigos sistemas políticos persistem, mascaradas ou não, na estrutura do Estado capitalista. Essa característica já era percebida por Tocqueville ainda na primeira metade do século dezenove, quando ele afirmava que as sociedades democráticas modernas substituíam a sociedade hierárquica antiga, mas que nem por isso substituíam ou aboliam a hierarquia mesma. Isso pode ser notado, por exemplo, em O Antigo Regime e a Revolução, quando ele fala da situação das transformações sociais e políticas na Inglaterra.
"Na Inglaterra, onde à primeira vista se poderia dizer que a antiga constituição da Europa se encontra ainda em vigor, ocorre a mesma coisa. Se esquecermos os velhos nomes e descartarmos as velhas formas, perceberemos que desde o século XVII o sistema feudal fora aí abolido em sua substância: as classes que se mesclam entre si, uma nobreza apagada, uma aristocracia aberta, a riqueza transformada em poder, igualdade perante a lei, igualdade dos encargos, liberdade de imprensa e debates públicos. Todos princípios novos e desconhecidos pela sociedade da Idade Média. Ora, foram precisamente essas novidades que, introduzidas lenta e habilmente num velho corpo, o reanimaram sem o risco de dissolvê-lo e, embora mantendo suas formas antigas, deram-lhe um novo vigor. No século XVII, a Inglaterra já é, no seu todo, uma nação moderna, com a peculiaridade de haver preservado, como se fossem embalsamados, alguns restos da Idade Média." 34
Embora seja um aristocrata que argumenta no sentido de resgatar determinados privilégios abolidos durante a Revolução em França, a argúcia de Tocqueville identifica que as mudanças ainda que profundas, rompem com uma certa estrutura, mas não com a estrutura mesma; isto é, o Estado muda de mãos e de feições, mas continua Estado e, portanto, atrelado a uma certa estrutura política que deve privilegiar a dominação, seja ela qual for. Essa mudança no tipo de dominação - absolutista ou
democrática, mas ainda dominação - é melhor tratada ao longo de uma outra obra do filósofo francês, A Democracia na América. A citação é um pouco longa, mas necessária para que seja possível acompanhar a estrutura de sua argumentação:
"Se quisesse imaginar com que traços novos o despotismo poderia produzir-se no mundo, veria uma multidão incontável de homens semelhantes e iguais, que se movem sem cessar para alcançarem pequenos e vulgares prazeres, de que enchem a própria alma. Cada um deles, separado dos outros, é como que estranho ao destino de todos eles: seus filhos e amigos particulares formam, para ele, toda a espécie humana; quanto ao restante de seus concidadãos, está ao lado deles, mas não os vê; toca-os, mas não os sente; só existe em si mesmo e para si mesmo e, se lhe resta ainda uma família, pode-se dizer que não tem mais pátria.
"Acima desses homens erige-se um poder imenso e tutelar que se encarrega sozinho de assegurar-lhes os prazeres e de velar-lhes a sorte. Este poder é absoluto, minucioso, regular, previdente e suave. Assemelhar-se-ia ao poder paterno, e, com ele, teria como objetivo preparar os homens para a idade viril; mas, ao contrário, procura mantê-los irrevogavelmente na infância; tem prazer em que os cidadãos se regozijem, desde que não pensem em outra coisa.(...)"
"Após ter assim tomado em suas mãos poderosas cada indivíduo e após ter-lhes dado a forma que bem quis, o soberano estende os braços sobre toda a sociedade; cobre-lhe a superfície com uma rede de pequenas regras complicadas, minuciosas e uniformes, através das quais os espíritos mais originais e as almas mais vigorosas não conseguiriam aparecer para sobressair na massa; não dobra as vontades, amolece-as, inclina-as e as dirige; raramente força a agir, mas opõe-se freqüentemente à ação; não destrói, impede o nascimento; não tiraniza, atrapalha, comprime, enerva, arrefece, embota, reduz, enfim, cada nação a nada mais ser que uma manada de animais tímidos e industriosos, cujo pastor é o governo." 35
Tocqueville demonstra, assim, que mesmo o Estado que se coloca como democrático e igualitário é ainda uma forma de dominação; quiçá uma dominação ainda mais terrível, por ser mais velada e estar apoiada em características bastante profundas do ser humano, como a fuga da responsabilidade: se existe algo ou alguém que nos protege e faz por nós, sem que tenhamos - aparentemente - que nos submeter, por que não aceitar de bom grado? É certo que o aristocrata francês está falando contra o princípio da igualdade, que do seu ponto de vista seria o responsável por essa uniformização que possibilitaria tal tipo de dominação; atirando num alvo, acerta, porém, em outro: o Estado moderno
"democrático" continua sendo Estado, afastado da sociedade e instrumento de dominação, o que equivale a dizer que a igualdade por ele criticada é apenas jurídica, não existindo de fato, pois se há uma classe de políticos e/ou funcionários que está acima da sociedade, já existe uma diferença de classes e está sepultada, na prática, qualquer perspectiva de igualdade. Seria preciso, porém, ainda um par de décadas para que Marx denunciasse a farsa da igualdade da democracia capitalista, apesar dos
inegáveis avanços políticos que ela representa com relação a formas políticas anteriores.
É importante salientar, voltando à nossa linha de raciocínio, que mesmo no Estado Absolutista que, a rigor, é ainda uma formação pré-capitalista, já estão presentes características que culminariam nessa forma mais desenvolvida do Estado moderno. Para tocar em dois pontos apenas, mas que são fundamentais, devemos lembrar que Hobbes, um dos principais teóricos do Absolutismo advogava que a constituição do Estado devia-se a uma busca de segurança vital e segurança do direito de propriedade, o que é já um prenúncio dos interesses capitalistas que tomavam forma aos poucos e ganhavam cada vez mais importância social.
Um segundo ponto, ainda mais fundamental, é que o processo analisado por Marx no livro primeiro d' O Capital no capítulo denominado A Chamada Acumulação Primitiva, que seria a base sobre a qual se ergueria o sistema capitalista de produção, acontece principalmente durante a existência do Estado Absolutista, principalmente durante o Mercantilismo e a Revolução Comercial.
A instituição do Estado capitalista traz uma inovação no campo econômico em relação aos sistemas anteriores: a apropriação do excedente econômico pela classe dominante não se dá mais através da utilização direta da força do Estado, através de tributos ou da escravização, mas sim através dos mecanismos do mercado, via aquela sutil violência expropriadora que Marx descobriu e a qual chamou mais-valia. É novamente Bresser Pereira quem vem em nosso auxílio:
"A mais-valia é apropriada pelo capitalista através da troca de bens e serviços de acordo com seus respectivos valores. Se toda mercadoria tem seu valor correspondente à quantidade de trabalho socialmente necessário para produzi-la, e se no capitalismo o trabalho também é uma mercadoria como qualquer outra, as leis do mercado indicam que se deve pagar pelo trabalho apenas o correspondente ao custo de sua reprodução social. O preço da mercadoria força de trabalho, ou seja, o salário, não depende do que o trabalhador produz, mas de seu custo de reprodução. Logo, basta ao capitalista escolher bens para serem produzidos que tenham uma quantidade de trabalho neles incorporada maior do que o respectivo salário para que se produza uma mais-valia, depois de todos terem sido pagos exatamente de acordo com os respectivos valores. Desta forma, o capitalista, baseado na propriedade dos meios de produção e na redução dos trabalhadores à condição de trabalhadores assalariados, apropria-se da mais-valia, sob a forma de lucros, juros, aluguéis e, ao mesmo tempo, pode afirmar que todas as trocas realizadas no mercado foram feitas exatamente de acordo com os respectivos valores. A violência direta para apropriação do excedente, com a utilização do poder do Estado, tornava-se desnecessária." 36
É essa peculiaridade intrínseca e particular do sistema capitalista de produção que permite a gênese de um novo Estado, em substituição ao Estado Absolutista que havia garantido as condições necessariamente totalitárias que permitiram a primitiva acumulação de capital sem a qual o capitalismo não teria como constituir-se em modo de produção socialmente dominante.
O novo Estado que surge é o Liberal, aquele que, em oposição aos anteriores, não precisaria exercer um forte controle sobre a economia, posto que o controle era anterior à ação mesma do Estado. Assumindo o poder através deste Estado Liberal e controlando-o por mais de um século, a burguesia tem condições de disseminar a ideologia do não-intervencionismo, da queda das barreiras econômicas e da des-regulamentação, como forma de abrir caminho para suas atividades crescentes e seu voraz apetite.
Politicamente, o novo Estado pode assumir também uma feição muito mais democrática, em consonância com seus objetivos econômicos, posto que o controle da economia e da expropriação do excedente era regulado internamente e o aparelho repressivo estatal precisaria ser acionado apenas em casos extremos. Nesse momento do desenvolvimento do Estado Capitalista, a força do Estado estava tremendamente diminuída, se comparada com a força da sociedade civil, nos termos aqui já expostos.
O crescimento das empresas, operadoras básicas do mercado, com a conseqüente formação de monopólios e oligopólios leva a uma crise no poder de auto-regulamentação do mercado, sendo necessário que o Estado voltasse a intervir na economia para regular o mercado; aparece então uma nova feição do Estado Capitalista, marcando uma nova fase, a do Estado Regulador. Bresser Pereira 37 afirma que países que tiveram retardada sua revolução industrial, como Japão, Rússia e Alemanha,
nem chegaram a conhecer o Estado Liberal, assumindo a plenitude do Capitalismo com e através do Estado Regulador. Este alcançaria, porém, mesmo os países tradicionalmente liberais, apesar das resistências. Nessa nova feição do Estado Capitalista, cresce enormemente o poder e a atuação do aparato político:
"Quando se fala em capitalismo monopolista do Estado ou simplesmente capitalismo de Estado, quer-se referir a uma formação social dominantemente capitalista, mas na qual o Estado adquiriu um papel fundamental, não apenas no campo político, mas também no campo econômico. O Estado abandonou o laissez faire para se transformar em órgão regulador e motor da economia. Através do planejamento econômico, da política econômica e das atividades empresariais diretas, o Estado, em sua função reguladora, substitui em parte o mercado, definindo preços, salários e taxas de juros, tributando salários e ordenados e lucros, estabelecendo prioridades para os investimentos privados, orientando o consumo através de taxas diferenciadas; em sua função motora realiza grandes despesas, e torna-se ele próprio empresário, responsável por ampla parcela da acumulação de capital, na medida em que implanta um poderoso setor produtivo estatal."38
Esse crescimento do poder e atuação do Estado não implica necessariamente, porém, numa diminuição do poder da sociedade civil, que continua forte; constrói-se todavia, novo equilíbrio de forças, diverso
daquele do Estado Liberal.
