A menina do Teatro Municipal
Por Maria José Silveira
Rosa nasceu no corredor do Teatro Municipal de São Paulo. Seu pai era o zelador; sua mãe, a esposa do zelador. Sua casa, pequeno apartamento nos fundos da coxia.
Quando nasceu, três musas vieram a seu berço.
Uma falou: Rosa! Rosa! Que privilégio o seu! Nascer na morada da arte.
A segunda disse: Rosa! Rosa! Que fardo o seu! Viver ao lado da arte.
A terceira disse apenas: Rosa! Rosa! O que será de você, menina?
E no começo, como foi alegre e fácil! Quando a orquestra tocava para ela e artistas do mundo inteiro se apresentavam em sua casa. Quando, nas horas vazias, o palco imenso e verdadeiro era seu, e lá ela podia ser o que bem queria - cantora, pianista, bailarina. Brincando com sapatilhas que encontrava pelos cantos, artefatos, fantasias. Ou brincando com a boneca que virava atriz, palhaça ou apenas boneca. No dia do seu aniversário, o pai a colocava em um camarote e lhe dizia: a apresentação de hoje é para você, querida! E Rosa, menina, era inteiramente feliz no palco de seu mundo.
Mas eis que um dia o mundo de fora bate à porta do Teatro. Rosa ainda não sabia que o mundo de fora era um ogro e tomaria sua casa e seu palco, seus brinquedos e ilusões. Já não precisavam de zelador.
Pobre Rosa! Que fardo o seu! Que outra casa jamais poderia se comparar à que teve? Que outras brincadeiras jamais poderiam chegar aos pés das que brincava no seu palco-mundo?
Mas Rosa, desde então, jamais deixou de tentar, de alguma forma, voltar para sua casa-Teatro. Passou a ir a todas as apresentações, mas ser público não era, nem de longe, a mesma coisa. Tentou voltar como artista; estudou piano, e se formou - mas não deu. Ela, que tão facilmente tocava em seu palco-casa, descobriu o quanto era difícil ser artista no ogro-mundo de fora. Tentou, então, voltar como monitora de visitantes. Afinal, ninguém tinha nascido ali a não ser ela, ninguém entendia melhor tudo aquilo do que ela. Só que, vindo do berço que viera, ninguém era mais geniosa do que ela - também não deu.
Em um momento de desconsolo, Rosa pensou que talvez soubesse como voltar um dia para sua casa. Como iria outra vez morar no fundo das coxias e se apresentaria como quisesse no palco vazio e, no dia do aniversário, estaria outra vez no camarote onde se sentava quando criança a desfrutar o espetáculo apresentado em sua homenagem. Talvez soubesse quando tudo isso de novo aconteceria: quando ela fosse um fantasma e voltasse.
Mas, não! Assim, não! Seria muito cruel. Teria que achar outro jeito.
E como Rosa nasceu com as musas, Rosa viveu com a arte, Rosa não desistiu.
Aos 83 anos, encontrou seu jeito. Com as histórias que viu e viveu, com os artistas que conheceu, com os espetáculos que amou, ela escreveu um livro sobre sua casa-Teatro. Assim e por fim, os dois ficaram outra vez e para sempre unidos, e Rosa está feliz.
* * *
(Texto feito a partir da reportagem,”Filha única do Teatro Municipal”, de Fernanda Aranda, publicada no Caderno Metrópole, do Estado de São Paulo, dia 16 de agosto, 2009)
Maria José Silveira é escritora, tradutora e editora. Foi jornalista e redatora de publicidade.
É formada em antropologia e mestre em Ciências Políticas. Tem romances, contos e livros infanto-juvenis publicados. Nasceu em Goiás.
Por Maria José Silveira
Rosa nasceu no corredor do Teatro Municipal de São Paulo. Seu pai era o zelador; sua mãe, a esposa do zelador. Sua casa, pequeno apartamento nos fundos da coxia.
Quando nasceu, três musas vieram a seu berço.
Uma falou: Rosa! Rosa! Que privilégio o seu! Nascer na morada da arte.
A segunda disse: Rosa! Rosa! Que fardo o seu! Viver ao lado da arte.
A terceira disse apenas: Rosa! Rosa! O que será de você, menina?
E no começo, como foi alegre e fácil! Quando a orquestra tocava para ela e artistas do mundo inteiro se apresentavam em sua casa. Quando, nas horas vazias, o palco imenso e verdadeiro era seu, e lá ela podia ser o que bem queria - cantora, pianista, bailarina. Brincando com sapatilhas que encontrava pelos cantos, artefatos, fantasias. Ou brincando com a boneca que virava atriz, palhaça ou apenas boneca. No dia do seu aniversário, o pai a colocava em um camarote e lhe dizia: a apresentação de hoje é para você, querida! E Rosa, menina, era inteiramente feliz no palco de seu mundo.
Mas eis que um dia o mundo de fora bate à porta do Teatro. Rosa ainda não sabia que o mundo de fora era um ogro e tomaria sua casa e seu palco, seus brinquedos e ilusões. Já não precisavam de zelador.
Pobre Rosa! Que fardo o seu! Que outra casa jamais poderia se comparar à que teve? Que outras brincadeiras jamais poderiam chegar aos pés das que brincava no seu palco-mundo?
Mas Rosa, desde então, jamais deixou de tentar, de alguma forma, voltar para sua casa-Teatro. Passou a ir a todas as apresentações, mas ser público não era, nem de longe, a mesma coisa. Tentou voltar como artista; estudou piano, e se formou - mas não deu. Ela, que tão facilmente tocava em seu palco-casa, descobriu o quanto era difícil ser artista no ogro-mundo de fora. Tentou, então, voltar como monitora de visitantes. Afinal, ninguém tinha nascido ali a não ser ela, ninguém entendia melhor tudo aquilo do que ela. Só que, vindo do berço que viera, ninguém era mais geniosa do que ela - também não deu.
Em um momento de desconsolo, Rosa pensou que talvez soubesse como voltar um dia para sua casa. Como iria outra vez morar no fundo das coxias e se apresentaria como quisesse no palco vazio e, no dia do aniversário, estaria outra vez no camarote onde se sentava quando criança a desfrutar o espetáculo apresentado em sua homenagem. Talvez soubesse quando tudo isso de novo aconteceria: quando ela fosse um fantasma e voltasse.
Mas, não! Assim, não! Seria muito cruel. Teria que achar outro jeito.
E como Rosa nasceu com as musas, Rosa viveu com a arte, Rosa não desistiu.
Aos 83 anos, encontrou seu jeito. Com as histórias que viu e viveu, com os artistas que conheceu, com os espetáculos que amou, ela escreveu um livro sobre sua casa-Teatro. Assim e por fim, os dois ficaram outra vez e para sempre unidos, e Rosa está feliz.
* * *
(Texto feito a partir da reportagem,”Filha única do Teatro Municipal”, de Fernanda Aranda, publicada no Caderno Metrópole, do Estado de São Paulo, dia 16 de agosto, 2009)
Maria José Silveira é escritora, tradutora e editora. Foi jornalista e redatora de publicidade.
É formada em antropologia e mestre em Ciências Políticas. Tem romances, contos e livros infanto-juvenis publicados. Nasceu em Goiás.
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