Professora de Filosofia e Mitologia Greco-Romana da ESDC
Costumeiramente, abordamos a obra de um Pensador, infelizmente já falecido e, com isso, deixamos de saber: o que faz um Filósofo vivo e atuante? Consternados com a perda recente do maior especialista em Grécia Clássica, o renomado Filósofo, historiador e antropólogo francês Jean-Pierre Vernant (1914-2007), vamos conhecer um pouco de seu legado e desvelar o complexo e exaustivo trabalho de uma de suas discípulas: trata-se da competente Filósofa brasileira Ivanete Pereira.
Sua obra “Aspectos sagrados do mito e do lógos”, de notória qualidade acadêmica, é prova incontestável da condutora e inapagável luz de Vernant que, tomada com maestria pela autora, mantém acesa a chama que adentra à escuridão de nossa caverna.
Pereira busca esclarecer a importância e o lugar do lógos alethés (palavra sagrada) anterior à sua transformação em lógos filosófico. Arqueóloga, a pensadora retrocede ao Império Micênico e esmiuça uma delicada e fundamental questão: a de quando, como e porque se dá a separação entre o mýthos e o lógos.
O mito, esclarece Rachel Gazolla: “faz parte de nossa psyché, é um modo de ler o mundo, não é irracional, como querem alguns intérpretes. A palavra irracional, hoje, é extremamente pesada para explicar o pensamento mítico; afinal, ele é um pensamento bem estruturado, porém sem necessidade de provas, de argumentos. Seu valor de verdade não é aferido por sentenças, não se trata somente da linguagem, do lógos como discurso argumentativo, pois a psyché é bem mais extensa que a criação do pensar-dizer na forma sentencial”.
Em “Aspectos sagrados do mito e do lógos”, vemos que “ambas as palavras tiveram praticamente a mesma origem e uso iniciais, mas, após ocorrer uma diferenciação no uso, o mýthos ficou vinculado às narrativas acerca dos deuses, e o lógos, revestiu-se do aspecto lógico da filosofia”.
Mas onde estaria a Verdade (aléthea)? No mito ou no lógos?
Segundo o saudoso Jean-Pierre Vernant: a “Verdade (aléthea), não pode ser separada da ordem ritual, da prece, ou do direito, ou da potência cósmica que garante o retorno regular das auroras”. Sendo o “Lógos alethés” palavra divina e verdadeira, dispunham dela, os basileus (reis), os sacerdotes (advinhos) e os aedos (poetas), sendo que estes últimos as recebiam diretamente da divindade, mediada pelas Musas, filhas de Zeus e Mnemosyne. Inspiravam o poeta ditando-o ao seu ouvido, fazendo dele um mero porta-voz do “divino” (théos).
Para Vernant “Mýthos é da ordem do legêin, como indicam o composto mythologêin, mythología, e não contrasta inicialmente com os logoí, termo cujos valores semânticos são vizinhos e que se relacionam às diversas formas do que é dito”.
Ivanete Pereira salienta que “num determinado estágio da sociedade grega, os dois conceitos, mýthos e lógos, não apresentavam grandes diferenças entre si.
E a palavra formulada no contexto de uma narrativa sagrada como a Teogonia que narra a origem dos deuses pelo monumental poeta grego Hesíodo, tanto pode ser considerada mýthos como hiéros lógos (discurso ou palavra sagrada). Só muito mais tarde essas palavras do vocabulário épico cairão em desuso e serão praticamente substituídas por lógos e legêin”. Ao que parece, foi esse processo de substituição que gerou a idéia posterior de oposição entre mýthos, que ficou associado aos hieroí logoí, e lógos, que passou a ser associado à Filosofia.
Para que possamos compreender melhor o fenômeno comum ao processo de evolução lingüística, onde há ambigüidade lexical, ou seja, a palavra tem mais de um significado, tomemos por exemplo a palavra “animal”. Como explica Jean Lauand, seu emprego sempre fora o de nomear os animais, o não-humano. Hoje, embora “animal” permaneça referindo-se à espécie, compreende-se que, quando algo se revela excepcionalmente bom, ousado ou radical (resquício da arrojada ferocidade de alguns animais?) é adjetivado de “animal”.
No caso da palavra lógos, contribuiu para isso seu uso no âmbito das matemáticas e da teoria da música dos pitagóricos, uma vez que o significado original do termo mythologêin (“reunir” e “contar”) é mais apropriado aos números. Gadamer explica: “...a palavra lógos narra nossa história desde Parmênides e Heráclito. O significado originário da palavra “reunir”, “contar”, remete ao âmbito racional dos números e das relações entre números no qual o conceito de lógos se constituiu pela primeira vez”. A partir desse contexto se generaliza a palavra lógos como conceito contrário a mýthos. Em oposição àquilo que refere uma notícia que sabemos somente graças a uma simples narração, “ciência” é o saber que repousa sobre a fundamentação e a prova.
Pereira esclarece que “com o tempo, as duas palavras passaram a ser utilizadas em oposição: uma, dado o uso associado à épica, passou a designar as narrativas sobre os deuses; outra passou a ser usada para designar a palavra do filósofo que, em oposição à narrativa sagrada, é objeto de reflexão e, eventualmente, até de comprovação. Desvincula-se, assim, a palavra que discorre acerca do ser e das coisas, a palavra-movimento, da palavra que simplesmente narra a história dos deuses como um fim em si mesma”.
Considerando o que foi exposto acima, concluímos que a genialidade de Ivanete Pereira está na tese de que “não se pode pensar que há oposição de sentido entre esses termos, pois tanto os lógoi, os mýthoi podem ser portadores da Verdade (aléthea)”.