Essas duas tipologias do Estado Capitalista (Liberal e Regulador), complementadas por uma terceira que se desenvolveu nos países de economia dependente - os subdesenvolvidos - e, segundo Pereira, também nos países do Leste com o malogro da revolução socialista, a do Estado Tecnoburacrático, caracterizada pela constituição de uma classe administrativa cooptada da burguesia que assume as funções políticas do Estado e as funções econômicas da acumulação do capital, constituem um
panorama geral da atualidade do Estado moderno 39.
Assistimos hoje a um certo impasse nestas feições do Estado, com uma nova onda de discussões em torno de um neo-liberalismo, arauto de não ingerência estatal na economia, ao qual se contrapõem os defensores da função regulamentadora do Estado. Independentemente da feição específica que assuma, porém, seja ela mais ou menos "liberalizante", o Estado capitalista não se afasta de suas características básicas que, como já alertávamos juntamente com Tocqueville desde o início, estavam também já presentes nas organizações político-estatais anteriores.
Autor: Silvio Gallo
http://www.cedap.assis.unesp.br/cantolibertario/textos/0007.html
Em uma pesquisa antropológica visando encontrar as condições de formação do Estado, buscando suas relações intrínsecas e extrínsecas com a organização humana, assim Lawrence Krader define essa instituição política:
"Na organização do Estado, o homem concentra seu poder sobre o homem em um único cargo oficial. O monopólio da foça física de que goza esse cargo é absoluto. Pode, sem dúvida, canalizar seu poder mediante delegação específica; nos demais casos, e desde que o Estado não seja derrubado, esse poder continua a disposição da autoridade central.
Em mãos do Estado o poder adota diversas formas e no uso de suas atribuições pode proibir, matar, encarcerar, escravizar, multar. Mas as forças do Estado não têm projeções meramente negativas. O Estado se apóia nas forças integradoras da sociedade: o amor, a lealdade, a dependência recíproca, a fé religiosa, a tradição e a força do costume.
"Além disso, o Estado é uma autoridade central (monarca, presidente) com poder sobre uma população que vive dentro de um território determinado; mas é mais que uma unidade física, territorial ou legal; o poder político central transforma a unidade nacional, a representação, a defesa e o controle dessa unidade em uma ideologia. A invasão do território de um Estado supõe uma dupla ameaça: de um lado a invasão diminui a área geográfica do Estado, e de outro, diminui o âmbito da autoridade central e, portanto, o poder de que desfruta. Quando está em perigo a extensão geográfica de um Estado, se vê igualmente ameaçada a ideologia da unidade do Estado, o território do Estado e o povo. A lealdade ao Estado se baseia, em parte, na aceitação de seu poder e na fé neste poder. A debilidade pode ser uma ameaça para essa fé ou, pelo contrário, pode ser que a debilidade do poder atraia para ele mais adesão do que nunca. Mas, em qualquer caso, o povo reage ao Estado e ao seu destino, e não apenas à mera perda de população, território ou riqueza." 1
Podemos perceber, assim, que a institucionalização do Estado baseia-se em características básicas do homem enquanto indivíduo, para fazer dele membro efetivo de uma comunidade. Tal abertura política faz-se de tal maneira, que o membro de uma comunidade centralizada em um Estado é capaz de abdicar de si mesmo para defender não apenas as realidades que este Estado representa (o território, a riqueza ou a população) mas também a própria abstração da potência de todos centralizada em um
único aparato político, o Estado enquanto tal.
Historicamente, vemos que o Estado, se não esteve sempre presente na organização humana 2, é uma constante à medida em que cresce o grau de abrangência populacional e conseqüente complexidade das organizações. Claro que assume as mais variadas formas, de acordo com as condições de cada tempo e lugar, dos Estados teocráticos e centralizados da antiguidade oriental aos Estados democráticos e mesmo totalitários de nossos dias. O fato é que o Estado tal qual conhecemos hoje, embora guarde profundas semelhanças com instituições políticas antigas, é fruto de um processo de formação que se inicia no final da Idade Média, com a dissolução do Estado teocrático feudal. Daremos ênfase aqui, muito mais conceitual do que histórica, àquele que convencionou-se chamar de
Estado Moderno.
Entretanto, mesmo o Estado moderno apresenta variações, e o que conhecemos hoje é resultado de um processo de desenvolvimento ao longo dos séculos. O historiador alemão Werner Naef identifica três grandes tipologias no processo de desenvolvimento do Estado moderno: a primeira delas seria o Estado estamental, predominante durante os séculos XV e XVI, responsável pela concentração dos poderes políticos; a segunda seria caracterizada pelo Estado monárquico absoluto, que predomina nos séculos XVII e XVIII e representa uma segunda onda de centralização do poder, agora unicamente nas mãos do monarca; a terceira grande tipologia do Estado moderno é representada pelo Estado democrático, que começa a surgir com a Revolução Francesa e consolida-se com a fixação dos direitos do homem e do cidadão 3.
No aspecto conceitual que nos interessa mais diretamente, o Estado moderno dominou as preocupações filosóficas durante séculos, sensibilizando pensadores do calibre de Maquiavel e de Marx, por exemplo. De acordo com Norberto Bobbio, a filosofia política moderna e suas concepções de Estado e sociedade podem ser agrupadas em duas grandes vertentes, o modelo jusnaturalista e o modelo hegelo-marxiano, que se contrapõem um ao outro.
O jusnaturalismo abarca de Hobbes a Rousseau, passando por Locke, Spinoza e Kant; o modelo hegelo-marxiano, por sua vez, como já acena o próprio nome, abarca duas perspectivas que, mesmo sendo a segunda uma inversão da primeira, guardam entre si a identidade estrutural.
O que caracteriza o modelo jusnaturalista é, antes de tudo, o seu objetivo de desenvolver uma teoria racional do Estado; se o modelo tradicional de concepção política que remonta a Aristóteles explicava o Estado como uma construção histórica, partindo de círculos menores (família, aldeia) para círculos cada vez mais abrangentes (a Pólis) que culminam no Estado, que é a forma mais perfeita de organização, os jusnaturalistas vão se dedicar a uma reconstrução racional, buscando hipóteses de trabalho que permitam a percepção do sentido do Estado. Assim, ele aparece como a reunião de
muitos indivíduos que formam um indivíduo único, com uma única vontade, expressão da vontade geral:
"O Estado não é como uma família ampliada, mas como um grande indivíduo, do qual são partes indissociáveis os pequenos indivíduos que lhe dão vida: basta pensar na figura posta no frontispício do Leviatã, na qual se vê um homem gigantesco (com a coroa na cabeça e, nas duas mãos, a espada e o báculo, símbolo dos dois poderes), cujo corpo é composto de vários homens pequenos. Rousseau expressa o mesmo conceito ao definir o Estado como o 'eu comum', imagem muito diversa da de 'pai comum'. Na base desse modelo, portanto, está uma concepção individualista do Estado, por um lado, e, por outro, uma concepção estatista (que significa racionalizada) da sociedade. Ou os indivíduos sem Estado, ou o Estado composto apenas de indivíduos. Entre os indivíduos e o Estado, não há lugar para intermediários. E também essa é uma extrema simplificação dos termos do problema, à qual conduz inevitavelmente uma constituição que quer ser racional e, enquanto tal, sacrifica em nome da unidade as várias e diferentes instituições produzidas pela irracionalidade da história; mas é também, ao mesmo tempo, o reflexo do processo de concentração do poder que marca o desenvolvimento do Estado moderno. Uma vez constituído o Estado, toda outra forma de associação, incluída a Igreja, para não falar das corporações ou dos partidos ou da própria família, das sociedades parciais, deixa de ter qualquer valor de ordenamento jurídico autônomo." 5
O ponto chave do modelo jusnaturalista é o da legitimidade do poder político do qual é detentor o Estado; se no modelo aristotélico tradicional a legitimidade vem da natureza (sendo o Estado resultado do crescimento de esferas sociais menores, desde a família, a legitimidade é dada pelo pátrio poder: o soberano assume para os súditos a figura de pai) agora isso já não é mais possível. Se a legitimidade não é natural, é necessário que se encontre uma forma pela qual ela seja aceita por aqueles que se submetem. Em outras palavras, é necessário que haja um consentimento dos súditos para com a autoridade do Estado:
"Isso significa dizer que o governante, ao contrário do pai e do dono de escravos, necessita que sua própria autoridade obtenha consentimento para que seja considerada como legítima. Em princípio, um soberano que governa como um pai, segundo o modelo do Estado paternalista, ou, pior ainda, como um senhor de escravos segundo o modelo do Estado despótico, não é um governo legítimo e os súditos não são obrigados a lhe
obedecer." 6
A hipótese racional encontrada pelos filósofos deste modelo está na noção de pacto ou contrato social 7. A idéia do pacto entre os indivíduos para constituir o Estado, cada um deles delegando e abdicando de sua própria autoridade em nome da autoridade única do soberano que é, ele próprio, um indivíduo, é o centro das teorias contratualistas do jusnaturalismo. O contrato social marca, fora do tempo e do espaço, a transição do estado de natureza para o estado civil; o contrato social é o pacto civilizador
que faz a ponte conceitual entre a barbárie e a civilização.
Antes do Estado não há sociedade 8 ; no estado de natureza os homens não passam de indivíduos, não constituem uma comunidade. Em guerra de todos contra todos (Hobbes) ou não (Rousseau), no estado de natureza a articulação social não é possível. Já no estado civil - ou seja, com a instituição do Estado - os homens passam a viver em comunidade, na qual adquirem certos direitos, desde que cumpram seus deveres para com os outros e para com o Estado. Estado de natureza e estado civil são antagônicos e mutuamente excludentes:
"Entre os dois estados, há uma relação de contraposição: o estado natural é o estado não político, e o estado político é o estado não natural. Em outras palavras, o estado político surge como antítese do estado natural, do qual tem a função de eliminar os defeitos, e o estado natural ressurge como antítese do estado político, quando este deixa de cumprir a finalidade para a qual foi instituído. A contraposição entre os dois estados consiste no fato de serem os elementos constitutivos do primeiro indivíduos singulares, isolados, não associados, embora associáveis, que atuam de fato seguindo não a razão (que permanece oculta ou impotente), mas as paixões, os instintos ou os interesses; o elemento constitutivo do segundo é a união dos indivíduos isolados e dispersos numa sociedade perpétua e exclusiva, que é a única a permitir a realização de uma vida conforma a razão. Precisamente porque estado de natureza e estado civil são concebidos como dois momentos antitéticos, a passagem de um para outro não ocorre necessariamente pela força das coisas, mas por meio de uma ou mais convenções, ou seja, por meio de um ou mais atos voluntários dos próprios indivíduos interessados em sair do estado de natureza, ou seja, em viverem conforme a razão." 9
O que fundamenta o Estado é, pois, na visão dos jusnaturalistas, o desejo dos indivíduos de viverem de acordo com a razão - o que vai de encontro com sua perspectiva de produzir uma teoria racional do Estado - e não mais de acordo com os instintos, paixões e interesses puramente individuais e egoístas. Acontece que a instituição do Estado traz um sério problema: como conciliar o bem individual da liberdade com a necessária obediência que cada um dos indivíduos deve prestar ao Estado? 10
Vejamos, brevemente, algumas considerações dos principais filósofos jusnaturalistas sobre a questão.
