sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Filosofia Política


                     Poder, Violência e Política                    
Jairo Salles
O presente ensaio é uma breve reflexão sobre as visões de Hannah Arendt e Max Weber sobre as intrincadas questões que envolvem as relações de poder, violência e liberdade. Tudo realmente dependerá do poder por trás da violência ? Como identificar estes fenômenos e compreendê-los como são? Como examinar suas raízes e sua natureza ? O que é Poder ? Quem detém o poder? Qual o papel da filosofia política ?

Realmente no momento histórico em que vivemos, temos condições no século XXI  reformular estas perguntas e avaliar de forma mais clara onde nasce a violência e que correntes profundas movem o iceberg destes fenômenos,  onde nascem,  quais suas faces e sobre o que exatamente se discute?

"Portanto, fiquemos alerta - alerta em duplo sentido. Desde Auschwitz nós sabemos do que o ser humano é capaz. Desde Hiroshima nós sabemos o que está em jogo.”(Viktor E. Frankl).

Hannah Arendt levanta a questão da violência no campo da política referindo-se a relutância geral em tratar este tema como um fenômeno em seu próprio direito.  Discutindo o fenômeno do poder depara-se com um consenso político de que a violência nada mais é do que uma flagrante manifestação de poder, citando C. Wrigth Wills que diz  que “Toda política é uma luta pelo poder; a forma básica de poder é a violência” que reforça a definição de estado de Max Webber: “ domínio do homem pelo homem por meio da violência legítima, isto é, supostamente legítima.”  Arendt friza a estranheza de tal conceito que iguala poder político com “organização da violência”, o que só faz sentido se aceitarmos a estimativa de Marx de estado como um instrumento de opressão nas mãos da classe dominante.

Se violência e poder estão relacionados precisamos compreender o que entendemos por poder, se é propriamente um instrumento de domínio, e domínio, logo deveria  assim sua existência “ao instinto de dominação”.  Arendt cita Alexander Passerin d´Entrèves, como o único autor de seu conhecimento que diferencia as duas coisas: “ Temos que decidir quando , e em que sentido “poder” pode ser diferenciado de “força” para averiguarmos de que forma o fato de usar força dentro da lei altera a qualidade  da força em si e nos sugere uma imagem totalmente diferente das relações humanas” já que a “força pelo próprio fato de ser qualificada, deixa de ser força”.  Porém sinaliza que mesmo nesta distinção não se chega a raiz da questão.

As descobertas sobre um congênito instinto de dominação e uma inata agressividade do animal humano foram precedidas por afirmações filosóficas muito semelhantes. Sabe-se que o instinto de submissão, um desejo ardente de obedecer e ser dominado pelo mais forte é tão proeminente na psicologia humana quanto o desejo de poder, e politicamente, talvez segundo Arendt, seja mais relevante, e certamente estão interligados.

Citando John Stuart Mill “Submissão pronta a tirania” não é causada sempre por “extrema passividade” , uma forte indisposição a obedecer é freqüentemente acompanhada igualmente por uma forte indisposição para dominar e mandar.

Leva esta reflexão tomando como ponto de partida o campo da tradição da experiência democrática da cidade-estado Atenas onde se tinha em mente um conceito de poder e lei que essencialmente não identificava poder na relação ordem-obediência ou lei com ordens.  Inspirados neste, os revolucionários do século dezoito, procuraram constituir uma forma de governo onde o domínio da lei repousaria sobre o poder do povo, tencionando por um fim ao domínio do homem sobre o homem, infelizmente ainda enfatizavam a obediência – as leis em vez de aos homens; sendo que o que realmente queriam era apoio as leis com o aval da coletividade.  Este apoio do povo empresta poder às leis, e em respeito à obediência difere da “incondicional obediência” que um ato de violência pode exigir.  Uma das diferenças que Arendt sinaliza entre poder e violência neste sentido é de que o poder necessita de quantidade, enquanto a violência que é baseada em implementos pode ocorrer sem isto., mesmo um controle legalmente irrestrito da maioria, pode ser terrível na supressão dos direitos das minorias e eficaz na sufocação de dissensões sem lançar mão de violência, e ainda assim não significa que sejam a mesma coisa.

A forma extrema de poder para Arendt é Todos contra Um, a forma extrema de violência é Um contra Todos, e esta não é possível sem instrumentos.

Arendt sinaliza que o mais crucial dos problemas políticos sempre foi e é a questão de “Quem domina Quem?” e Poder, fortaleza, força, autoridade, violência, apenas palavras consideradas sinônimos servindo para indicar os meios pelos quais o homem domina o homem.  Quando cessarmos de reduzir assuntos políticos a questão de domínio aparecerão ou será resgatada  em  sua autêntica diversidade os termos dados originais no campo dos assuntos humanos.

