Poder,
Violência e Política
Jairo Salles
O presente ensaio é uma breve reflexão sobre as
visões de Hannah Arendt e Max Weber sobre as intrincadas questões que envolvem
as relações de poder, violência e liberdade. Tudo realmente dependerá do poder
por trás da violência ? Como identificar estes fenômenos e
compreendê-los como são? Como examinar suas raízes e sua natureza ? O que é Poder ? Quem detém o poder? Qual o papel da filosofia política ?
Realmente no momento histórico em que vivemos,
temos condições no século XXI reformular
estas perguntas e avaliar de forma mais clara onde nasce a violência e que
correntes profundas movem o iceberg destes fenômenos, onde nascem, quais suas faces e sobre o que exatamente se
discute?
"Portanto,
fiquemos alerta - alerta em duplo sentido. Desde Auschwitz nós sabemos do que o
ser humano é capaz. Desde Hiroshima nós sabemos o que está em jogo.”(Viktor E.
Frankl).
Hannah Arendt levanta a questão da violência no
campo da política referindo-se a relutância geral em tratar este tema como um
fenômeno em seu próprio direito.
Discutindo o fenômeno do poder depara-se com um consenso político de que
a violência nada mais é do que uma flagrante manifestação de poder, citando C.
Wrigth Wills que diz que “Toda política é uma luta pelo poder; a forma
básica de poder é a violência” que reforça a definição de estado de Max
Webber: “ domínio do homem pelo homem por
meio da violência legítima, isto é, supostamente legítima.” Arendt friza a estranheza de tal conceito que
iguala poder político com “organização da violência”, o que só faz sentido se
aceitarmos a estimativa de Marx de estado como um instrumento de opressão nas
mãos da classe dominante.
Se violência e poder estão relacionados
precisamos compreender o que entendemos por poder, se é propriamente um
instrumento de domínio, e domínio, logo deveria
assim sua existência “ao instinto de dominação”. Arendt cita Alexander Passerin d´Entrèves,
como o único autor de seu conhecimento que diferencia as duas coisas: “ Temos que decidir quando , e em que
sentido “poder” pode ser diferenciado de “força” para averiguarmos de que forma
o fato de usar força dentro da lei altera a qualidade da força em si e nos sugere uma imagem
totalmente diferente das relações humanas” já que a “força pelo próprio fato de
ser qualificada, deixa de ser força”.
Porém sinaliza que mesmo nesta distinção não se chega a raiz da questão.
As descobertas sobre um congênito instinto de
dominação e uma inata agressividade do animal humano foram precedidas por
afirmações filosóficas muito semelhantes. Sabe-se que o instinto de submissão,
um desejo ardente de obedecer e ser dominado pelo mais forte é tão proeminente
na psicologia humana quanto o desejo de poder, e politicamente, talvez segundo
Arendt, seja mais relevante, e certamente estão interligados.
Citando John Stuart Mill “Submissão pronta a tirania” não é causada sempre por “extrema passividade” , uma forte
indisposição a obedecer é freqüentemente acompanhada igualmente por uma forte
indisposição para dominar e mandar.
Leva esta reflexão tomando como ponto de partida
o campo da tradição da experiência democrática da cidade-estado Atenas onde se
tinha em mente um conceito de poder e lei que essencialmente não identificava
poder na relação ordem-obediência ou lei com ordens. Inspirados neste, os revolucionários do
século dezoito, procuraram constituir uma forma de governo onde o domínio da
lei repousaria sobre o poder do povo, tencionando por um fim ao domínio do
homem sobre o homem, infelizmente ainda enfatizavam a obediência – as leis em
vez de aos homens; sendo que o que realmente queriam era apoio as leis com o
aval da coletividade. Este apoio do povo
empresta poder às leis, e em respeito à obediência difere da “incondicional obediência” que um ato de
violência pode exigir. Uma das
diferenças que Arendt sinaliza entre poder e violência neste sentido é de que o
poder necessita de quantidade, enquanto a violência que é baseada em
implementos pode ocorrer sem isto., mesmo um controle legalmente irrestrito da
maioria, pode ser terrível na supressão dos direitos das minorias e eficaz na sufocação
de dissensões sem lançar mão de violência, e ainda assim não significa que
sejam a mesma coisa.
A forma extrema de poder para Arendt é Todos
contra Um, a forma extrema de violência é Um contra Todos, e esta não é
possível sem instrumentos.
Arendt sinaliza que o mais crucial dos problemas
políticos sempre foi e é a questão de “Quem
domina Quem?” e Poder, fortaleza, força, autoridade,
violência, apenas palavras consideradas sinônimos servindo para indicar os
meios pelos quais o homem domina o homem.