Hobbes: O Estado como segurança
Para Thomas Hobbes, o primeiro grande filósofo contratualista, essa questão não se coloca: o indivíduo assume uma renúncia quase total11 , prestando obediência ao soberano instituído pelo pacto em nome de sua segurança. Tal abdicação da liberdade deve-se à concepção de Hobbes do estado de natureza: a guerra total, a luta generalizada (bellum omnium contra omnes), que dá-se por ser o homem, naturalmente, o lobo do homem (homo homini lupus).
A reflexão do filósofo é bastante curiosa: por natureza, todos os homens são absolutamente iguais, nada há que os diferencie e, portanto, um jamais poderá ter poderes sobre os outros12 : dessa igualdade total advém a desconfiança e, dela, a guerra. A guerra decorre do fato de que um indivíduo precisa atacar o outro, seja para vencê-lo seja para evitar, de antemão, que seja por ele atacado. Numa tal situação, a guerra que, em princípio é racional, torna-se absurda, pois não há vencedor(es) possível(eis). Numa tal guerra não existem também injustiças, posto que onde não impera a lei não é possível a definição do que é justo; ainda por outro lado, neste estado de natureza a propriedade tampouco é possível, pois não há como conseguir e defender coisas em meio a uma guerra de todos contra todos. Assim, determinadas paixões humanas fazem com que a razão institua o Estado13.
É no capítulo XVII do Leviatã que Hobbes define a constituição do Estado através de um pacto entre os indivíduos no qual eles consentem em abdicar de suas vontades e liberdade individuais em nome da vontade de um único, que garantirá a paz através da lei e a segurança de todos os súditos. O homem não é um animal naturalmente social; a sociedade entre nós é instituída artificialmente e precisa ser artificial e racionalmente mantida: o pacto precisa ser renovado e garantido a cada momento, para que
haja sociedade. Daí decorre que o poder político só pode ser mantido através da força. A esse monopólio da força que faz com que a multidão se una num único indivíduo, que garantirá a segurança de todos, Hobbes chama Estado.
"A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda sua força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade (...) Feito isso, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas." 14
Assim, o medo da morte e o desejo de posse fazem com que os indivíduos ajam racionalmente e instituam, através do pacto, um poder político que os submeterá a todos, mas garantirá o seu direito de posse e sua segurança física. Abdica-se da liberdade em nome da segurança; troca-se a liberdade pela vida, enfim.
Locke: o Estado como garantia da propriedade
John Locke também lança mão da hipótese do estado de natureza para a construção de sua filosofia política. Contrariamente a Hobbes, porém, não vê nesse estado uma guerra permanente; segundo este filósofo, o fato de os homens viverem na mais absoluta liberdade não implica em que vivessem sem leis. No estado de natureza os homens seriam governados pela lei natural da razão, sendo seu princípio básico a preservação da vida; não se sairia agredindo e matando os outros indistintamente, portanto,
apenas para tirar-lhes as propriedades ou evitar um possível ataque.
Já no estado de natureza os homens estão aptos a possuir bens; de acordo com Locke, todo indivíduo já nasce proprietário de seu corpo e de sua capacidade de trabalho. Tudo aquilo que produzir, retirando ou transformando a natureza, através de seu próprio trabalho, será de sua propriedade:
"O trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos, pode dizer-se, são propriamente dele. Seja o que for que ele retire do estado que a natureza lhe forneceu e no qual o deixou, fica-lhe misturado ao próprio trabalho, juntando-se-lhe algo que lhe pertence, e, por isso mesmo, tornando-o propriedade dele. Retirando-o do estado comum em que a natureza o colocou, anexou-lhe por esse trabalho algo que o exclui do direito comum de outros homens. Desde que o trabalho é propriedade exclusiva do trabalhador, nenhum outro homem pode ter direito ao que se juntou, pelo menos quando houver bastante e igualmente de boa qualidade em comum para terceiros." 15
Mas se em seu estado natural os homens, além de gozarem da plena e absoluta liberdade, podem ainda ter acesso quase ilimitado à propriedade, o que faz com que eles abandonem esse estado, instituindo a sociedade civil?
Acontece que o produto do trabalho humano e o acesso à propriedade vão se complexificando paulatinamente; chega um momento em que há a necessidade de se arbitrar sobre esse direito, dadas as disputas que começam a surgir. Se todos são iguais, quem é o verdadeiro proprietário? Se todos são iguais, quem pode arbitrar essa questão? Se todos são iguais, como pode ser feita a justiça?
Assim, os homens reúnem-se em comunidade com o objetivo de facilitar a fruição do direito de propriedade que, mesmo possível em estado natural é incerta e insegura. Afirma o filósofo que "o objetivo grande e principal, portanto, da união dos homens em comunidade, colocando-se eles sob
governo, é a preservação da propriedade." 16
O que institui a sociedade civil e o Estado para realizar a função do arbítrio e da defesa do direito à propriedade para todos é, como em Hobbes, um pacto entre os homens, entre os indivíduos que comporão a assim criada comunidade. O consentimento dos homens na instituição da comunidade,
porém, difere entre os dois filósofos britânicos: para Hobbes, o contrato é um pacto de submissão que visa a instaurar uma situação contrária àquela que vigorava no estado de natureza, preservando a segurança de suas vidas; para Locke, ao contrário, o contrato apresenta-se como um pacto de
consentimento em que os indivíduos, longe de submeterem-se todos a um poder comum, concordam em instituir leis que preservem e garantam tudo aquilo que eles já desfrutavam no estado de natureza. O contrato social é para Locke, a garantia dos direitos naturais, e não a criação de outros direitos 17.
Para falar sobre as características do contrato que institui a sociedade política, Locke ampara-se nas características de uma associação civil, como é o casamento 18. No casamento, dois indivíduos consentem na união e só por isso ela é possível. Também assim acontece com o Estado: ele só é possível através do consentimento de todos os indivíduos em sua instauração.
"Sendo os homens, conforme acima dissemos, por natureza, todos livres, iguais e independentes, ninguém pode ser expulso de sua propriedade e submetido ao poder político de outrem sem dar consentimento. A maneira única em virtude da qual uma pessoa qualquer renuncia à liberdade natural e se reveste dos laços da sociedade civil consiste em concordar com outras pessoas em juntar-se e unir-se em comunidade para viverem com segurança, conforto e paz umas com as outras, gozando garantidamente das propriedades que tiverem e desfrutando de maior proteção contra quem quer que não faça parte dela(...) Quando qualquer número de homens consentiu desse modo em constituir uma comunidade ou governo, ficam, de fato, a ela incorporados e formam um corpo político no qual a maioria tem o direito de agir e resolver por todos." 19
Sem deter-mo-nos aqui nas formas expostas por Locke pelas quais se dá esse governo da maioria, devemos reiterar que para ele não há, na verdade, renúncia à liberdade, mas sim a instauração de uma nova modalidade dela, a liberdade civil, que não se contrapõe à liberdade natural, mas a preserva e a alarga. Preservando os direitos naturais ao torná-los políticos, o Estado não é segundo esse filósofo, um "mal necessário", mas a realização dos direitos humanos através do arbítrio do direito de propriedade, fazendo de todos felizes possuidores.
Rousseau: o Estado como promotor da "vontade geral"
O filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau pode ser visto como um opositor de Hobbes. Enquanto o este concebia o estado natural como guerra e o estado social como fonte de segurança individual, Rousseau afirmava o estado natural como fonte da liberdade e da igualdade, sendo essencialmente bom, enquanto que a sociedade política era a fonte da guerra, posto que instaurava a desigualdade entre os homens.
Em seu famoso Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1754/55), esse filósofo identifica o estado de natureza com a "idade do ouro", quando os homens eram todos livres e iguais entre si, vivendo em paz e harmonia. A origem da propriedade é também a origem da desigualdade, pois as diferenças naturais não devem ser levadas em conta, mas apenas aquela que instaura uma desigualdade de fato, que é a desigualdade social que aí se origina. A origem da propriedade é também a origem da sociedade, pois "o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo." 20
Com a propriedade, vem também o processo de acumulação de bens e, se uns acumulam, isso implica em que outros deixem de acumular. A propriedade é fonte das desigualdades, fonte da escravidão, da ganância e da violência e também é fonte da civilização. O contrato social que institui o Estado é visto por Rousseau não como resultado da ação de todos os indivíduos, como o viam Locke e Hobbes, mas como a ação dos indivíduos ricos coagindo aos mais pobres, na tentativa de garantir para si as benesses da propriedade 21.
Rousseau antecipa, assim, a visão do Estado como um instrumento de classe que seria enunciada por Marx no século seguinte, como veremos mais adiante. Entretanto, o revolucionário filósofo não considera a instituição política como essencialmente má, defensora de interesses individuais; a sociedade não é contrária ao estado natural, como queria Hobbes e, portanto, o Estado poderia ser organizado de forma a preservar os direitos naturais e a igualdade entre os indivíduos - a que fatalmente chegaria Locke, não fosse sua defesa intransigente do direito de propriedade.
Encantado com a "idade de ouro" do estado natural, mas defensor da civilização, Rousseau dedica-se a encontrar as formas de organizar os indivíduos socialmente de modo que sejam preservados seus direitos e características naturais, de modo a que o homem não se corrompa como nessa sociedade essencialmente má, na qual, apesar de "nascer livre, encontra-se sempre a ferros". Esse processo civilizador será examinado em Do Contrato Social.
Para que possa ser garantia da igualdade, sem alienar a liberdade humana, o pacto social deve abranger a todos os indivíduos. Ninguém pode ficar de fora pois, nesse caso, estabelecer-se-ia já uma desigualdade que corromperia a sociedade assim instituída. Diferentemente de Hobbes, o conjunto dos indivíduos não abdica de sua liberdade em nome de um único indivíduo, ao qual se submete, mas entrega a si mesmo ao controle de um indivíduo coletivo que é formado pela união de todos os que pactuam ao firmar o contrato social.