Para Arendt, Poder corresponde à capacidade humana não somente de agir, mas de agir em comum acordo. O poder não pertence à alguém, sim a um grupo e sustenta-se enquanto este grupo permanece unido.  Dizer que alguém está no poder, quer dizer que este alguém está autorizado por um certo número de pessoas a atuar em nome delas. Poder é uma realização, para Arendt a política não é um meio, é um fim, e necessita de constante atualização, sob este ponto de vista de poder, significa o agir de forma plural, no campo na palavra e da decisão.

Afirma que jamais existiu um governo baseado exclusivamente nos meios da violência. Mesmo o mandante totalitário, que tendo como maior instrumento de domínio a tortura precisa de uma base de poder.  Mesmo homens sozinhos, sem apoio de outros nunca terão suficientemente poder para usar a violência com sucesso.

O poder está realmente na essência de todo governo, a violência não. O poder não necessita de justificação, pois é inerente a existência de comunidades políticas, e necessita sim de legitimidade.  A violência poderá ser justificada porém jamais será legitima e sua justificação perderá plausibilidade conforme seu fim pretendido se esvai no tempo.

Enfim, apesar de fenômenos distintos, poder e violência aparecem juntos com freqüência.  Não basta dizer que não são a mesma coisa.  Poder e violência se opõem para Arendt, onde um dominar totalmente o outro se extinguirá. Quanto maior a violência, menor o poder e vice-versa. A violência aparecerá onde o poder estiver em perigo, e se permitirem que ela siga seu caminho sem controle, ela destruirá o poder.  Enfatiza ainda que pensar no oposto da violência como não violência é uma redundância.  A violência pode sim destruir o poder, mas será totalmente incapaz de criá-lo.

Diferente de Hannah Arendt, para Max Weber, a violência poderá no campo político e somente nele ocorrer de forma legítima precisamente para evitar que haja violência em outros campos, cita Trotski que diz  que “Todo o Estado se funda na violência”. Weber afirma que naturalmente que a violência não é nem o meio normal nem o único meio de que o Estado se serve, mas é realmente o seu meio específico..e há intima relação do Estado com a violência.  Assim diz, que o Estado seria a comunidade humana que, dentro de um determinado território (tendo este como elemento definidor “domínio”), reclama (com êxito) para si o monopólio da violência física legítima,o próprio estado só permite o uso da violência quando legitimada por ele próprio  Para Weber  em nenhuma outra forma de poder (pedagógico, econômico...) haverá possibilidade desta legitimação da violência.

Falando em liberdade, enquanto para Weber a liberdade ocorre no campo político quando os governantes não estão submetidos à lei, por exemplo no estado de sítio (só assim o poder é decisivo), como no período da Revolução Francesa, a liberdade tem espaço enquanto a revolução se dá, em contrapartida para Hanna Arendt a liberdade é o exercício da política, partindo de um pressuposto consensual a partir do campo da opinião, viver politicamente é aceitar que se vive neste campo que é o da liberdade, da possibilidade do plural, que também inclui o discenso.

Webber fala sobre motivações internas de justificação para a relação de domínio do homem sobre o homem suportada pelo meio da violência legitima, sendo:

Em primeiro lugar a legitimidade tradicional, do costume consagrado, com validade imemorial para determinado grupo, como a que exerciam os patriarcas de regimes antigos.

Em segundo lugar; a autoridade do encanto, do carisma, a entrega puramente pessoal e a confiança, igualmente pessoal na capacidade e heroísmo que um indivíduo possui.  É a autoridade que tiveram os profetas, os heróis, os guias, chefes guerreiros.

E por último, a legitimidade baseada na legalidade dos preceitos legais e na competência objetiva, ou seja fundada sobre normas racionalmente criadas, ou seja, na orientação para uma obediência à obrigações legalmente estabelecidas.

Weber não é defensor claro de nenhuma destas três formas de legitimidade.

De toda forma vivenciamos em nossa civilização como citados anteriormente, fatos tão contundentes  nos alertando para a urgência de refletirmos sobre poder, violência, liberdade, delimitarmos isto , atuar sobre e evoluir no campo das relações. 

Será realmente possível esta organização no campo plural?  A realização não de um poder sobre, mas de um poder com, que dê continente a uma resignificação destes conceitos e caminhe em direção a uma organização política que vá além da corporiedade e contemple o que todos buscamos juntos.