Quando cessarmos de reduzir assuntos políticos a questão de domínio
aparecerão ou será resgatada em sua autêntica diversidade os termos dados
originais no campo dos assuntos humanos.
Para Arendt, Poder corresponde à capacidade
humana não somente de agir, mas de agir em comum acordo. O poder não pertence à
alguém, sim a um grupo e sustenta-se enquanto este grupo permanece unido. Dizer que alguém está no poder, quer dizer
que este alguém está autorizado por um certo número de pessoas a atuar em nome
delas. Poder é uma realização, para Arendt a política não é um meio, é um fim,
e necessita de constante atualização, sob este ponto de vista de poder,
significa o agir de forma plural, no campo na palavra e da decisão.
Afirma que jamais existiu um governo baseado
exclusivamente nos meios da violência. Mesmo o mandante totalitário, que tendo
como maior instrumento de domínio a tortura precisa de uma base de poder. Mesmo homens sozinhos, sem apoio de outros
nunca terão suficientemente poder para usar a violência com sucesso.
O poder está realmente na essência de todo
governo, a violência não. O poder não necessita de justificação, pois é
inerente a existência de comunidades políticas, e necessita sim de legitimidade. A violência poderá ser justificada porém
jamais será legitima e sua justificação perderá plausibilidade conforme seu fim
pretendido se esvai no tempo.
Enfim, apesar de fenômenos distintos, poder e
violência aparecem juntos com freqüência.
Não basta dizer que não são a mesma coisa. Poder e violência se opõem para Arendt, onde
um dominar totalmente o outro se extinguirá. Quanto maior a violência, menor o
poder e vice-versa. A violência aparecerá onde o poder estiver em perigo, e se
permitirem que ela siga seu caminho sem controle, ela destruirá o poder. Enfatiza ainda que pensar no oposto da
violência como não violência é uma redundância.
A violência pode sim destruir o poder, mas será totalmente incapaz de
criá-lo.
Diferente de Hannah Arendt, para Max Weber, a
violência poderá no campo político e somente nele ocorrer de forma legítima
precisamente para evitar que haja violência em outros campos, cita Trotski que
diz que “Todo o Estado se funda na violência”. Weber afirma que
naturalmente que a violência não é nem o meio normal nem o único meio de que o
Estado se serve, mas é realmente o seu meio
específico..e há intima relação do Estado com a violência. Assim diz, que o Estado seria a comunidade
humana que, dentro de um determinado território (tendo este como elemento
definidor “domínio”), reclama (com êxito) para si o monopólio da violência física legítima,o próprio
estado só permite o uso da violência quando legitimada por ele próprio Para Weber
em nenhuma outra forma de poder (pedagógico, econômico...) haverá
possibilidade desta legitimação da violência.
Falando em liberdade, enquanto para Weber a
liberdade ocorre no campo político quando os governantes não estão submetidos à
lei, por exemplo no estado de sítio (só assim o poder é decisivo), como no
período da Revolução Francesa, a liberdade tem espaço enquanto a revolução se
dá, em contrapartida para Hanna Arendt a liberdade é o exercício da política,
partindo de um pressuposto consensual a partir do campo da opinião, viver
politicamente é aceitar que se vive neste campo que é o da liberdade, da
possibilidade do plural, que também inclui o discenso.
Webber fala sobre motivações internas de justificação para a relação de domínio do
homem sobre o homem suportada pelo meio da violência legitima, sendo:
Em primeiro lugar a legitimidade tradicional, do costume consagrado, com
validade imemorial para determinado grupo, como a que exerciam os patriarcas de
regimes antigos.
Em segundo lugar; a autoridade do encanto, do carisma, a entrega puramente pessoal e a
confiança, igualmente pessoal na capacidade e heroísmo que um indivíduo
possui. É a autoridade que tiveram os
profetas, os heróis, os guias, chefes guerreiros.
E por último, a legitimidade baseada na legalidade dos preceitos legais e na competência objetiva, ou seja fundada sobre
normas racionalmente criadas, ou seja, na orientação para uma obediência à
obrigações legalmente estabelecidas.
Weber não é defensor claro de nenhuma destas
três formas de legitimidade.
De toda forma
vivenciamos em nossa civilização como citados anteriormente, fatos tão
contundentes nos alertando para a
urgência de refletirmos sobre poder, violência, liberdade, delimitarmos isto ,
atuar sobre e evoluir no campo das relações.
Será realmente
possível esta organização no campo plural? A realização não
de um poder sobre, mas de um poder com, que dê continente a uma
resignificação destes conceitos e caminhe em direção a uma organização política
que vá além da corporiedade e contemple o que todos buscamos juntos.
É o retrato de uma
realidade chocante quando Arendt fala, citando o exemplo de um incidente em uma
universidade alemã, que trago agora para o âmbito de uma realidade atual e mais
abrangente, sobre a recusa da maioria em tomar partido e atuar em algumas
decisões, porque ninguém tem vontade de
fazer qualquer outra coisa pelo status
quo além de levantar o dedo para votar.