"Enfim, cada um dando-se a todos não se dá a ninguém e, não existindo um associado sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo, ganha-se o equivalente a tudo que se perde, e maior força para conservar o que se tem.
"Se separar-se, pois, do pacto social aquilo que não pertence a sua essência, ver-se-á que ele se reduz aos seguintes termos: 'Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a direção suprema da vontade geral, e recebemos, enquanto corpo, cada membro como parte indivisível do todo´." 23
A celebração de tal pacto dá origem a um corpo social, o Estado, que nada mais é do que a união de todos os indivíduos pactuantes num único indivíduo social; soberano aqui, não é o monarca como em Hobbes, mas o próprio Estado enquanto união dos indivíduos. Isto é, o todo é soberano com relação a cada uma das partes, todas elas iguais entre si. O filósofo prossegue:
"Imediatamente, esse ato de associação produz, em lugar da pessoa particular de cada contratante, um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quanto são os votos da assembléia, e que, por esse mesmo ato, ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. Essa pessoa pública, que se forma, desse modo, pela união de todas as outras, tomava antigamente o nome de cidade e, hoje, o de república ou de corpo político, o qual é chamado por seus membros de Estado quando passivo, soberano quando ativo, e potência quando comparado a seus semelhantes." 24
Deste modo, não há, em Rousseau, abdicação da liberdade para a instituição do Estado, posto que este nada mais é do que a reunião do conjunto dos indivíduos e deve ser a expressão da vontade geral, isto
é, a resultante das vontades individuais no que diz respeito às questões comuns e coletivas. Como na perspectiva deste filósofo a soberania não é do governo - os ocupantes da máquina administrativa - mas do povo enquanto conjunto dos indivíduos pactuantes, não há nunca submissão individual, pois no Estado se realiza a igualdade política de cada indivíduo, assim como sua liberdade se realiza ao obedecer a leis criadas por ele mesmo que não são jamais leis de exceção impostas por outrem.
O Modelo Hegelo-Marxiano
Se o modelo jusnaturalista tinha em sua essência a oposição estado natural versus estado civil, este novo modelo, embora rompendo essa dicotomia, baseia-se numa outra oposição: sociedade civil versus
sociedade política 25. Norberto Bobbio afirma, entretanto, que Hegel deve ser visto como o coroamento do jusnaturalismo, pois se entendemos esse modelo como a busca da concepção do Estado-razão, é em Hegel que ele a encontra de forma mais elaborada. Por outro lado, ele é também o maior crítico do jusnaturalismo, recolocando a questão em novos termos.
"Com Hegel, o modelo jusnaturalista chegou à sua conclusão. Mas a filosofia de Hegel é não apenas uma antítese, mas também uma síntese. Tudo o que a filosofia política do jusnaturalismo criou não é expulso do seu sistema, mas incluído e superado (o mesmo ocorre com o conjunto dos conceitos herdados através do modelo aristotélico)." 26
O modelo hegelo-marxiano só se constituirá como verdadeira antítese ao jusnaturalismo ao incorporar, sobre a estrutura pensada por Hegel, as considerações levantadas mais tarde por Marx, que retoma a concepção de Rousseau do Estado como instrumento de dominação para a manutenção da riqueza de alguns em detrimento de muitos outros, mas tomando essa característica como essencial e inerente ao conceito mesmo de Estado e não como uma corrupção contingente do conceito, como para o filósofo genebrino.
A primeira grande diferença de Hegel com os jusnaturalistas diz respeito à história: enquanto os filósofos que pensavam o Estado como resultado de um pacto social o estado natural era uma hipótese de trabalho que se colocava fora da história e para além de qualquer perspectiva histórica, o que equivale a afirmar que o Estado não tem história ou, pelo menos, que a história não é fundamental para sua elucidação conceitual, para o filósofo alemão o Estado só pode ser compreendido em sua perspectiva histórica, ela é a chave para sua apreensão. Numa das passagens da Filosofia do Direito, ele critica essa perspectiva de criticar a realidade através da concepção de um "Estado Ideal":
"(...) conquistando o poder, estas abstrações produziram por um lado o espetáculo mais grandioso jamais visto pela história humana: recomeçar a priori, e pelo pensamento, a constituição de um grande Estado real, subvertendo tudo o que existe e é dado, querendo dar-lhe como fundamento um sistema social imaginado; de outra parte, como não são senão abstrações sem Idéia, engendraram, nesta tentativa, os acontecimentos mais horríveis e os mais cruéis." 27
Contrariando a Rousseau e aos jusnaturalistas em geral, Hegel considera não que os indivíduos constituam o Estado, mas que, ao contrário, os indivíduos só são possíveis no e através do Estado:
"O Estado é 1) primeiramente a sua formação interna, como desenvolvimento que se refere a si mesmo - o direito interno dos Estados ou a Constituição. É depois 2) o indivíduo particular, e por conseguinte em relação com outros indivíduos particulares - o que dá lugar ao direito externo dos Estados. Mas 3) esses espíritos particulares são apenas momentos no desenvolvimento da idéia universal do espírito na sua realidade; e esta é a história do mundo, ou história universal."28
Percebe-se, pois, que para Hegel a racionalidade está no próprio Estado, que "é a substância ética consciente de si" 29 e condição da racionalidade dos indivíduos e não na decisão destes de abdicar do estado de natureza instituindo a sociedade política. Feitas estas considerações, podemos passar para a questão central deste modelo que é, como já foi dito, a oposição sociedade civil versus Estado (ou sociedade política).
Hegel é o primeiro filósofo da política a fazer esta distinção, na Filosofia do Direito, onde demonstra que uma coisa é a esfera social que trata dos interesses comunitários porém privados, outra é a esfera social que trata dos interesses comunitários e comuns a todos os indivíduos. Assim Gildo M. Brandão define essas duas esferas na perspectiva de Hegel:
"A sociedade civil (Bürgerliche Gesellschaft) é definida como um sistema de carecimentos, estrutura de dependências recíprocas onde os indivíduos satisfazem as suas necessidades através do trabalho, da divisão do trabalho e da troca; e asseguram a defesa de suas liberdades, propriedades e interesses através da administração da justiça e das corporações. Trata-se da esfera dos interesses privados, econômico-corporativos e antagônicos entre si.
"A ela se contrapõe o Estado político, isto é, a esfera dos interesses públicos e universais, na qual aquelas contradições estão mediatizadas e superadas. O Estado não é, assim, expressão ou reflexo do antagonismo social, a própria demonstração prática de que a contradição é irreconciliável, como dirá mais tarde Engels, mas é esta divisão superada, a unidade recomposta e reconciliada consigo mesma. A marca distintiva do Estado é esta unidade, que não é uma unidade qualquer, mas a unidade substancial que traz o indivíduo à sua realidade efetiva e corporifica a mais alta expressão da liberdade."30
A concepção marxiana desta oposição fundamental aparece de forma bastante clara no prefácio à obra que seria o germe de O Capital, a Contribuição à Crítica da Economia Política:
"Minha investigação desembocou no seguinte resultado: relações jurídicas, tais como formas de Estado, não podem ser compreendidas nem a partir de si mesmas, nem a partir do assim chamado desenvolvimento geral do espírito humano, mas, pelo contrário, elas se enraízam nas relações materiais de vida, cuja totalidade foi resumida por Hegel sob o nome de 'sociedade civil' (Bürgerliche Gesellschaft), seguindo os ingleses e franceses do século XVIII; mas que a anatomia da sociedade burguesa (Bürgerliche Gesellschaft) deve ser procurada na Economia Política (...): na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual." 31
Assim, a sociedade civil é anterior e determinante da estrutura do Estado: a política depende da economia de uma sociedade, na clássica formulação de Marx. Invertendo a concepção de Hegel, de que o Estado é determinante da história, Marx afirma que é a história da produção social dos homens, ao contrário, que determina a estrutura do Estado. Buscando na história da humanidade, Marx perceberá que em momento algum o Estado foi o representante dos interesses coletivos, nem tampouco o promotor de uma "vontade geral"; ao contrário, o Estado foi sempre aquilo que já havia denunciado Rousseau, um instrumento nas mãos de um determinado grupo social, usado para conquistar e manter determinados privilégios.
Esta concepção marca o divórcio da sociedade civil com o Estado: este está acima dela e, embora por ela determinado, tem um grau de independência que lhe permite fixar regras e leis de modo a perpetuar
essa mesma sociedade civil, mantendo os privilégios e infortúnios desta dada organização social. A liberdade é, pois, impossível dentro dos limites do Estado. Contrário a Rousseau e selando o rompimento com o jusnaturalismo, Marx vê no Estado uma forma necessária apenas para as
organizações sociais de exploração e afirma que apenas a extinção do Estado poderá dar origem à verdadeira história humana, o reino da liberdade sonhado por Rousseau. A realização da sociedade humana passa, pois, pela destruição do Estado, e não por sua instituição, como pensavam os filósofos jusnaturalistas.
Concluindo, o conceito de Estado moderno é resultado de um longo processo de elaboração filosófica que acompanha a constituição histórico-social do Estado-nação, da dissolução do Estado teológico medieval até o pretenso Estado democrático de nossos dias, passando pelas monarquias absolutas e pelas revoluções liberais. Da busca de um Estado-razão pelos jusnaturalistas à concepção marxiana de um Estado como superestrutura da organização econômica da sociedade, passou-se do conceito de um
Estado "instituidor-instituído" da sociedade para o conceito de um Estado que não se identifica diretamente com a sociedade, sendo mesmo um reflexo dela.
