Suely Monteiro
A História antiga, permeada de mitos, é uma narrativa muito rica de
ensinamentos que para serem desvelados nos impõe a tarefa de desvestir os
personagens de seus aspectos maravilhosos e sobrenaturais, entogá-los e
trazê-los para as luzes da razão. Se não
estivermos dispostos a realizar esta façanha intelectual, um outro modo, igualmente
produtivo é fazer o caminho inverso, ou seja, interagir com a fantasia e nos
deixar conduzir por suas asas coloridas até as regiões mais altas onde moram a
Criatividade e a Ética. Em lá chegando, com certeza, o oculto se nos concretizará
em Saber.
Feito este preâmbulo, compartilho com vocês, a história de
Rampsinito, sucessor de Proteu no trono de Egito e, segundo Heródoto, o mais
opulento dos reis egípcios. Rampsinito, para proteger sua fortuna, fez construir
um prédio de pedras. Um dos muros ficava fora do recinto do palácio. O
arquiteto, movido de más intenções, planejou a obra de tal forma que sem que
ninguém percebesse, seria possível mover uma pedra e sua remoção daria passagem
a um homem. Finalizada a obra, o rei transferiu para lá o seu tesouro.
Khonsu e Thoth fizeram o tempo correr célere. O arquiteto à beira
da morte, chamou seus dois filhos e contou-lhes do artificio utilizado para
ludibriar o rei e garantir-lhes subsistência farta. Os filhos, ambiciosos, assim
que o pai morreu, foram ao palácio, localizaram a pedra e subtraíram dali
grandes somas.
O rei, certo dia, ficou surpreso ao entrar no esconderijo, e
perceber a redução de sua fortuna, sem poder acusar a quem quer que fosse, pois
os lacres do esconderijo não haviam sido violados. Trancou, novamente as portas mas, sempre que
ali voltava, notava que o dinheiro minguava. Resolveu, assim, fazer uma
armadilha em volta dos vasos. Os ladrões chegaram e um caiu na armadilha.
Vendo-se apanhado, chamou o irmão e solicitou a ele que lhe cortasse a cabeça
para evitar que fosse reconhecido e toda a família caísse em desgraça. O irmão
obedeceu-o imediatamente. Em seguida, recolocou a pedra no lugar e levou para
casa a cabeça do irmão.
Imaginem o assombro do rei ao observar um corpo sem cabeça, caído na
armadilha, um novo roubo, os lacres fechados e sem condições de acusar a quem
quer que seja!
Confuso, desejando solucionar o problema Rampsinito mandou
pendurar o cadáver na muralha, deu ordens para que guardas de sua confiança ali
estivessem dia e noite para prender qualquer pessoa que fosse chorar o
morto. A mãe do ladrão, ciente de tudo
ficou tão indignada por não poder chorar o filho que concitou o outro a resolver a situação, levando o cadáver do
seu filho para ser chorado em casa, sob pena de ser delatado por ela. O jovem,
sem conseguir demovê-la de seu intento, concebeu um plano engenhoso: fez encher
vários odres de vinho, colocou-os sobre animais e dirigindo-se ao palácio,
próximo ao corpo do irmão simulou um acidente causando o derrame do vinho.
Os guardas observando a cena começaram a recolher o vinho tentando salvar a
maior parte. O jovem fingindo cólera descarregou sobre eles muitas injúrias, mas ao ser consolado pelos guardas, fingiu-se mais calmo e deu-lhes
autorização para beber do vinho bom. Logo, logo, estavam todos bêbados e
adormecidos sobre os odres vazios. O jovem ladrão, capturou o corpo do irmão e
voltou para casa com o fim de chorá-lo em família.
Cientificado do rapto do cadáver Rampsinito ficou furioso, mas não
desistiu de pegar os canalhas que abusavam de sua sabedoria e fortuna. Assim,
fez com que sua filha se prostituisse e, que aos jovens que a procurasse para
desfrutar de seus favores, somente cedesse se eles lhes contassem seu feito
mais ardiloso e pérfido. O ladrão estava interessado na moça, mas sabendo que a
teria somente se fosse o melhor de todos, cortou bem junto do ombro, o braço de
um homem recém falecido e, ocultando-o sobre o manto foi ao encontro da
princesa.
Conta-nos Heródoto que ao fazer as mesmas perguntas que fizera aos
outros homens, contou-lhe o rapaz que sua ação mais pérfida havia sido cortar a
cabeça do irmão que havia sido apanhado numa armadilha quando roubava os tesouros
do rei, e a mais ardilosa, fora ter raptado o seu corpo depois de ter
embriagado a guarda de confiança do rei. A princesa tentou prendê-lo, mas como
estavam no escuro, segurou o braço morto e, enquanto isto o jovem fugiu.
O soberano, ao saber o que ocorreu, ficou admirado da astucia e audácia
do jovem. Mandou apregoar por todas as cidades do reino que perdoava o ladrão,
convidando-o para comparecer ao seu palácio onde seria cumulado de ouro e
favores. O jovem ladrão se apresentou ao rei que em recompensa deu-lhe a filha
em casamento, pois para Rampsinito, os egípcios eram superiores a todos os
mortais, mas aquele ladrão era superior aos egípcios.
Assim, caros leitores, deixo-lhes a escolha dos caminhos para, se
for de seu interesse, desvelarem os segredos ocultos nesse texto da
história egípcia que pode ser encontrado
melhor, e, mais belamente escrito, no livro 02 , da coleção História, de Heródoto.
Baseado em:
HERÓDOTO. Histórias: Livros 1 a 9. Centaur
editions. Kindle. 2013.
Imagem: www.google.com.br.
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