Há o desejo de mudança, porém poucas atitudes que tragam concretude
neste campo, tomando por modelo nosso contexto sócio-político atual, entre os que
realmente desejam mudanças, percebe-se a fraqueza de investidas intermitentes e
tímidas em relação a realidade que queremos mudar e revela-se tão clara a
partir destas reflexões.
Já estabelecemos os
limites, e apesar da possibilidade de invocarmos o paradigma da “situação
extrema” na tentativa de avançar da teoria para a prática neste campo, retomo a
observação de Karl Barth, citado por Giorgio Agambem em “ O que resta de Auschwitz”:
“ De acordo com o que podemos observar hoje –
escrevia ele em 1948 – pode-se afirmar com certeza que, até no dia depois do
Juízo Final, se fosse possível, cada bar, ou dancing, cada grupo carnavalesco,
cada editora ávida de assinaturas e de publicidade, cada grupo de politiqueiros
fanáticos, cada reunião mundana, assim como cada cenáculo cristão agrupado em
torno de sua imprescindível xícara de chá, e qualquer sínodo eclesiástico,
procurariam reconstruir da melhor forma possível e continuar como antes sua
atividade, sem serem absolutamente afetados nem anulados, sem ficarem seriamente
modificados de ontem para hoje. Nem os
incêndios, nem as inundações, nem os terremotos, nem as guerras, nem as
epidemias da peste, nem sequer um eclipse do sol ou qualquer outra coisa que se
queira imaginar podem levar-nos por si mesmos à angústia verdadeira e,
posteriormente conduzir-nos, talvez, à verdadeira paz.”
Há necessidade de
compreender que o oposto à paz, não é o conflito, mas como já preconizava o
milenar Livro das Mutações Chinês há
3000 anos, a partir do hexagrama exatamente oposto ao hexagrama da paz, que seu
oposto é a estagnação. O conflito, o bom combate sim é um caminho para a paz,
e certamente no campo da opinião, da decisão, da pluralidade em que Hannah
Arendt situa o poder, pode-se estabelecer o poder
com e a partir deste atuar sobre os conflitos sem a necessidade do uso da violência, sem dúvida
haverá debate, que pode evoluir ao diálogo, e o que não encontrar diálogo há de
encontrar convivência pacífica. Na arena
mundial, o olhar sobre a história e a “situação
extrema” já carregam material suficiente para saber o que queremos e o que
não queremos como humanidade, podemos
seguir aniquilando os oásis dispensadores de vida, alimentando tudo o que
generaliza as condições do deserto ou nesta mesma arena havendo boa
vontade, ação e bom combate encontrar o campo é fértil para dissolver a
separatividade, a inércia e a estagnação.
De que forma a
filosofia poderá contribuir com a política, para além da mera teorização acerca
dos fenômenos ? Quais são as ferramentas disponíveis ? Insistindo que o passado já nos legou mais que o
suficiente e conforme Arendt vivemos hoje em um mundo em que nem mesmo o senso
comum faz mais qualquer sentido, e percebo isto como muito atual, isso
significa que, o que Hannah Arendt mesmo afirma, o problema com relação à
filosofia e a política, ou a necessidade de uma atualizada filosofia política
da qual pudesse surgir uma nova ciência da política, está novamente e cada vez
mais em pauta.
Bibliografia:
1.
A política segundo Max Weber: conceito de política; ética e
política -Texto: A política. In: O político e o cientista. Trad. port. Lisboa,
1979, pp.7-41; 73-99.(Há outras traduções, inclusive aquela, mais acessível, da
Editora Martin Claret
2.
.O conceito de poder segundo Hannah Arendt: poder e
violência - Texto: Da violência (excerto). In: Crises da República. S. Paulo,
Perspectiva, 1973, pp.166-133.Subsídio/comentário: DUARTE, André. Modernidade,
biopolitica e violência. Acessível
em:http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/1558,1.shl. Auxiliar: ARENDT, H.
Filosofia e política. In: A dignidade da política. Rio de Janeiro,
Relume-Dumará, 1993, pp.91-115;
3.
ARENDT,
Hannah. Sobre o deserto e os oásis. Trad. port. de S.A In: LEIS, H.R. & ASSMANN, S.J. Críticas
minimalistas. Florianópolis,
Cidade Futura, 2007.;
AGAMBEN, Giorgio O que resta de
Auschwitz. O arquivo e a testemunha. Trad. port. Selvino Assmann. S. Paulo,
Boitempo, 2008, pp. 9-17 (apresentação de Jeanne M. Gagnebin), e pp..19-48, e
pp.165-169