A relação dialética de mútua influência do Estado com a sociedade civil é exposta de forma muito simples e clara pelo economista Luis Carlos Bresser Pereira:
"Compreendido nestes termos, o Estado é, assim, um sistema de poder organizado que se relaciona dialeticamente com outro sistema de poder difuso mas efetivo - a sociedade civil. A sociedade civil é, em última análise, a forma pela qual a classe dominante (ou as classes dominantes) se organiza(m) fora do Estado para controlá-lo e pô-lo a seu serviço. A sociedade civil não se confunde portanto com a população ou com o povo. O Estado exerce seu poder sobre a sociedade civil e sobre o povo. Por outro lado, a sociedade civil é fonte de poder do Estado e ao mesmo tempo estabelece limites e condicionamentos para o exercício desse poder." 32
As relações de força no jogo de poder entre Estado e sociedade civil são melhor delimitadas mais adiante:
"O Estado se democratiza na medida em que a sociedade civil amplia suas bases e eventualmente inclui nelas os trabalhadores e portanto todo o povo. É também condição para a democratização do Estado que este fique sob controle da sociedade civil assim ampliada e não vice-versa. Na realidade ocorrerá um processo dialético entre a sociedade civil e o Estado, um controlando o outro e vice-versa. Ao mesmo tempo em que nas sociedades capitalistas modernas amplia-se a base da sociedade civil, com uma participação crescente, ainda que nitidamente subordinada, dos trabalhadores, amplia-se também o próprio aparelho do Estado. E ao ampliar-se o aparelho do Estado, tende ele a ganhar ou pretender ganhar autonomia em relação à sociedade civil." 33
2. O Estado Capitalista
O Estado moderno, cuja conceituação vimos explanando, cristaliza-se historicamente no Estado capitalista; não seria exagero afirmar que a busca iniciada por Maquiavel de descrever a política como ela realmente é, em oposição às utopias normativas clássicas que remontam à Aristóteles e a Platão, são esforços no sentido de conceituar esse Estado nascente que se desenvolve paulatinamente. Boa parte desta busca seria sistematizada por Marx no século dezenove com suas análises econômicas e políticas do capitalismo. Como as conceituações filosófico-políticas não são construídas no vazio das abstrações puras, mas em relação direta com as condições materiais experimentadas, traçaremos agora algumas das características que o Estado capitalista assume ao longo da história.
O Estado capitalista, desde suas formas mais arcaicas, constitui-se a partir e através da derrocada do Estado feudal. Como fruto e instrumento de uma nova organização sócio-econômica, abandona e mesmo contrapõe-se a muitas das características daquela estrutura política que ele vem a substituir; por outro lado, muitas das características dos antigos sistemas políticos persistem, mascaradas ou não, na estrutura do Estado capitalista. Essa característica já era percebida por Tocqueville ainda na primeira metade do século dezenove, quando ele afirmava que as sociedades democráticas modernas substituíam a sociedade hierárquica antiga, mas que nem por isso substituíam ou aboliam a hierarquia mesma. Isso pode ser notado, por exemplo, em O Antigo Regime e a Revolução, quando ele fala da situação das transformações sociais e políticas na Inglaterra.
"Na Inglaterra, onde à primeira vista se poderia dizer que a antiga constituição da Europa se encontra ainda em vigor, ocorre a mesma coisa. Se esquecermos os velhos nomes e descartarmos as velhas formas, perceberemos que desde o século XVII o sistema feudal fora aí abolido em sua substância: as classes que se mesclam entre si, uma nobreza apagada, uma aristocracia aberta, a riqueza transformada em poder, igualdade perante a lei, igualdade dos encargos, liberdade de imprensa e debates públicos. Todos princípios novos e desconhecidos pela sociedade da Idade Média. Ora, foram precisamente essas novidades que, introduzidas lenta e habilmente num velho corpo, o reanimaram sem o risco de dissolvê-lo e, embora mantendo suas formas antigas, deram-lhe um novo vigor. No século XVII, a Inglaterra já é, no seu todo, uma nação moderna, com a peculiaridade de haver preservado, como se fossem embalsamados, alguns restos da Idade Média." 34
Embora seja um aristocrata que argumenta no sentido de resgatar determinados privilégios abolidos durante a Revolução em França, a argúcia de Tocqueville identifica que as mudanças ainda que profundas, rompem com uma certa estrutura, mas não com a estrutura mesma; isto é, o Estado muda de mãos e de feições, mas continua Estado e, portanto, atrelado a uma certa estrutura política que deve privilegiar a dominação, seja ela qual for. Essa mudança no tipo de dominação - absolutista ou
democrática, mas ainda dominação - é melhor tratada ao longo de uma outra obra do filósofo francês, A Democracia na América. A citação é um pouco longa, mas necessária para que seja possível acompanhar a estrutura de sua argumentação:
"Se quisesse imaginar com que traços novos o despotismo poderia produzir-se no mundo, veria uma multidão incontável de homens semelhantes e iguais, que se movem sem cessar para alcançarem pequenos e vulgares prazeres, de que enchem a própria alma. Cada um deles, separado dos outros, é como que estranho ao destino de todos eles: seus filhos e amigos particulares formam, para ele, toda a espécie humana; quanto ao restante de seus concidadãos, está ao lado deles, mas não os vê; toca-os, mas não os sente; só existe em si mesmo e para si mesmo e, se lhe resta ainda uma família, pode-se dizer que não tem mais pátria.
"Acima desses homens erige-se um poder imenso e tutelar que se encarrega sozinho de assegurar-lhes os prazeres e de velar-lhes a sorte. Este poder é absoluto, minucioso, regular, previdente e suave. Assemelhar-se-ia ao poder paterno, e, com ele, teria como objetivo preparar os homens para a idade viril; mas, ao contrário, procura mantê-los irrevogavelmente na infância; tem prazer em que os cidadãos se regozijem, desde que não pensem em outra coisa.(...)"
"Após ter assim tomado em suas mãos poderosas cada indivíduo e após ter-lhes dado a forma que bem quis, o soberano estende os braços sobre toda a sociedade; cobre-lhe a superfície com uma rede de pequenas regras complicadas, minuciosas e uniformes, através das quais os espíritos mais originais e as almas mais vigorosas não conseguiriam aparecer para sobressair na massa; não dobra as vontades, amolece-as, inclina-as e as dirige; raramente força a agir, mas opõe-se freqüentemente à ação; não destrói, impede o nascimento; não tiraniza, atrapalha, comprime, enerva, arrefece, embota, reduz, enfim, cada nação a nada mais ser que uma manada de animais tímidos e industriosos, cujo pastor é o governo." 35
Tocqueville demonstra, assim, que mesmo o Estado que se coloca como democrático e igualitário é ainda uma forma de dominação; quiçá uma dominação ainda mais terrível, por ser mais velada e estar apoiada em características bastante profundas do ser humano, como a fuga da responsabilidade: se existe algo ou alguém que nos protege e faz por nós, sem que tenhamos - aparentemente - que nos submeter, por que não aceitar de bom grado? É certo que o aristocrata francês está falando contra o princípio da igualdade, que do seu ponto de vista seria o responsável por essa uniformização que possibilitaria tal tipo de dominação; atirando num alvo, acerta, porém, em outro: o Estado moderno
"democrático" continua sendo Estado, afastado da sociedade e instrumento de dominação, o que equivale a dizer que a igualdade por ele criticada é apenas jurídica, não existindo de fato, pois se há uma classe de políticos e/ou funcionários que está acima da sociedade, já existe uma diferença de classes e está sepultada, na prática, qualquer perspectiva de igualdade. Seria preciso, porém, ainda um par de décadas para que Marx denunciasse a farsa da igualdade da democracia capitalista, apesar dos
inegáveis avanços políticos que ela representa com relação a formas políticas anteriores.
É importante salientar, voltando à nossa linha de raciocínio, que mesmo no Estado Absolutista que, a rigor, é ainda uma formação pré-capitalista, já estão presentes características que culminariam nessa forma mais desenvolvida do Estado moderno. Para tocar em dois pontos apenas, mas que são fundamentais, devemos lembrar que Hobbes, um dos principais teóricos do Absolutismo advogava que a constituição do Estado devia-se a uma busca de segurança vital e segurança do direito de propriedade, o que é já um prenúncio dos interesses capitalistas que tomavam forma aos poucos e ganhavam cada vez mais importância social.
Um segundo ponto, ainda mais fundamental, é que o processo analisado por Marx no livro primeiro d' O Capital no capítulo denominado A Chamada Acumulação Primitiva, que seria a base sobre a qual se ergueria o sistema capitalista de produção, acontece principalmente durante a existência do Estado Absolutista, principalmente durante o Mercantilismo e a Revolução Comercial.
A instituição do Estado capitalista traz uma inovação no campo econômico em relação aos sistemas anteriores: a apropriação do excedente econômico pela classe dominante não se dá mais através da utilização direta da força do Estado, através de tributos ou da escravização, mas sim através dos mecanismos do mercado, via aquela sutil violência expropriadora que Marx descobriu e a qual chamou mais-valia. É novamente Bresser Pereira quem vem em nosso auxílio:
"A mais-valia é apropriada pelo capitalista através da troca de bens e serviços de acordo com seus respectivos valores. Se toda mercadoria tem seu valor correspondente à quantidade de trabalho socialmente necessário para produzi-la, e se no capitalismo o trabalho também é uma mercadoria como qualquer outra, as leis do mercado indicam que se deve pagar pelo trabalho apenas o correspondente ao custo de sua reprodução social. O preço da mercadoria força de trabalho, ou seja, o salário, não depende do que o trabalhador produz, mas de seu custo de reprodução. Logo, basta ao capitalista escolher bens para serem produzidos que tenham uma quantidade de trabalho neles incorporada maior do que o respectivo salário para que se produza uma mais-valia, depois de todos terem sido pagos exatamente de acordo com os respectivos valores. Desta forma, o capitalista, baseado na propriedade dos meios de produção e na redução dos trabalhadores à condição de trabalhadores assalariados, apropria-se da mais-valia, sob a forma de lucros, juros, aluguéis e, ao mesmo tempo, pode afirmar que todas as trocas realizadas no mercado foram feitas exatamente de acordo com os respectivos valores. A violência direta para apropriação do excedente, com a utilização do poder do Estado, tornava-se desnecessária." 36
É essa peculiaridade intrínseca e particular do sistema capitalista de produção que permite a gênese de um novo Estado, em substituição ao Estado Absolutista que havia garantido as condições necessariamente totalitárias que permitiram a primitiva acumulação de capital sem a qual o capitalismo não teria como constituir-se em modo de produção socialmente dominante.
O novo Estado que surge é o Liberal, aquele que, em oposição aos anteriores, não precisaria exercer um forte controle sobre a economia, posto que o controle era anterior à ação mesma do Estado. Assumindo o poder através deste Estado Liberal e controlando-o por mais de um século, a burguesia tem condições de disseminar a ideologia do não-intervencionismo, da queda das barreiras econômicas e da des-regulamentação, como forma de abrir caminho para suas atividades crescentes e seu voraz apetite.
Politicamente, o novo Estado pode assumir também uma feição muito mais democrática, em consonância com seus objetivos econômicos, posto que o controle da economia e da expropriação do excedente era regulado internamente e o aparelho repressivo estatal precisaria ser acionado apenas em casos extremos. Nesse momento do desenvolvimento do Estado Capitalista, a força do Estado estava tremendamente diminuída, se comparada com a força da sociedade civil, nos termos aqui já expostos.
