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terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Literatura: Conto.


O PODER DOS QUIETOS
Mônica Monteiro Klein


Mônica Monteiro Klein, minha obra prima.
Uma cachaça.  Não, duas cachaças. Não, duas cachaças, um rivotril ou qualquer outra substância psicotrópica que seja capaz de me deixar em um estado de torpor por todo o tempo necessário e imprevisível de uma apresentação em público. Necessário, pois a sociedade acadêmica exige este ritual de passagem, de finalização. Imprevisível, pois nada sai como planejado e o que resta sempre é a sensação de frustração e a impotência de não poder voltar atrás e passar uma borracha em cada gaguejo, em cada “né?” pronunciado milhões de vezes após o final de cada frase, em cada branco e em cada construção de raciocínio que chocaria e faria estremecer qualquer estudante de retórica.

Meu medo de falar em público vem do meu amor por aquilo que foge do que pode ser dito, por aquilo que se perde irreversivelmente até na fala mais articulada. Eu amo me perder no mundo imaterial apresentado pelos livros, e por isso ler sempre foi o meu forte, ao contrário de falar. Pelos livros posso dialogar com meus personagens telepaticamente, em diversos idiomas, em todos os lugares do mundo (e fora dele) sem correr o risco de não ser compreendida ou de não achar o caminho de volta. No mundo dos livros, me dou ao luxo de absorver cada experiência e cada mensagem sinestesicamente, pelo cheiro, pelo paladar, pelo tato, pela música que envolve cada cenário meticulosamente criado pela minha mente criativa e displicentemente alheia às proporções matemáticas e leis humanas que regem o mundo físico.

Através dos livros, posso acessar o que existe de mais iluminado e mais tenebroso em mim mesma, posso enfrentar as mais difíceis situações, sofrer as dores mais incapacitantes, amar da forma mais apaixonada, me colocar em apuros, viajar para os recônditos mais inóspitos do planeta e até morrer de morte morrida ou de morte matada, para depois retornar ilesa fisicamente, mas completamente transformada. No momento em que leio, o livro não é mais do autor, é meu. Eu detenho todo o direito sobre suas palavras, sobre as interpretações, sobre o raciocínio. Ninguém mais tem acesso ao meu livro, porque ninguém tem acesso às minhas ideias. Eu e o livro somos um todo, ele e eu somos completos.

E por isso tenho medo de falar em público. Porque ler sempre foi o meu forte e eu sempre preferi ler a falar. Com isso, não desenvolvi a incrível habilidade de transpor um conjunto de ideias vagantes e livres na minha cabeça para um encadeamento sistemático e minimamente inteligível para o ouvinte. O falar me exige um esforço sobre-humano, me estressa. É como ser jogada aos leões em uma arena, sem exageros. Sinto-me vulnerável, insegura, exposta e analisada por um público impiedoso, sem enxergar nenhuma saída. Sinto-me pressionada a me encaixar em cada expectativa lançada sobre mim naquele momento. Sinto-me injustamente julgada e mal representada por mim mesma, reduzida a tudo aquilo que foi dito e rejeitada por tudo o que ainda tinha por dizer (e não disse).

Invejo aqueles que já nascem loquazes, que irrompem do ventre com tal habilidade de oratória que chegam a arrancar exclamações de entusiasmo e admiração da própria equipe médica. Invejo aqueles que anseiam por expor suas ideias ao mundo material tão logo elas surgem, seja por instinto ou mesmo por pura ingenuidade. Invejo-os porque é deles este mundo. O mundo é dos que se expõem, dos que se sobressaem pela voz, dos que lideram multidões, dos que estabelecem o maior número de contatos, dos que expandem infinitamente seu network. É o mundo dos espaços lotados, dos holofotes, dos aplausos, das gargalhadas, dos múltiplos estímulos. O mundo de fora, o mundo visível, o mundo audível, o mundo palpável.

Meu mundo é dos quietos, da imersão em si mesmo. É um mundo que cabe numa tenda de lençol improvisada entre dois móveis e que passa despercebida pelos olhares mais apressados, pela contagem onipresente do relógio. Meu mundo tem o tempo como amigo e não está sujeito à implacável perfeição do mundo real. Minhas palavras boiam na minha cabeça e esperam o momento certo para serem convidadas a sair, se quiserem sair e se forem necessárias. Mas é justamente aí que encontro o meu poder. Porque ao mesmo tempo em que invejo aqueles que sempre têm algo a dizer, aqueles que sempre anseiam por falar, eu me sinto privilegiada por buscar apenas em mim aquilo o que eu sou, me bastando como locutora, ouvinte e meio da minha própria mensagem.

O que eu economizo com as palavras eu libero em pensamentos. E por isso, a minha fala não me define, não me prende e também não magoa (tanto).  O meu pensamento, no entanto, corre solto, desenvolto, para frente e para trás, de trás para frente e até de cabeça pra baixo. Volto no pensamento tal como nunca poderia voltar com as palavras proferidas. Xingo, grito, ameaço, manipulo, filosofo, perdoo e amo todos, tudo em pensamento, sem perda de sentido ou significado. Tudo o que eu leio e tudo o que eu observo ao meu redor permanece em mim e transborda de emoções em seu estado mais puro e mais forte, sem filtros sociais, sem pudores, sem regras, sem controle. É meu mundo, um mundo à parte, ao qual só eu tenho acesso. E sua riqueza é tamanha, e tamanha é sua complexidade que, nunca, nem em 40 minutos nem em uma vida inteira este mundo poderia ser reduzido ou minimamente representado em uma sequencia lógica, ordenada, e previamente orquestrada de palavras.

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OBRA DE ARTE

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