Autor: Luciene FélixProfessora de Filosofia e Mitologia Greco-Romana da ESDC
Fnte: http://www.esdc.com.br/CSF/artigo_mitoerazao.htm
mitologia@esdc.com.br
Sua obra “Aspectos sagrados do mito e do lógos”, de notória qualidade acadêmica, é prova incontestável da condutora e inapagável luz de Vernant que, tomada com maestria pela autora, mantém acesa a chama que adentra à escuridão de nossa caverna.
Pereira busca esclarecer a importância e o lugar do lógos alethés (palavra sagrada) anterior à sua transformação em lógos filosófico. Arqueóloga, a pensadora retrocede ao Império Micênico e esmiuça uma delicada e fundamental questão: a de quando, como e porque se dá a separação entre o mýthos e o lógos.
O mito, esclarece Rachel Gazolla: “faz parte de nossa psyché, é um modo de ler o mundo, não é irracional, como querem alguns intérpretes. A palavra irracional, hoje, é extremamente pesada para explicar o pensamento mítico; afinal, ele é um pensamento bem estruturado, porém sem necessidade de provas, de argumentos. Seu valor de verdade não é aferido por sentenças, não se trata somente da linguagem, do lógos como discurso argumentativo, pois a psyché é bem mais extensa que a criação do pensar-dizer na forma sentencial”.
Em “Aspectos sagrados do mito e do lógos”, vemos que “ambas as palavras tiveram praticamente a mesma origem e uso iniciais, mas, após ocorrer uma diferenciação no uso, o mýthos ficou vinculado às narrativas acerca dos deuses, e o lógos, revestiu-se do aspecto lógico da filosofia”.
Mas onde estaria a Verdade (aléthea)? No mito ou no lógos?
Segundo o saudoso Jean-Pierre Vernant: a “Verdade (aléthea), não pode ser separada da ordem ritual, da prece, ou do direito, ou da potência cósmica que garante o retorno regular das auroras”. Sendo o “Lógos alethés” palavra divina e verdadeira, dispunham dela, os basileus (reis), os sacerdotes (advinhos) e os aedos (poetas), sendo que estes últimos as recebiam diretamente da divindade, mediada pelas Musas, filhas de Zeus e Mnemosyne. Inspiravam o poeta ditando-o ao seu ouvido, fazendo dele um mero porta-voz do “divino” (théos).
Para Vernant “Mýthos é da ordem do legêin, como indicam o composto mythologêin, mythología, e não contrasta inicialmente com os logoí, termo cujos valores semânticos são vizinhos e que se relacionam às diversas formas do que é dito”.
Ivanete Pereira salienta que “num determinado estágio da sociedade grega, os dois conceitos, mýthos e lógos, não apresentavam grandes diferenças entre si.
E a palavra formulada no contexto de uma narrativa sagrada como a Teogonia que narra a origem dos deuses pelo monumental poeta grego Hesíodo, tanto pode ser considerada mýthos como hiéros lógos (discurso ou palavra sagrada). Só muito mais tarde essas palavras do vocabulário épico cairão em desuso e serão praticamente substituídas por lógos e legêin”. Ao que parece, foi esse processo de substituição que gerou a idéia posterior de oposição entre mýthos, que ficou associado aos hieroí logoí, e lógos, que passou a ser associado à Filosofia.
Para que possamos compreender melhor o fenômeno comum ao processo de evolução lingüística, onde há ambigüidade lexical, ou seja, a palavra tem mais de um significado, tomemos por exemplo a palavra “animal”. Como explica Jean Lauand, seu emprego sempre fora o de nomear os animais, o não-humano. Hoje, embora “animal” permaneça referindo-se à espécie, compreende-se que, quando algo se revela excepcionalmente bom, ousado ou radical (resquício da arrojada ferocidade de alguns animais?) é adjetivado de “animal”.
No caso da palavra lógos, contribuiu para isso seu uso no âmbito das matemáticas e da teoria da música dos pitagóricos, uma vez que o significado original do termo mythologêin (“reunir” e “contar”) é mais apropriado aos números. Gadamer explica: “...a palavra lógos narra nossa história desde Parmênides e Heráclito. O significado originário da palavra “reunir”, “contar”, remete ao âmbito racional dos números e das relações entre números no qual o conceito de lógos se constituiu pela primeira vez”. A partir desse contexto se generaliza a palavra lógos como conceito contrário a mýthos. Em oposição àquilo que refere uma notícia que sabemos somente graças a uma simples narração, “ciência” é o saber que repousa sobre a fundamentação e a prova.
Pereira esclarece que “com o tempo, as duas palavras passaram a ser utilizadas em oposição: uma, dado o uso associado à épica, passou a designar as narrativas sobre os deuses; outra passou a ser usada para designar a palavra do filósofo que, em oposição à narrativa sagrada, é objeto de reflexão e, eventualmente, até de comprovação. Desvincula-se, assim, a palavra que discorre acerca do ser e das coisas, a palavra-movimento, da palavra que simplesmente narra a história dos deuses como um fim em si mesma”.
Considerando o que foi exposto acima, concluímos que a genialidade de Ivanete Pereira está na tese de que “não se pode pensar que há oposição de sentido entre esses termos, pois tanto os lógoi, os mýthoi podem ser portadores da Verdade (aléthea)”.
Autor: Luciene FélixProfessora de Filosofia e Mitologia Greco-Romana da ESDC
Fnte: http://www.esdc.com.br/CSF/artigo_mitoerazao.htm
mitologia@esdc.com.br
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