O crescimento das empresas, operadoras básicas do mercado, com a conseqüente formação de monopólios e oligopólios leva a uma crise no poder de auto-regulamentação do mercado, sendo necessário que o Estado voltasse a intervir na economia para regular o mercado; aparece então uma nova feição do Estado Capitalista, marcando uma nova fase, a do Estado Regulador. Bresser Pereira 37 afirma que países que tiveram retardada sua revolução industrial, como Japão, Rússia e Alemanha,
nem chegaram a conhecer o Estado Liberal, assumindo a plenitude do Capitalismo com e através do Estado Regulador. Este alcançaria, porém, mesmo os países tradicionalmente liberais, apesar das resistências. Nessa nova feição do Estado Capitalista, cresce enormemente o poder e a atuação do aparato político:
"Quando se fala em capitalismo monopolista do Estado ou simplesmente capitalismo de Estado, quer-se referir a uma formação social dominantemente capitalista, mas na qual o Estado adquiriu um papel fundamental, não apenas no campo político, mas também no campo econômico. O Estado abandonou o laissez faire para se transformar em órgão regulador e motor da economia. Através do planejamento econômico, da política econômica e das atividades empresariais diretas, o Estado, em sua função reguladora, substitui em parte o mercado, definindo preços, salários e taxas de juros, tributando salários e ordenados e lucros, estabelecendo prioridades para os investimentos privados, orientando o consumo através de taxas diferenciadas; em sua função motora realiza grandes despesas, e torna-se ele próprio empresário, responsável por ampla parcela da acumulação de capital, na medida em que implanta um poderoso setor produtivo estatal."38
Esse crescimento do poder e atuação do Estado não implica necessariamente, porém, numa diminuição do poder da sociedade civil, que continua forte; constrói-se todavia, novo equilíbrio de forças, diverso
daquele do Estado Liberal.
Essas duas tipologias do Estado Capitalista (Liberal e Regulador), complementadas por uma terceira que se desenvolveu nos países de economia dependente - os subdesenvolvidos - e, segundo Pereira, também nos países do Leste com o malogro da revolução socialista, a do Estado Tecnoburacrático, caracterizada pela constituição de uma classe administrativa cooptada da burguesia que assume as funções políticas do Estado e as funções econômicas da acumulação do capital, constituem um
panorama geral da atualidade do Estado moderno 39.
Assistimos hoje a um certo impasse nestas feições do Estado, com uma nova onda de discussões em torno de um neo-liberalismo, arauto de não ingerência estatal na economia, ao qual se contrapõem os defensores da função regulamentadora do Estado. Independentemente da feição específica que assuma, porém, seja ela mais ou menos "liberalizante", o Estado capitalista não se afasta de suas características básicas que, como já alertávamos juntamente com Tocqueville desde o início, estavam também já presentes nas organizações político-estatais anteriores.
Autor: Silvio Gallo
http://www.cedap.assis.unesp.br/cantolibertario/textos/0007.html
terça-feira, 1 de julho de 2008
Questão de Superação
Dionísio e Apolo
Numa das suas primeiras obras, Origem da Tragédia (1871), Nietzsche distingue na cultura Grega dois princípios fundamentais, e que irão servir de matriz para analisar a cultura Europeia: o Apolíneo e Dionisiaco.
O princípio Apolíneo (do deus Apolo), simboliza a serenidade, claridade, medida, racionalidade. Corresponde à imagem tradicional da Grécia Clássica e que aparece frequentemente associada às figuras de Sócrates e Platão.
O Dionisíaco (do deus Dioniso), simboliza as forças impulsivas, o excesso transbordante, o erotismo, a orgia, a afirmação da vida e dos seus impulsos (força, vontade).
Estes dois princípios estavam presentes na tragédia e na cultura grega, antes da influência de Sócrates se fazer sentir. Ele submete os impulsos vitais e a sua energia excessiva aos constrangimentos da razão. Esta viragem na filosofia coincide com aquilo que Nietzsche considera a decadência da tragédia, preconizada por Euripedes, mas também ligada ao aparecimento da comédia.
A partir de Sócrates-Platão a cultura ocidental seria marcada pela repressão dos instintos vitais e a negação do prazer.
Numa das suas primeiras obras, Origem da Tragédia (1871), Nietzsche distingue na cultura Grega dois princípios fundamentais, e que irão servir de matriz para analisar a cultura Europeia: o Apolíneo e Dionisiaco.
O princípio Apolíneo (do deus Apolo), simboliza a serenidade, claridade, medida, racionalidade. Corresponde à imagem tradicional da Grécia Clássica e que aparece frequentemente associada às figuras de Sócrates e Platão.
O Dionisíaco (do deus Dioniso), simboliza as forças impulsivas, o excesso transbordante, o erotismo, a orgia, a afirmação da vida e dos seus impulsos (força, vontade).
Estes dois princípios estavam presentes na tragédia e na cultura grega, antes da influência de Sócrates se fazer sentir. Ele submete os impulsos vitais e a sua energia excessiva aos constrangimentos da razão. Esta viragem na filosofia coincide com aquilo que Nietzsche considera a decadência da tragédia, preconizada por Euripedes, mas também ligada ao aparecimento da comédia.
A partir de Sócrates-Platão a cultura ocidental seria marcada pela repressão dos instintos vitais e a negação do prazer.
Homem Doente
Dotado de um pensamento reducionista, o "homem teórico" encara o mundo pelos olhos da lógica e da ciência, descobrindo uma ordem cósmica onde existe o caos.Repudia tudo aquilo que se mostra incerto, misterioso ou irracional, munindo-se para este combate de poderosos instrumentos como a Culpa, o Ressentimento. Mostra-se igualmente incapaz de aceitar o sofrimento e as contradições da vida. O homem doente procura sempre uma consolação para os seus fracassos,imagina um outro mundo onde obterá aquilo que abdicou de lutar na terra.
Eterno Retorno
A visão da história da humanidade, segundo Nietzsche, assenta na concepção de um eterno retorno. Quando forem realizadas todas as possibilidades de combinação dos elementos, tudo voltará a repetir-se num novo ciclo. A cultura ocidental, segundo Nietzsche, depois de uma fase de apogeu, desde Sócrates que entrara numa longa fase de decadência que a conduziu ao Niilismo, marcado pela ausência de valores, terminando no indiferentismo. Neste percurso os valores superiores foram sendo substituídos pelos valores dos escravos, difundidos pelo Cristianismo e consagrados nos regimes democráticos e a ascensão das classes trabalhadoras. Estes falsos valores negam a vida em nome de ilusões (ideais) ou de uma vida futura.
A única possibilidade de sair desta fase de decadência é o homem transformar-se a si próprio, mediante a transmutação de todos os seus valores, encaminhando-se para aquilo que designou por Super-homem. Apenas uma pequena elite atingirá este estádio.
Super-homem
Nietzsche, como dissemos, opõem-se a todas as ideias igualitaristas, humanitaristas e democráticas. De acordo com o seu pensamento as mesmas apresionam o Homem, não o libertam. O seu modelo de Homem está nos príncipes do Renascimento: valente, hábil, sem moral (acima do Bem e do Mal), apenas se guiando pela sua vontade de poder, a sua energia vital. O super-homem é aquele que aceita a vida como ela é: incerta, conflituosa e sem ilusões. Ele aceita as forças cósmicas incertas e contraditórias que os outros negam e temem.
Moral de Senhores e Moral de Escravos
A libertação do homem exige um combate sem tréguas contra a moral dos escravos. Em primeiro lugar critica a moral socrática, que subordina tudo à razão. A seguir condena a religião e a moral cristã que enaltece os fracos, apela à compaixão e à resignação dos homens, promete recompensas num mundo no além que não existe, estimulando a inveja pelos poderosos. Condena igualmente a moral do dever de Kant, e a ética utilitarista.Nesta crítica Nietzsche realiza uma minuciosa análise linguística, histórica e psicológica dos conceitos e das práticas que suportam estas concepções morais.
A moral dos senhores, a do Super-homem, valoriza a força, a irrupção dos impulsos vitais, a vontade de poder. Nietzsche chega inclusivé a valorizar a guerra, pois durante esta criam-se especiais oportunidades para a manifestação de virtudes nobres, como a valentia ou a generosidade dos guerreiros.
Carlos Fontes
http://afilosofia.no.sapo.pt/12.nietzsche.htm
domingo, 29 de junho de 2008
A Crítica da Razão em Schopenhauer
Tomaz Augusto Bastos*
Chamado por Nietzsche de “cavalheiro solitário”, e por muitos considerado extremamente pessimista, o filósofo Arthur Schopenhauer (1788/1860) foi autor de um dos pensamentos mais instigantes e marcantes da história da filosofia. Grande opositor de seu contemporâneo Hegel, Schopenhauer teve de esperar muito em vida para encontrar o reconhecimento por seus trabalhos. Sua filosofia influenciou pensadores como Nietzsche, Wittgenstein, Horkheimer, Sartre, Cioran, e escritores como Franz Kafka, Thomas Mann, além de Freud, criador da psicanálise. Sua principal obra, publicada em 1819, diante da qual não se pode permanecer impassível, é O Mundo Como Vontade e Representação. Nela encontramos duas proposições chave de sua filosofia, enunciadas por ele mesmo como verdades incontestáveis, são elas: o mundo é a minha representação e o mundo é a minha vontade.
Para chegarmos à tamanha afirmação, cabe-nos deixar claro que o pensamento schopenhauriano parte da filosofia transcendental kantiana – que havia estabelecido uma oposição entre a coisa-em-si, incognoscível, e os fenômenos que são projetados pelo sujeito do conhecimento, através das suas formas a priori da sensibilidade, a saber; espaço e tempo, e pelas categorias do seu entendimento. Tal constatação levou os discípulos de Kant a dividirem-se em duas linhas. Primeiro os que recusaram a existência da coisa-em-si, cujos principais representantes são Hegel e Fichte, idealistas absolutos para o qual há espírito e não há nada fora dele; a segunda linha caracteriza-se pelos que aceitaram a coisa-em-si, porem fazendo dela alicerce permanente do fenômeno e lhe atribuindo outros nomes. Schopenhauer pertence a esse segundo grupo, pois, “a coisa-em-si de Kant se converte no que denomino vontade de viver e se torna substrato explicativo do mundo e da vida, tomados como representação dessa mesma Vontade”[1].