É o retrato de uma realidade chocante quando Arendt fala, citando o exemplo de um incidente em uma universidade alemã, que trago agora para o âmbito de uma realidade atual e mais abrangente, sobre a recusa da maioria em tomar partido e atuar em algumas decisões, porque  ninguém tem vontade de fazer qualquer outra coisa pelo status quo além de levantar o dedo para votar.  Há o desejo de mudança, porém poucas atitudes que tragam concretude neste campo, tomando por modelo nosso contexto sócio-político atual, entre os que realmente desejam mudanças, percebe-se a fraqueza de investidas intermitentes e tímidas em relação a realidade que queremos mudar e revela-se tão clara a partir destas reflexões.

Já estabelecemos os limites, e apesar da possibilidade de invocarmos o paradigma da “situação extrema” na tentativa de avançar da teoria para a prática neste campo, retomo a observação de Karl Barth, citado por Giorgio Agambem em “ O que resta de Auschwitz”:

De acordo com o que podemos observar hoje – escrevia ele em 1948 – pode-se afirmar com certeza que, até no dia depois do Juízo Final, se fosse possível, cada bar, ou dancing, cada grupo carnavalesco, cada editora ávida de assinaturas e de publicidade, cada grupo de politiqueiros fanáticos, cada reunião mundana, assim como cada cenáculo cristão agrupado em torno de sua imprescindível xícara de chá, e qualquer sínodo eclesiástico, procurariam reconstruir da melhor forma possível e continuar como antes sua atividade, sem serem absolutamente afetados nem anulados, sem ficarem seriamente modificados de ontem para hoje.  Nem os incêndios, nem as inundações, nem os terremotos, nem as guerras, nem as epidemias da peste, nem sequer um eclipse do sol ou qualquer outra coisa que se queira imaginar podem levar-nos por si mesmos à angústia verdadeira e, posteriormente conduzir-nos, talvez, à verdadeira paz.”

Há necessidade de compreender que o oposto à paz, não é o conflito, mas como já preconizava o milenar Livro das Mutações Chinês há 3000 anos, a partir do hexagrama exatamente oposto ao hexagrama da paz, que seu oposto é a estagnação.  O conflito, o bom combate sim é um caminho para a paz, e certamente no campo da opinião, da decisão, da pluralidade em que Hannah Arendt situa o poder, pode-se estabelecer o poder com e a partir deste atuar sobre os conflitos sem  a necessidade do uso da violência, sem dúvida haverá debate, que pode evoluir ao diálogo, e o que não encontrar diálogo há de encontrar convivência pacífica.  Na arena mundial, o olhar sobre a história e a “situação extrema” já carregam material suficiente para saber o que queremos e o que não queremos como humanidade, podemos seguir aniquilando os oásis dispensadores de vida, alimentando tudo o que generaliza as condições do deserto ou nesta mesma arena havendo boa vontade, ação e bom combate encontrar o campo é fértil para dissolver a separatividade, a inércia e a estagnação.

De que forma a filosofia poderá contribuir com a política, para além da mera teorização acerca dos fenômenos ?  Quais são as ferramentas disponíveis ? Insistindo que o passado já nos legou mais que o suficiente e conforme Arendt vivemos hoje em um mundo em que nem mesmo o senso comum faz mais qualquer sentido, e percebo isto como muito atual, isso significa que, o que Hannah Arendt mesmo afirma, o problema com relação à filosofia e a política, ou a necessidade de uma atualizada filosofia política da qual pudesse surgir uma nova ciência da política, está novamente e cada vez mais em pauta.


Bibliografia:

1.      A política segundo Max Weber: conceito de política; ética e política -Texto: A política. In: O político e o cientista. Trad. port. Lisboa, 1979, pp.7-41; 73-99.(Há outras traduções, inclusive aquela, mais acessível, da Editora Martin Claret

2.      .O conceito de poder segundo Hannah Arendt: poder e violência - Texto: Da violência (excerto). In: Crises da República. S. Paulo, Perspectiva, 1973, pp.166-133.Subsídio/comentário: DUARTE, André. Modernidade, biopolitica e violência. Acessível em:http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/1558,1.shl. Auxiliar: ARENDT, H. Filosofia e política. In: A dignidade da política. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1993, pp.91-115;

3.      ARENDT, Hannah. Sobre o deserto e os oásis. Trad. port. de S.A In:  LEIS, H.R. & ASSMANN, S.J. Críticas minimalistas. Florianópolis, Cidade Futura, 2007.;
 AGAMBEN, Giorgio O que resta de Auschwitz. O arquivo e a testemunha. Trad. port. Selvino Assmann. S. Paulo, Boitempo, 2008, pp. 9-17 (apresentação de Jeanne M. Gagnebin), e pp..19-48, e pp.165-169

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