E é partindo de tal constatação, que Schopenhauer encontra todo fundamento para sua filosofia original. Ele mesmo afirma: “o melhor do meu próprio desenvolvimento se deve à impressão das obras de Kant”[2]. Mas fiquemos atentos, pois são os desacordos com Kant que aparecem como marcantes em sua filosofia. Visto que, para Schopenhauer Kant coloca o mundo tal como o conhecemos, como não pertencentes à essência das coisas em si mesmas, permanecendo seu mero fenômeno, estando dessa forma condicionado pelas formas a priori do intelecto humano, portanto nada contendo, visto que “Kant, decerto não chegou a conhecimento de que o fenômeno é o mundo como representação, e a coisa-em-si é a Vontade”[3].
Segundo Schopenhauer, Kant chega unicamente a mostrar que o mundo fenomênico é condicionado pelo sujeito isoladamente, ou seja, pela representação. Para Kant, só se pode conhecer as formas pela sua legalidade inteira, não partindo só do objeto, mas também do sujeito, pois existe um limite comum entre ambos. Para Schopenhauer, “ao seguirmos tal limite, não penetraríamos no interior do objeto nem do sujeito; em conseqüência, nunca conheceríamos a essência do mundo, a coisa-em-si”[4]. Ficaríamos dessa forma reduzidos ao que nos é a priori conhecido, ou seja, aos fenômenos.
Para o autor de O Mundo como Vontade e Representação, se tomarmos tal proposição kantiana como verdadeira, nunca poderíamos conhecer o mundo de forma imediata. Portanto, não se pode tomar como surpresa o fato dos ensinamentos dogmáticos[5] terem fracassado, pois Kant não poderia demonstrar a necessidade desse fracasso já que tinha admitido metafísica e conhecimento a priori como idênticos. Assim, segundo Kant, para encontrarmos a solução do enigma do mundo teríamos que nos remeter a fontes externas, através das formas que somos a priori conhecentes. Segundo Schopenhauer, Kant, ao inferir a coisa-em-si como causa do fenômeno, teria deixado uma brecha para a explicação do mundo por algo fora dele (que poderia ser a inteligência e a Vontade divina). Coisa que, para o autor, não cabe no pensamento filosófico. Tal pensamento se evidencia melhor quando Cacciola faz a seguinte afirmação:
A proibição schopenhauriana de postular uma causa inteligente para o mundo torna-se explícita quando ele identifica a coisa-em-si com vontade. Assim, é essa metafísica da vontade que vem suprir a ausência da metafísica exigida, segundo Schopenhauer, pela filosofia critica. Sua fonte é deslocada do supra-sensível para a experiência interior que cada um tem de seu próprio corpo em ação, surgindo, da impossibilidade mesma de uma metafísica transcendente, a metafísica imanente que decreta a ausência de Deus e a presença do homem como ser finito.[6]
Diante de tal afirmação, vê-se que, para Schopenhauer, não teríamos razão alguma para tentarmos encontrar uma explicação para o mundo numa fonte externa a ele. Dessa forma, não devemos nos privar de todas as fontes de conhecimento, ou seja, a experiência externa e interna. Vejamos isso em suas palavras:
Digo, por isso, que a solução do enigma do mundo tem que provir da compreensão do mundo mesmo; que, portanto, a tarefa da metafísica não é sobrevoar a experiência na qual o mundo existe, mas compreendê-la a partir de seu fundamento, na medida em que a experiência, externa e interna, é certamente a fonte principal de todo conhecimento; que, em conseqüência, a solução do enigma do mundo só é possível através da conexão adequada, e executada no ponto certo, entre experiência externa e interna, e pela ligação, por aí efetuada, dessas duas fontes tão heterogêneas do conhecimento, embora apenas dentro de certos limites, impensáveis de nossa natureza finita, por conseguinte, de tal forma que chegamos a correta compreensão do mundo mesmo sem, no entanto atingir uma explanação conclusiva de sua existência que suprimiria todos os seus problemas anteriores.[7]
Seguindo o pensamento schopenhauriano, vemos, como outrora mencionado, que o maior mérito de Kant foi ter separado o fenômeno da coisa-em-si, e ter explicado todo esse mundo visível como fenômeno. Tendo, dessa forma recusado suas leis e sua validade para além do fenômeno. Mas, segundo Schopenhauer, é notável o fato de Kant não ter deduzido a existência do fenômeno, por uma verdade tão inegável e tão imutável como essa: “Nenhum Objeto Sem Sujeito”[8].
E é partindo de tal definição, que Schopenhauer acusa Kant de caracterizar sua filosofia de forma desordenada, pois, para ele a filosofia kantiana “não tem analogia alguma com a arquitetura grega”[9]. Para Schopenhauer, a filosofia de Kant mais parece uma arquitetura gótica, alheia a qualquer forma simétrica, essa é uma característica que parece peculiar a todo seu pensamento, pois, para demonstrar seus pensamentos, Kant recorre a todo momento a ordens e a subordens, exatamente como encontramos nas igrejas góticas. E essa inclinação, segundo Schopenhauer, “vai tão longe que pratica violência manifesta contra a verdade”[10]. Esse pensamento se evidencia melhor, quando o filosofo faz a seguinte afirmação numa passagem importante de sua obra:
Após Kant ter tratado espaço e tempo isoladamente – e ter concluído todo esse mundo da intuição que preenche o espaço e o tempo, no qual existimos e vivemos, com palavras que nada dizem “o conteúdo empírico da intuição nos é DADO” – ele chega logo, com UM salto, ao FUNDAMENTO LOGICO DE SUA FILOSOFIA INTEIRA, À TÁBUA DOS JUIZOS. Dessa deduz uma dúzia bem exata de categorias, simetricamente dispostas sobre quatro títulos, as quais força a entrar violentamente todas as coisas do mundo e tudo que se passa no homem, não evitando pratica violenta alguma, não desprezando sofisma algum, só pra poder em toda parte repetir a simetria daquela tabua.[11]
Diante dessa vasta ordem categórica exposta por Kant – da qual, para Schopenhauer pouco pode se aproveitar, visto que, se quisermos ir além do fenômeno (representação), e perguntarmos sobre a coisa-em-si (Vontade), como qualquer metafísica em geral, vê-se que Kant não fornece teoria alguma sobre o surgimento de uma intuição – isso aparece em seu pensamento como algo dado – que se identifica como mera intuição dos sentidos, e quando juntas as formas da intuição espaço e tempo, nos parecem como provenientes da sensibilidade. Sendo assim, para Schopenhauer, não se poderia de modo algum fazer brotar uma representação objetiva, de modo que essa exige obrigatoriamente referência da sensação à sua causa, dessa forma, logo teríamos que aplicar a lei de causalidade. Essa lei para Schopenhauer é a única das expostas por Kant que possibilita a prova de uma intuição empírica objetiva. Assim sendo, para o filósofo:
Sempre que Kant deseja dar um exemplo em vista de um esclarecimento mais apurado, quase sempre se serve da categoria da causalidade, quando então o que é dito se apresenta de maneira correta, justamente porque a lei da causalidade é a real, mas também é a única forma do entendimento, e as restantes onze categorias são apenas janelas cegas.[12]
Desse modo, para Schopenhauer, a lei da causalidade se coloca para nós como conhecimento dado a priori, de forma que, tem sua origem na subjetividade. E até mesmo as sensações do nosso sentido, que regulam a lei da causalidade nos aparecem de forma subjetiva. Para Schopenhauer, o espaço, no qual situamos a causa das sensações como objetos, se coloca como uma forma do nosso intelecto dada a priori, portanto, tendo também sua origem na subjetividade. Dessa maneira, vê-se que toda a intuição empírica permanece assentada em funções subjetivas, como um simples processo que nos é dado, e diferente disso nada pode ser trazido como uma coisa-em-si.
E ai se dá à pedra de toque da filosofia schopenhauriana, para o autor, se tomarmos como puramente verdadeira a teoria kantiana, seria impossível pensar o mundo por completo, isto porque, existem limites que o cercam. Dessa forma, o homem jamais conseguiria atingir a essência intima do mundo em-si, e as coisas que nele se encontram. Para Schopenhauer, a intuição empírica é mera representação do sujeito, é o mundo como representação. Cabe-nos ainda observar o outro lado da moeda, pois se por um lado o mundo se dá como representação, por outro lado ele é unicamente Vontade. Encero assim essa pequena explanação, frente á grandeza do pensamento schopenhauriano com uma passagem de Brum:
A partir desse momento a filosofia de Schopenhauer adquire o movimento que lhe é característico: se o mundo enquanto fenômeno é representação, o mundo enquanto coisa-em-si será Vontade. O movimento schopenhauriano obedecerá ao esquema analógico: a Vontade essência do Mundo, será atingida por meio de uma analogia com o ser humano. O homem submetido como tudo que vive ao império da Vontade, é o lugar um que a vontade se objetiva e se revela. O homem descobre em seu corpo, a imagem de uma vontade cega que compartilha com os outros seres vivos. Essa força obscura vital é o aspecto do mundo que não pode se reduzir à representação, é o mundo enquanto coisa-em-si, é o mundo enquanto Vontade.[13]
[1] SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação. São Paulo SP.: Brasil Editora, 1963, p. XII. (prefacio do tradutor).
[2] SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação. São Paulo SP.: Ed. UNESP.,2005. p.525
[3] Ibidem, p. 531.
[4] Ibid.
[5]
[6] CACCIOLA, Maria Lúcia. Schopenhauer e a Questão do Dogmatismo. São Paulo SP.: Ed. Edusp., 1994, p. 23.
[7] SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e como Representação. São Paulo SP.: Ed. UNESP., 2005, p.538.
[8] Ibidem, p. 546.
[9] Ibidem, p. 540.
[10] Ibidem, p. 541.
[11] Ibidem.
[12] Ibidem, p. 560.
[13] BRUM, José Thomas. O Pessimismo e suas Vontades: Schopenhauer e Nietzsche. Rio de Janeiro RJ.: Ed. Rocco, 1998, p. 23.
Para chegarmos à tamanha afirmação, cabe-nos deixar claro que o pensamento schopenhauriano parte da filosofia transcendental kantiana – que havia estabelecido uma oposição entre a coisa-em-si, incognoscível, e os fenômenos que são projetados pelo sujeito do conhecimento, através das suas formas a priori da sensibilidade, a saber; espaço e tempo, e pelas categorias do seu entendimento. Tal constatação levou os discípulos de Kant a dividirem-se em duas linhas. Primeiro os que recusaram a existência da coisa-em-si, cujos principais representantes são Hegel e Fichte, idealistas absolutos para o qual há espírito e não há nada fora dele; a segunda linha caracteriza-se pelos que aceitaram a coisa-em-si, porem fazendo dela alicerce permanente do fenômeno e lhe atribuindo outros nomes. Schopenhauer pertence a esse segundo grupo, pois, “a coisa-em-si de Kant se converte no que denomino vontade de viver e se torna substrato explicativo do mundo e da vida, tomados como representação dessa mesma Vontade”[1].
E é partindo de tal constatação, que Schopenhauer encontra todo fundamento para sua filosofia original. Ele mesmo afirma: “o melhor do meu próprio desenvolvimento se deve à impressão das obras de Kant”[2]. Mas fiquemos atentos, pois são os desacordos com Kant que aparecem como marcantes em sua filosofia. Visto que, para Schopenhauer Kant coloca o mundo tal como o conhecemos, como não pertencentes à essência das coisas em si mesmas, permanecendo seu mero fenômeno, estando dessa forma condicionado pelas formas a priori do intelecto humano, portanto nada contendo, visto que “Kant, decerto não chegou a conhecimento de que o fenômeno é o mundo como representação, e a coisa-em-si é a Vontade”[3].
Segundo Schopenhauer, Kant chega unicamente a mostrar que o mundo fenomênico é condicionado pelo sujeito isoladamente, ou seja, pela representação. Para Kant, só se pode conhecer as formas pela sua legalidade inteira, não partindo só do objeto, mas também do sujeito, pois existe um limite comum entre ambos. Para Schopenhauer, “ao seguirmos tal limite, não penetraríamos no interior do objeto nem do sujeito; em conseqüência, nunca conheceríamos a essência do mundo, a coisa-em-si”[4]. Ficaríamos dessa forma reduzidos ao que nos é a priori conhecido, ou seja, aos fenômenos.
Para o autor de O Mundo como Vontade e Representação, se tomarmos tal proposição kantiana como verdadeira, nunca poderíamos conhecer o mundo de forma imediata. Portanto, não se pode tomar como surpresa o fato dos ensinamentos dogmáticos[5] terem fracassado, pois Kant não poderia demonstrar a necessidade desse fracasso já que tinha admitido metafísica e conhecimento a priori como idênticos. Assim, segundo Kant, para encontrarmos a solução do enigma do mundo teríamos que nos remeter a fontes externas, através das formas que somos a priori conhecentes. Segundo Schopenhauer, Kant, ao inferir a coisa-em-si como causa do fenômeno, teria deixado uma brecha para a explicação do mundo por algo fora dele (que poderia ser a inteligência e a Vontade divina). Coisa que, para o autor, não cabe no pensamento filosófico. Tal pensamento se evidencia melhor quando Cacciola faz a seguinte afirmação:
A proibição schopenhauriana de postular uma causa inteligente para o mundo torna-se explícita quando ele identifica a coisa-em-si com vontade. Assim, é essa metafísica da vontade que vem suprir a ausência da metafísica exigida, segundo Schopenhauer, pela filosofia critica. Sua fonte é deslocada do supra-sensível para a experiência interior que cada um tem de seu próprio corpo em ação, surgindo, da impossibilidade mesma de uma metafísica transcendente, a metafísica imanente que decreta a ausência de Deus e a presença do homem como ser finito.[6]
Diante de tal afirmação, vê-se que, para Schopenhauer, não teríamos razão alguma para tentarmos encontrar uma explicação para o mundo numa fonte externa a ele. Dessa forma, não devemos nos privar de todas as fontes de conhecimento, ou seja, a experiência externa e interna. Vejamos isso em suas palavras:
Digo, por isso, que a solução do enigma do mundo tem que provir da compreensão do mundo mesmo; que, portanto, a tarefa da metafísica não é sobrevoar a experiência na qual o mundo existe, mas compreendê-la a partir de seu fundamento, na medida em que a experiência, externa e interna, é certamente a fonte principal de todo conhecimento; que, em conseqüência, a solução do enigma do mundo só é possível através da conexão adequada, e executada no ponto certo, entre experiência externa e interna, e pela ligação, por aí efetuada, dessas duas fontes tão heterogêneas do conhecimento, embora apenas dentro de certos limites, impensáveis de nossa natureza finita, por conseguinte, de tal forma que chegamos a correta compreensão do mundo mesmo sem, no entanto atingir uma explanação conclusiva de sua existência que suprimiria todos os seus problemas anteriores.[7]
Seguindo o pensamento schopenhauriano, vemos, como outrora mencionado, que o maior mérito de Kant foi ter separado o fenômeno da coisa-em-si, e ter explicado todo esse mundo visível como fenômeno. Tendo, dessa forma recusado suas leis e sua validade para além do fenômeno. Mas, segundo Schopenhauer, é notável o fato de Kant não ter deduzido a existência do fenômeno, por uma verdade tão inegável e tão imutável como essa: “Nenhum Objeto Sem Sujeito”[8].
E é partindo de tal definição, que Schopenhauer acusa Kant de caracterizar sua filosofia de forma desordenada, pois, para ele a filosofia kantiana “não tem analogia alguma com a arquitetura grega”[9]. Para Schopenhauer, a filosofia de Kant mais parece uma arquitetura gótica, alheia a qualquer forma simétrica, essa é uma característica que parece peculiar a todo seu pensamento, pois, para demonstrar seus pensamentos, Kant recorre a todo momento a ordens e a subordens, exatamente como encontramos nas igrejas góticas. E essa inclinação, segundo Schopenhauer, “vai tão longe que pratica violência manifesta contra a verdade”[10]. Esse pensamento se evidencia melhor, quando o filosofo faz a seguinte afirmação numa passagem importante de sua obra:
Após Kant ter tratado espaço e tempo isoladamente – e ter concluído todo esse mundo da intuição que preenche o espaço e o tempo, no qual existimos e vivemos, com palavras que nada dizem “o conteúdo empírico da intuição nos é DADO” – ele chega logo, com UM salto, ao FUNDAMENTO LOGICO DE SUA FILOSOFIA INTEIRA, À TÁBUA DOS JUIZOS. Dessa deduz uma dúzia bem exata de categorias, simetricamente dispostas sobre quatro títulos, as quais força a entrar violentamente todas as coisas do mundo e tudo que se passa no homem, não evitando pratica violenta alguma, não desprezando sofisma algum, só pra poder em toda parte repetir a simetria daquela tabua.[11]
Diante dessa vasta ordem categórica exposta por Kant – da qual, para Schopenhauer pouco pode se aproveitar, visto que, se quisermos ir além do fenômeno (representação), e perguntarmos sobre a coisa-em-si (Vontade), como qualquer metafísica em geral, vê-se que Kant não fornece teoria alguma sobre o surgimento de uma intuição – isso aparece em seu pensamento como algo dado – que se identifica como mera intuição dos sentidos, e quando juntas as formas da intuição espaço e tempo, nos parecem como provenientes da sensibilidade. Sendo assim, para Schopenhauer, não se poderia de modo algum fazer brotar uma representação objetiva, de modo que essa exige obrigatoriamente referência da sensação à sua causa, dessa forma, logo teríamos que aplicar a lei de causalidade. Essa lei para Schopenhauer é a única das expostas por Kant que possibilita a prova de uma intuição empírica objetiva. Assim sendo, para o filósofo:
Sempre que Kant deseja dar um exemplo em vista de um esclarecimento mais apurado, quase sempre se serve da categoria da causalidade, quando então o que é dito se apresenta de maneira correta, justamente porque a lei da causalidade é a real, mas também é a única forma do entendimento, e as restantes onze categorias são apenas janelas cegas.[12]
Desse modo, para Schopenhauer, a lei da causalidade se coloca para nós como conhecimento dado a priori, de forma que, tem sua origem na subjetividade. E até mesmo as sensações do nosso sentido, que regulam a lei da causalidade nos aparecem de forma subjetiva. Para Schopenhauer, o espaço, no qual situamos a causa das sensações como objetos, se coloca como uma forma do nosso intelecto dada a priori, portanto, tendo também sua origem na subjetividade. Dessa maneira, vê-se que toda a intuição empírica permanece assentada em funções subjetivas, como um simples processo que nos é dado, e diferente disso nada pode ser trazido como uma coisa-em-si.
E ai se dá à pedra de toque da filosofia schopenhauriana, para o autor, se tomarmos como puramente verdadeira a teoria kantiana, seria impossível pensar o mundo por completo, isto porque, existem limites que o cercam. Dessa forma, o homem jamais conseguiria atingir a essência intima do mundo em-si, e as coisas que nele se encontram. Para Schopenhauer, a intuição empírica é mera representação do sujeito, é o mundo como representação. Cabe-nos ainda observar o outro lado da moeda, pois se por um lado o mundo se dá como representação, por outro lado ele é unicamente Vontade. Encero assim essa pequena explanação, frente á grandeza do pensamento schopenhauriano com uma passagem de Brum:
A partir desse momento a filosofia de Schopenhauer adquire o movimento que lhe é característico: se o mundo enquanto fenômeno é representação, o mundo enquanto coisa-em-si será Vontade. O movimento schopenhauriano obedecerá ao esquema analógico: a Vontade essência do Mundo, será atingida por meio de uma analogia com o ser humano. O homem submetido como tudo que vive ao império da Vontade, é o lugar um que a vontade se objetiva e se revela. O homem descobre em seu corpo, a imagem de uma vontade cega que compartilha com os outros seres vivos. Essa força obscura vital é o aspecto do mundo que não pode se reduzir à representação, é o mundo enquanto coisa-em-si, é o mundo enquanto Vontade.[13]
[1] SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação. São Paulo SP.: Brasil Editora, 1963, p. XII. (prefacio do tradutor).
[2] SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação. São Paulo SP.: Ed. UNESP.,2005. p.525
[3] Ibidem, p. 531.
[4] Ibid.
[5]
[6] CACCIOLA, Maria Lúcia. Schopenhauer e a Questão do Dogmatismo. São Paulo SP.: Ed. Edusp., 1994, p. 23.
[7] SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e como Representação. São Paulo SP.: Ed. UNESP., 2005, p.538.
[8] Ibidem, p. 546.
[9] Ibidem, p. 540.
[10] Ibidem, p. 541.
[11] Ibidem.
[12] Ibidem, p. 560.
[13] BRUM, José Thomas. O Pessimismo e suas Vontades: Schopenhauer e Nietzsche. Rio de Janeiro RJ.: Ed. Rocco, 1998, p. 23.
* Tomaz Augusto Bastos é aluno do Curso de Pós-graduaçao em Filosofia Contemporânea da Faculdade São Bento da Bahia.
Contato com o autor pelo e-mail: tomaz_bastos@yahoo.com.br